Opinão

Amazônia e Pantanal não são de "especial proteção" no Decreto 6.514/08

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13 de setembro de 2022, 19h38

Os biomas floresta amazônica brasileira e pantanal mato-grossense não possuem um regime jurídico próprio, o que significa que as infrações ambientais por destruir ou danificar florestas ou qualquer outro tipo de vegetação previstas nos artigo 49 e artigo 50 do Decreto 6.514/2008 não se aplicam de forma ampla nesses biomas, se o órgão ambiental autuante não delimitar a flora destruída ou danificada, ante a ausência de tratamento legal específico para controlar a exploração de sua vegetação.

Haroldo Palo Jr./Sesc Pantanal
Haroldo Palo Jr./Sesc Pantanal

A denominação "Patrimônio Nacional" contida no parágrafo 4º do artigo 225 da Constituição, além de ter o intuito de garantir a utilização dos biomas brasileiros dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais, significa apenas que tais bioma ali mencionados não podem ser internacionalizados:

"Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais."

Mesmo estando inserida na Constituição de 1988, estes biomas não foram até o momento objeto de regulamentação pela legislação infraconstitucional, ao contrário do ocorrido com a mata atlântica, a qual tem um regime jurídico próprio, ou seja, uma Lei (11.248/06), por meio da qual foram estabelecidos princípios e critérios para utilização e preservação de sua vegetação nativa.

Assim, e em que pesem os importantes títulos de preservação e proteção ambiental dispensados aos referidos biomas, não há regulamentação legal suficiente para permitir o enquadramento de infrações administrativas ambientais cometidas no seu espaço territorial com base nos artigos 49 e 50 do Decreto 6.514/2008, até porque, o parágrafo 2º do artigo 50 deste diploma diz textualmente que:

"§2o Para os fins dispostos no artigo 49 e no caput deste artigo, são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação."

Logo, autos de infração ambiental lavrados com base nos artigo 49 e artigo 50 do Decreto 6.514/2008, por destruir ou causar danos em vegetação inseridas nas áreas de floresta amazônica e do pantanal, se não delimitarem as áreas de "preservação especial" atingidas que tenham regime jurídico próprio, estarão eivados de vícios e passíveis de anulação, porque a incidência de tais tipos administrativos não pode ser ampliada em desfavor do autuado, sob pena de violação ao princípio da legalidade. É que esses dois dispositivos expressamente preveem que configura infração administrativa, apenas as condutas ilícitas provocadas em locais "objeto de especial preservação", veja-se:

"Artigo 49. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa, objeto de especial preservação, não passíveis de autorização para exploração ou supressão:
Artigo 50. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente:."

Convém tecer alguns comentários sobre o critério utilizado pelos órgãos ambientais na lavratura de autos de infração, cujo motivo seria aqueles dois dispositivos, levando em consideração que a maioria dos órgãos se refere à qualquer área desmatada, destruída, danificada ou suprimida como sendo de especial preservação, porém, sem identificar a legislação que a considera como tal.

Assim como em diversos outros casos relativos às autuações por infrações ambientais ocorridas na região amazônica ou pantanal, os órgãos ambientais autuantes citam o artigo da Constituição que trata das áreas consideradas Patrimônio Nacional, mas que submete sua utilização à edição de lei regulamentadora, conforme visto no já citado artigo 225, parágrafo 4º, da Constituição.

Logo, ao lavrar um auto de infração ambiental com base no artigo 49 e artigo 50 do Decreto 6.514/2008, necessário que o órgão ambiental autuante identifique no formulário da autuação, qual a flora destruída ou danificada pelo autuado que se enquadra no conceito legal daqueles dois tipos administrativos.

Sobreleva notar, que quanto à previsão constitucional de ser patrimônio nacional, a própria Constituição submete a utilização das referidas áreas à edição de lei específica regulamentadora, ou seja, a utilização da floresta amazônica ou pantanal deve ser regulada por lei, entendendo-se não ser possível infração ambiental (ou qualquer outra) sem norma anterior que a defina.

Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro possui um conjunto de normas que regulamentam o artigo 225 da Constituição Federal, a exemplo da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/06) e do Código Florestal (Lei nº 12.651/12), que estabelecem normas gerais sobre a preservação da vegetação, de áreas de preservação permanente (APPs) e da reserva legal.

Entretanto, em que pese a previsão constitucional de preservação especial, não houve, até o momento, edição de norma específica para disciplinamento da floresta amazônica e do pantanal como área de especial preservação — diferente, como visto acima, do bioma mata atlântica.

A própria norma, define de forma muito clara, que as áreas de "especial preservação" são aquelas que possuem regime jurídico próprio e especial definido em legislação, o que não é o caso da Amazônia e do pantanal como um todo, mas somente as áreas de preservação permanente e de reserva legal naqueles biomas inseridas, bem como as unidades de conservação criadas na forma da legislação, pois aí sim está-se diante de um regime jurídico próprio e especial de preservação.

Logo, não há regime jurídico especial de preservação a motivar a lavratura de autos de infração ambiental com base nos artigos 49 e 50 do Decreto 6.514/08, para as áreas particulares inseridas no mioma Amazônia ou pantanal, até porque, nestes locais é permitida a exploração e uso alternativo do solo, exceto nas áreas de preservação permanente, reserva legal e unidades de conservação de proteção integral neles inseridas.

À propósito, o artigo 12 [1] do Código Florestal de 2012 determina que todo o imóvel rural deve manter áreas de reserva legal, sem prejuízo das áreas de preservação permanente, o que reforça a ideia de que tais biomas não são de especial preservação, pois sentido nenhum seria criar uma área de preservação dentro de uma que já é preservada.

Em que pese conhecida a fama de pouco sábio de legislador, a pouca sapiência não chega ao raio de classificar o mesmo bioma em diplomas legais diferentes como passível e não passível de supressão e exploração.

Sendo assim, para aferição de infração ambiental em área situada no bioma Amazônia ou pantanal, necessário delimitar no auto se a destruição ou danificação de florestas ou demais formas de vegetação ocorreram em área de preservação permanente, de reserva legal ou em unidade de conservação, as quais possuem regime jurídico de preservação. Porém, de se notar que para essas infrações há tipos administrativos específicos.

E que nem cogite que tais biomas, pelo simples fato de serem patrimônios nacionais para efeito do §4º do artigo 225 da Constituição, são de especial preservação, porque tal disposição significa apenas proclamação política, como ensina José Afonso da Silva [2] destaca:

Declara a Constituição que os complexos ecossistemas referidos no seu artigo 225, §4.º, são patrimônio nacional. Isso não significa transferir para a União o domínio sobre as áreas particulares, estaduais e municipais situadas nas regiões mencionadas. Na verdade, o significado primeiro e político da declaração constitucional de que aqueles ecossistemas florestais constituem patrimônio nacional está em que não se admite qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou de qualquer outra área.

Logo, não se pode confundir "patrimônio nacional" com "preservação especial" a ensejar a lavratura de autos de infração com base nos artigos 49 e 50 do Decreto 6.514/08, porquanto tal locução significa mera proclamação política, no sentido de ser impossível sua internacionalização, cuja utilização do bioma amazônia ou pantanal far-se-á por meio de regime jurídico próprio, que o próprio §2º do artigo 50 do Decreto 6.514/08 acima citado tratou de definir.

Dito de outra forma, para que o bioma Amazônia ou pantanal sejam considerados objeto de especial preservação, seria necessário um regime jurídico próprio, o qual somente a mata atlântica possui, através da Lei Federal 11.428/2006, ou seja, a infração administrativa prevista nos artigos 49 ou 50 somente poderia ocorrer na mata atlântica (apesar de haver dispositivo infracional específico para tal bioma), mas jamais em biomas que não possuem regime jurídico próprio de preservação, por força do princípio da legalidade.

É que pelo princípio da legalidade, que não admite desvios ou exceções, extrai-se que as infrações administrativas somente podem ser criadas por lei em sentido estrito, respeitada a previsão constitucional. Nesse sentido, ainda que o Decreto 6.514/08, que regulamenta a Lei 9.605/98, seja considerado constitucional, não se pode considerar que a conduta de destruir ou danificar florestas ou demais formas de vegetação nos biomas em questão acarretem infração administrativa, se não existe norma que assim a defina.

Portanto, somente são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio, o que não é o caso dos biomas da floresta amazônica brasileira e pantanal mato-grossense, devendo eventual infração neles ocorrida ser enquadrada nos artigos 51-A, 52 e/ou 53 do Decreto 6.514/2008, sob pena de nulidade.


[1] Artigo 12. Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei: I – localizado na Amazônia Legal: a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas; b) 35% (trinta e cinco por cento), no imóvel situado em área de cerrado; c) 20% (vinte por cento), no imóvel situado em área de campos gerais; II – localizado nas demais regiões do País: 20% (vinte por cento).

[2] Da Silva, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 844.

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