Opinião

Seria o ministro Gilmar Mendes nosso Joseph Story?

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

9 de setembro de 2022, 6h06

Na série de artigos iniciada nesta quarta-feira (7/9), comecei a incursão comparativa entre grandes juristas e juízes da Suprema Corte (brasileira e norte-americana), fazendo um breve traço paralelo entre o Chief Justice John Marshall e o ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro, em arrazoado que se preocupou menos em afirmar peremptoriamente a existência de identidade, do que sugerir reflexão espelhada em homenagem às duas importantes instituições através de seus grandes juízes.

Pois bem, ao abordar alguns dos maiores juízes da Suprema Corte, o professor Jonathan Turley realiza algumas clivagens de categorias interessantes, falando em juízes importantes por "mudarem o jogo", "Pensarem contra à maioria" ou serem "visionários". Neste último grupo, insere o Justice Joseph Story (1779-1845), indicado pelo presidente James Madison em 1811 para a Suprema Corte Americana. Descrito como um dos mais bem preparados academicamente de toda a história do Tribunal, com conhecimento vasto e enciclopédico, "acabou tendo um impacto maior no direito, na sociedade e na teoria jurídica do que qualquer outro juiz da história"[1].

Também foi o juiz mais jovem já indicado para a Suprema Corte americana (tinha apenas 32 anos), cumprindo um longo mandato de quase 34 primaveras. Sua influência foi gigantesca, a ponto de ter sido uma das principais fontes de Alexis de Tocqueville ao escrever "A democracia na América"[2], ao lado de James Kent (Commentaries on American Law) e de "O Federalista"[3].

Dentre várias outras, sua grande contribuição acadêmica se encontra expressa nos famosos Comentários à Constituição "Commentaries on the Constitution of the United States", representantes de uma sólida tradição doutrinária que também retroalimentava seu magistério jurisprudencial[4].

A seu turno, dentre diversas manifestações judiciais passíveis de referência, poderíamos mencionar aquela destacada pelo professor João Carlos Souto em sua obra "Suprema Corte dos Estados Unidos: Principais Decisões"[5], o caso "Martin v. Hunter's Lesse", relacionado ao delineamento da competência recursal da Suprema Corte Americana, num pronunciamento cirúrgico, preciso e lapidar, muito embora sejamos levados a reconhecer que provavelmente sua grande contribuição judicante ocorreu no caso United States v. Schooner Amistad (1841).

O referido caso é de importância fundamental, pois foi quando a Suprema Corte americana decidiu uma querela sobre um motim de escravos ocorrido a bordo da escuna espanhola La Amistad (um navio negreiro), a partir da relevante contribuição de Story, declinada no sentido de que os africanos haviam sido escravizados ilegalmente e, portanto, exerceram o direito natural de lutar por sua liberdade. É descrita como uma das decisões mais importantes da Corte, mas ela logo seria eclipsada pelo lamentável caso Dred Scott (1857), 12 anos após a morte de Story.

Tomando esse espelho, e, diante da limitação de espaço, elegemos algumas reflexões paralelas sobre a judicatura de Gilmar Ferreira Mendes, indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal em 2002, cuja narrativa de indicação ao Supremo está presente nos "Diários da Presidência, volume 4", tanto no trato direto com FHC por causa de sua atuação como advogado-Geral da União da época. Em especial, tomemos as memórias do dia 8/2/2002, quando registram: "Passei o dia aqui despachando. Despachei com o advogado-geral, o Gilmar, disse a ele que vou nomeá-lo para o Supremo. Ele me sugeriu a Anadyr para o lugar dele, achei bom"[6].

Ressaltemos outras memórias de FHC sobre o ministro Gilmar, desta feita, do dia 23/3/2002: "(…) vejo os funcionários moles, a não ser o Gilmar Mendes, que é durão, e a Ana Tavares; o resto é tudo muito mole, não estão alertas, não estão vendo que as coisas têm sentido simbólico".

Ou as memórias do dia 24/3/2002, que quase mudaram as coisas no arranjo institucional: "À noite, jantei com Everardo Maciel (…) [que] fez uma sugestão surpreendente: por que não nomear o procurador [José Roberto] Santoro para o Ministério da Justiça? Ou, pensando melhor, por que não abrimos uma vaga no Supremo e colocamos alguém da Suprema Corte no Ministério da Justiça? (…) Nesse caso nomearíamos o Santoro procurador-geral da República, e o Gilmar iria para o Supremo Tribunal Federal. Eu teria que botar o Brindeiro no Supremo Tribunal, o que não é ruim, porque o Brindeiro é competente; ele não é bom como executivo da Procuradoria-Geral da República. E o Brindeiro é ligado ao Marco, é mais do PFL. O Santoro é mais, sei lá, PT-Serra, se é possível dizer assim. E o ministro que eu tiraria do Supremo seria o [Carlos] Velloso, que me parece o mais adequado para o cargo de ministro da Justiça".

Por fim, as memórias de 25/4/2002: "Depois [de] longa conversa com o advogado-geral da União, cujo nome mandei hoje para o Diário Oficial para ser membro do STF, o Gilmar Mendes. Ele é uma pessoa de grande qualidade intelectual, tem só 46 anos, dá inveja, tem doutorado na Alemanha em direito constitucional. É um homem corajoso, faço essa nomeação com tranquilidade, ele ficará no Supremo Tribunal Federal por muitos e muitos anos, e tem noção das coisas". Depois, já empossado no STF, as memórias do dia 1º/11/2002, num trato como estadista: "(…) recebi o Gilmar Mendes, que é ministro do Supremo, para uma conversa sobre os problemas deles".

Possuidor de uma ampla e densa formação jurídica no Brasil (UnB, Universidade de Brasília) e na Alemanha (Universität zu Münster), além de enorme prestígio e respeito como professor, assim como Story, também exerce um profundo impacto no direito, na sociedade e na teoria jurídica, provavelmente maior do que qualquer outro juiz da história da Suprema Corte do Brasil, e sua vasta obra acadêmica nacional, mas também em diversos outros idiomas, igualmente o credenciam a receber atenção de outros centros e cortes ao redor do mundo.

Inúmeras são suas obras jurídicas, a partir das quais destacamos, de sua autoria exclusiva,  os seguintes: "Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil", "Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidades", "Jurisdição Constitucional", "Estado de Direito e Jurisdição Constitucional", "Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental", e alguns outros em coautoria, como o "Curso de Direito Constitucional" e o recente artigo "Constitucionalismo Digital e Jurisdição Constitucional", fruto de intensa pesquisa e reflexão crítica. Não se esqueça também de seu papel como tradutor, valendo citar suas duas relevantes versões dos textos de Peter Häberle[7] e Konrad Hesse[8].

Dentre os diversos votos do ministro Gilmar Mendes que marcaram profundamente a jurisdição constitucional no Brasil, com acentuado recorte de proteção dos direitos fundamentais, podemos citar, apenas lateralmente, o RE 201.819 (incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas), a ADI 1.842 (serviço de saneamento em regime metropolitano nas microrregiões), as EXTs 1.008 e 1.085 (extradição no caso Cesare Battisti), o HC 82.959 (modulação dos efeitos da decisão no controle difuso de constitucionalidade na progressão de regime nos crimes hediondos), o RE 349.703 (status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos no caso da prisão do fiel depositário), as STAs 178 e 175 (interpretação do artigo 196 da CF/88, acerca do alcance da cláusula do direito à saúde e fornecimento de medicamentos), a ADI 4.650 (o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas), as ADIs 3.682 e 2.240 (criação de municípios), o RE 641.320 (progressão de regime prisional pela inexistência de vaga no sistema), o MI 7.300 (renda básica de cidadania), o HC 164493 (caso da suspeição do ex-juiz Sergio Moro), dentre inúmeros outros importantes contributos.

Contudo, nossa proposta ensaística elegeu a contribuição do ministro Gilmar Mendes no âmbito da ADPF 186, sobre as chamadas "cotas raciais", uma vez que foi sob sua presidência que foi analisada a liminar, bem como solicitadas as informações. O aparte realizado quando votava o ministro Cezar Peluso, demonstrando preocupação com o número reduzido de vagas nas universidades, e a necessidade de ampliação e melhora do financiamento das universidades públicas, em contraste com os modelos de outros países, e sua antecipação de voto que se preocupa com a problemática da índole escravocrata que dificulta o acesso às universidades públicas, e, ainda, mencionando preocupação com a população afrodescendente "mais débil economicamente por razões históricas e, em princípio, não logra condições de pagar, essa perversidade do nosso sistema, que nós ainda fazemos mais perverso".

Neste sentido, o ministro Gilmar Mendes ainda contribuiu com a proposição de que o modelo de cotas fosse aprimorado para se evitar distorções, e para que pudesse alcançar suas reais finalidades, entendendo que naquele momento se fazia essencial o modelo de cotas, numa grande decisão protetiva dos direitos fundamentais, e que tem ajudado a colorir os bancos universitários, realizando uma verdadeira revolução cultural através do ensino público, ao lado de tantos outros belos votos.

Por fim, é importante observar que o ministro Gilmar Mendes integra os três grupos do mencionado rol sobre os grandes juízes da Suprema Corte, assim como Joseph Story, ou seja, daqueles que "mudaram o jogo", "pensaram contra à maioria" ou foram "visionários", mas fica bastante evidente que somente se pode integrar qualquer uma destas categorias com brilho quando se tem como pressuposto judicante a proteção da democracia, do estado de direito e dos direitos fundamentais.

Escrevendo sobre Joseph Story, chamado de "o grande constitucionalista das américas" pelo também gigante Haroldo Valladão[9], sobre ele mencionava que, devido a sua contribuição cultural, a comunidade jurídica o agradecia "pelo progresso da ciência do Direito Constitucional". O mesmo pode ser dito sobre o ministro Gilmar Mendes, pela qualidade de seu preparo acadêmico e também pela densidade de seus votos sobre a proteção de Direitos Fundamentais. Seria Gilmar o nosso Story, ou Story seria o Gilmar americano? A ordem dos fatores parece não alterar o resultado!


[1] TURLEY, Jonathan. The 9 Greatest Supreme Court Justices. HistoryNet, 7/29/2009.

[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Trad. Julia da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019.

[3] Conforme André Jardin, o biógrafo de Tocqueville: “Consultei os três comentários mais respeitados: o Federalista, os Comentários de Kent e os do Justice Story”. Cfr. JARDIN, Andre. Tocqueville: A Biography. New York City: Hill and Wang, 1989, p. 201.

[4] NEWMYER, R. Kent. Supreme Court Justice Joseph Story: Statesman of the Old Republic. The University of North Carolina Press, 1985.

[5] SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: Principais Decisões. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2021.

[6] CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência (2001-2002). São Paulo: Cia das Letras, 2019.

[7] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e 'Procedimental' da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

[8] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991.

[9] VALLADÃO, Haroldo. Joseph Story, grande constitucionalista das Américas. Revista de Informação Legislativa, v. 17, n. 65, p. 39-46, jan./mar. 1980.

Autores

  • faz pós-doutoramento em Direito (Università degli Studi di Perugia, Univali e UnB). É doutor e mestre em Direito. Professor do programa de mestrado em Direito do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal). Professor da pós-graduação em "Direito e Poder Judiciário" da Escola Judicial de Goiás do TJ-GO. Membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais). Membro da Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal). Membro da ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil). Membro da ABrL (Academia Brasiliense de Letras). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Advogado.

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