Opinião

Marco Legal das Startups o Inova Simples

Autor

12 de setembro de 2022, 15h07

Nos últimos anos tem ganhado crescente destaque as chamadas startups, entidades empresariais que, se valendo de tecnologia e de forma inovadora, buscam obter soluções ou desenvolver modelos negociais favoráveis para novos produtos ou serviços, passíveis de repetição e ganho em escala [1]. Portanto, tecnologia, inovação, praticidade, repetição etc. são alguns dos atributos ou características dessas organizações. Trata-se de um modelo em franca expansão e com significativo potencial econômico [2], o que repercute na questão tributária quanto a variados aspectos, dentre eles os regimes fiscais passíveis de adoção por tais empresas.

No âmbito da legislação tributária federal, destacam-se como modelos ordinários ou regulares de tributação o lucro real [3] e o lucro presumido [4], e como principal modelo especial ou diferenciado o Simples Nacional [5], todos passíveis de adoção pelas startups em geral desde que observados os pertinentes e respectivos requisitos normativos. Especificamente para as startups vigora também o chamado Inova Simples, ora objeto de nossas atenções e sobre o qual passamos a lançar as ponderações seguintes focadas no aspecto tributário da questão.

Criado pela LC nº 167/2019 e alterado pela LC nº 182/2021, o Inova Simples pode ser compreendido como um regime diferenciado, especial e simplificado, aplicável às empresas em estágio inicial (early stage[6] cujas iniciativas possuam caráter incremental ou disruptivo [7], e que se autodeclarem como empresas de inovação [8], tratando-se de um regime voltado ao estímulo da criação, formalização, desenvolvimento e consolidação de tais entidades como agentes indutores de avanço tecnológico e geradores de emprego e renda [9]. De acordo com o disposto no artigo 65-A, § 3º, da LC nº 123/2006, o tratamento diferenciado em questão consiste na fixação de rito sumário para abertura e fechamento da empresa, que deverá ocorrer de forma simples e automática no mesmo ambiente digital do portal da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), em sítio eletrônico oficial do governo federal, por meio da utilização de formulário digital próprio disponível em janela ou ícone intitulado Inova Simples; uma vez realizado o correto preenchimento das informações, será gerado automaticamente um número de CNPJ [10] específico em nome da denominação da empresa Inova Simples, em código próprio Inova Simples. Outrossim, o regime diferenciado assegura o processamento prioritário de depósito de patente ou de registro de marca perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) [11].

Conquanto comumente apontado como um regime tributário especial para as startups, a relevância do chamado Inova Simples para fins tributários nos parece atualmente questionável diante dos termos legais enunciados na LC nº 123/06, ao menos no tocante às obrigações tributárias principais incidentes sobre as atividades de tais entes empresariais, e isso porque embora houvesse inicialmente no artigo 65-A, §9º, previsão expressa de que os recursos capitalizados não constituiriam renda [12], o que poderia então gerar alguma repercussão tributária especialmente em relação ao imposto de renda e demais tributos correlatos [13], referido parágrafo foi revogado pela LC nº 182/2021 [14], não mais havendo qualquer previsão neste sentido.

De outra parte, o §10 do artigo 65-A da LC nº 123/06 prevê a chamada "comercialização experimental do serviço ou do produto até o limite fixado para o MEI" (no caso, R$ 81 mil) [15], não definindo, entretanto, o que seja tal tipo de comercialização tampouco estipulando qualquer consequência jurídica tributária para o comércio em tais condições como, por exemplo, uma isenção geral ou parcial para as receitas dentro de tal limite, ou mesmo uma geração de crédito para compensação com outros tributos porventura devidos etc. Uma leitura mais apressada de tal dispositivo poderia sugerir que o regime tributário do comércio praticado em tais condições seria o mesmo do microempreendedor individual (MEI), todavia, não se pode olvidar a vedação expressa de opção das startups pela sistemática de recolhimento do MEI prevista na própria LC nº 123/06 [16], o que bem evidencia a inaplicabilidade desse regime especial tributário a tais espécies de empreendimentos.

Não há também uma indicação clara se tal comercialização experimental equivaleria a um sandbox regulatório ou ambiente regulatório experimental que, aliás, já se encontra expressamente definido na legislação [17] que o faz em termos que evidenciam tratar-se de questão relacionada a uma desburocratização ou flexibilização regulamentar por parte da Administração Pública direta ou indireta [18], aqui não se compreendendo, segundo cremos, eventual autorização temporária da Administração Fazendária para comércio provisório sem pagamento de tributos, o que juridicamente dependeria de lei específica que, todavia, não existe. Enfim, tal comercialização experimental traduz aspecto antes afeto ao direito administrativo do que propriamente relativo à tributação estatal, o que de sua parte confirma nossa percepção de que referida previsão (§10 do artigo 65-A) não guarda pertinência direta ou mesmo efeitos tributários práticos sensíveis. Todavia, se a intenção era produzir efeitos tributários, trata-se de uma norma incompleta e inadequada para tal desiderato [19].

A propósito, cumpre registrar que durante o processo legislativo do projeto de lei do qual resultou a LC nº 167/2019, um dos substitutivos apresentados pela comissão parlamentar revisora dos projetos originais [20] previa um parágrafo assim redigido: "Fica permitida a comercialização experimental do serviço ou produto até o limite fixado nesta lei para o MEI, e neste caso, os titulares recolherão, de per si, a contribuição instituída para o MEI". Como se pode ver, em tal proposta as consequências tributárias da comercialização experimental estavam expressamente indicadas, no caso o recolhimento da mesma contribuição cobrada do microempreendedor individual, o que para muitos poderia ser uma alternativa interessante. Todavia, tal redação acabou não sendo aprovada e a mesma LC nº 167/2019 alterou a LC nº 123/2006 acrescentando vedação expressa de opção das Startups pela sistemática de recolhimento do MEI [21], como já mencionado.

Teoricamente, referida "comercialização experimental" poderia ser considerada uma comercialização provisória ou algo equivalente, e cujas receitas assim obtidas poderiam ser excluídas da noção de receita ou faturamento tributáveis, desde que dentro daquele limite de valor, mas a verdade é que a LC nº 123/2006 nem a LC nº 182/2021 explicitaram isso de modo claro e objetivo, não sendo demais ter presente que a temática tributária está submetida ao princípio da estrita legalidade, inclusive no que pertine a benefícios fiscais de que são exemplos as isenções, redução de base de cálculo, diferimento e outras espécies de desonerações fiscais, todas dependentes de lei específica [22].

Não há, de fato, a indicação legal de qualquer tratamento tributário diferenciado quanto às receitas decorrentes da comercialização de produtos e serviços no estágio de comercialização experimental, não se podendo admitir que, com amparo no artigo 65-A, §13, da LC nº 123/06, tal questão venha a ser disciplinada através de Resolução do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), veículo normativo inadequado para tratar do tema em caráter originário, não podendo inovar a ordem jurídica notadamente em matéria tributária [23]. A propósito, cumpre anotar que tal regulamentação adveio pela Resolução CGSN nº 55/2020 que, entretanto, nada dispôs sobre aspectos atinentes à imposição fiscal, confirmando assim nosso entendimento sobre o tema.

Portanto, ainda que se admita a mencionada "comercialização experimental" durante um determinado período, não há qualquer indicação expressa dos reflexos tributários respectivos, mesmo para eventual receita ou faturamento dentro do aludido limite de R$ 81 mil, o que na prática esvazia qualquer suposto tratamento fiscal diferenciado às Startups, ao menos no tocante a obrigação tributária principal consistente em recolhimento de valores aos cofres públicos. Daí se segue que, da forma como disposto na legislação retro mencionada, ainda que circunscrita ao limite de R$ 81 mil, a receita obtida no período de comercialização experimental estará sujeita à regular tributação por algum dos regimes tributários tradicionais ou pelo Simples Nacional, não havendo um regime tributário específico, diferenciado e favorecido para tais hipóteses.

Diante de tal panorama, cremos que a LC nº 182/2021  atual "Marco Legal das Startups perdeu uma excelente oportunidade para disciplinar de modo expresso e particularizado variados aspectos tributários de interesse dessas entidades, inclusive consolidando num único diploma legal as normas tributárias pertinentes e adequadas a tais entes empresariais [24], o que certamente contribuiria para uma maior segurança jurídica em relação ao tema evitando até mesmo eventual judicialização de questões fiscais, dentre outras vantagens. Todavia, como bem anota Edgar Vidigal de Andrade Reis, aqui no Brasil "as questões jurídicas que envolvem startups apenas recentemente começaram a ser mais discutidas" [25], o que de certo modo explica a insuficiência do tratamento legislativo do tema. Não obstante tais lacunas, espera-se que o legislador federal, sensível a esta realidade e às exigências do mundo empresarial e da própria economia, em breve discipline de modo adequado os aspectos tributários de interesse das startups de molde a viabilizar um ambiente de negócios mais seguro e favorável a tais iniciativas, o que inclusive estaria em consonância a variadas diretrizes constitucionais atinentes à ordem econômica e tributária [26], com destaque para o artigo 218 e §§ da Constituição Federal, segundo o qual "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação", devendo através de lei apoiar e estimular as empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao país, o que certamente perpassa a questão tributária de todo relevante e também impactante para as empresas em geral, e que num mercado altamente competitivo pode ser fator decisivo para a sobrevivência ou não do negócio.


[1] De acordo com a Associação Brasileira de Startups: "Startup é uma empresa que nasce a partir de um modelo de negócio ágil e enxuto, capaz de gerar valor para seu cliente resolvendo um problema real, do mundo real. Oferece uma solução escalável para o mercado e, para isso, usa tecnologia como ferramenta principal" (em: https://abstartups.com.br/definicao-startups/  acesso em 07.08.2022).

[2] Segundo levantamento especializado sobre o tema, a previsão para 2022 era no sentido de manutenção do crescimento das startups no Brasil, embora num ritmo menor comparativamente a 2021 e 2020. A estimativa é que elas consigam captar entre US$ 10,7 bilhões e US$ 12,9 bilhões de investimentos, montante 50% superior a 2021 em que o crescimento já havia sido de 174% em relação a 2020. A propósito, confira-se reportagem da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, em: https://revistapegn.globo.com/Startups/noticia/2022/04/investimentos-em-startups-devem-ultrapassar-us-10-bilhoes-em-2022-diz-distrito.html (acesso em 21.08.2022).

[3] Confira-se a respeito o artigo 14 da Lei nº 9.718/98, e artigo 257 e ss. do Dec. nº 9.850/2018 (RIR).

[4] Confira-se a respeito o artigo 13 da Lei nº 9.718/98, e artigo 587 e ss. do Dec. nº 9.850/2018 (RIR).

[5] Confira-se a respeito a LC nº 123/2006.

[6] Lembrando-se aqui que o estágio inicial de uma Startup pode compreender diferentes momentos, como por exemplo a captação dos primeiros recursos, o lançamento de produtos ou serviços, sujeição a um programa de aceleração ou incubação, dentre outros.

[7] Basicamente, a diferença entre ambas as categorias pode ser assim resumida: startup de natureza disruptiva diz respeito a negócios tendentes a implementar algo novo ou inédito no mercado, ao passo que a de natureza incremental busca aperfeiçoar modelos ou processos já existentes. Neste sentido vide: TEIXEIRA, Tarcisio. Direito empresarial sistematizado: teoria, jurisprudência e prática, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 84. Ainda a este respeito, Saulo Michiles pondera que: "Na verdade, a grande maioria das startups inovam em seus modelos de negócios e não necessariamente ao criar uma tecnologia completamente nova. Nesse sentido, podemos trazer exemplos como Uber, Nubank, AirBnB, iFood, que não criaram nada do zero em termos de tecnologia, mas se utilizaram de tecnologias disponíveis para inovar em sua maneira de empreender" (Marco legal das startups: um guia para advogados, empreendedores e investidores. São Paulo: Juspodivm, 2021, pp. 27-28).

[8] A propósito, confira-se: artigo 2º, IV, da Lei nº 10.973/04 e artigo 64, I, da LC nº 123/06.

[9] Confira-se a respeito o artigo 65-A, caput, da LC nº 123/2006.

[10] Atualmente, dispõe a respeito do CNPJ a IN/RFB nº 1.863/2018 (DOU de 28.12.2018).

[11] A este respeito vide artigo 5º e §§ da Resolução CG-Refis nº 55/2020 e Portaria INPI/PR nº 365/2020.

[12] A propósito, a noção de "renda" possui caráter técnico e para fins tributários traduz basicamente o rendimento tributável, isto é, o resultado das receitas menos as despesas feitas para sua obtenção, incluídas as despesas para manutenção da fonte. No plano legislativo, o artigo 43, I, do CTN, define renda como sendo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Sobre o tema, confira-se na doutrina: GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 174-187; LEONETTI, Carlos Araújo. O imposto sobre a renda como instrumento de justiça social no Brasil. Barueri-SP: Manole, 2003, pp. 18-30; QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Barueri-SP: Manole, 2004, pp. 67-71; CARRAZZA, Roque Antônio. Imposto sobre a renda: perfil constitucional e temas específicos. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 51-62; LEMKE, Gisele. Imposto de renda: os conceitos de renda e de disponibilidade econômica e jurídica. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 63-65.

[13] A exemplo da CSLL cuja estrutura da incidência fiscal é assemelhada à do IRPJ, e cujo regime de apuração e pagamento é o mesmo daquele aplicável ao IRPJ nos termos da legislação federal vigente, em especial o artigo 57 da Lei nº 8.981/1995 e artigo 28 da Lei nº 9.430/1996.

[14] Trata-se do atual "Marco Legal das Startups e Empreendedorismo Inovador" (MLSEI).

[15] Limite indicado no artigo 18-A, §1º, da LC nº 123/06.

[16] Neste sentido: artigo 18-A, §4º, V, da LC nº 123/06.

[17] No caso, os artigos 2º, II, e 11, §2º, da LC nº 182/2021. A propósito, eis aqui um ponto em que a relação entre a LC nº 123/06 e a LC nº 182/2021 ficou confusa ou pouca nítida, podendo gerar equívocos interpretativos ou mesmo distorções indevidas no desejável tratamento diferenciado a ser dispensado às Startups.

[18] A título de exemplo, cite-se a Resolução DC/BACEN nº 50/2020 (DOU de 17.12.2020) que disciplinou a instauração e execução, pelo Banco Central, de sandbox regulatório consubstanciado em ambiente controlado de testes para inovações financeiras e de pagamento.

[19] Para tal hipótese, a título de exemplo poderia o legislador ter previsto expressamente que na fase de comercialização experimental provisória, os valores porventura obtidos não seriam considerados receita ou faturamento para fins tributários. Todavia, não o fez e, com isso, tais receitas são plenamente tributáveis.

[20] Mais precisamente o relatório de 22.05.2018 dos deputados Carlos Melles e Otávio Leite.

[21] Neste sentido: artigo 18-A, §4º, V, da LC nº 123/06.

[22] Neste sentido: artigo 150, §6º, da CF/88.

[23] Consoante o clássico magistério de Roque Antônio Carrazza: "Se a lei tributária for omissa, suas lacunas não poderão ser supridas pelo regulamento. Logo, o regulamento tem a função de simplesmente aclarar a lei que o exige. O regulamento, portanto, explicita a lei tributária à qual se prende, sem nada lhe subtrair, aumentar ou modificar. Se vier a veicular disposições novas, a dizer, que nela não estavam contidas, ainda que implicitamente, será 'ilegal' […]". (Curso de direito constitucional tributário, 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 361 e 362).

[24] Também para Saulo Michiles: "o grande vácuo do Marco é a questão tributária" (Marco legal…, op. cit., p. 135).

[25] Startups: análise de estruturas societárias e de investimento no Brasil. São Paulo: Almedina, 2018, p. 15.

[26] Lembrando-se que nos termos do artigo 146, III, d, da CF/88, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais de natureza tributária relativas a tratamento diferenciado e favorecido para as MEs e EPPs, categorias nas quais as startups também poderão enquadrar-se quando satisfeitos os respectivos requisitos normativos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!