Opinião

Ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro, o Marshall brasileiro?

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

7 de setembro de 2022, 6h16

Provavelmente nenhum outro jurista tenha sido mais relevante para a construção do imaginário jurídico de um país, e de lá exportado para o mundo ocidental, do que John Marshall, o famoso Chief Justice da Suprema Corte Americana por ocasião do julgamento do caso Marbury v. Madison, de 1803, que iniciou a afirmação do "mito" do judicial review e da supremacia da Constituição, junto com o papel da Suprema Corte como sua guardiã.

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Olegário Herculano de Aquino e Castro
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O Brasil teve seu próprio "caso Marbury v. Madison", por ocasião do julgamento do caso José Climaco Espírito Santo v. União, na pouco conhecida decisão da Suprema Corte brasileira na Apelação Cível 745, de 1902, que determinou os contornos da aplicação mitigada do Common Law no Brasil, a partir da sedimentação da interpretação do artigo 386 do Decreto 848/1890, que inaugurou entre nós o que denomino de "Common Law Tropical", em termos que exigem maiores reflexões[1].

Era presidente da Suprema Corte, à época, o ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro, que nasceu um 1828, e fez sua vida no império, com longa carreira política, que também possuía formação no Largo São Francisco, turma de 1848, tendo sido promotor, chefe de Polícia, presidente da Relação, procurador da Coroa, passando por Goiás, Minas Gerais e São Paulo, quando finalmente é nomeado para o STJ (Supremo Tribunal de Justiça do Império), e também conselheiro de Estado, integrando a primeira leva de ministros após a transformação daquela Corte em Supremo Tribunal Federal, entre 1894 e 1906, e esteve na presidência da Suprema Corte quando do julgamento do caso José Climaco.

Não se pode afirmar peremptoriamente que o ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro tenha sido o nosso "Marshall brasileiro", por evidente, e guardadas as necessárias proporções, mas é preciso relembrar sua adaptabilidade política. Tamanha era sua ligação com o regime monárquico, que, pertencendo ao Instituto Histórico e Geográfico, sendo, aliás, seu presidente, ao tempo das efemérides por ocasião do falecimento do imperador Pedro 2º, foi ele escolhido para proferir o discurso de homenagem, devido a sua proximidade com o falecido monarca, já no regime republicano[2].

Com efeito, muitos são os que "disputam" o quase título de "Marshall brasileiro", como é o caso de Ruy Barbosa, eleito como tal por Castro Nunes e Aliomar Baleeiro[3]. Já o jurista Roberto Rosas "elege" Pedro Lessa, falecido ministro do Supremo, como o Marshall "Tropical"[4], por sua importante e decisiva atuação na construção da figura da doutrina brasileira do Habeas Corpus. Contudo, observemos certos traços de Pedro Lessa, jurista de inegável brilho, mas que também entra para história por motivo diverso, pois, junto com Braz de Souza Arruda, antigo diretor da faculdade de Direito de São Paulo, atacou virulentamente a Faculdade de Direito do Recife, assim como o Estado do Maranhão e também a Tobias Barreto[5], de maneira ad hominem.

Em seu ataque direto a um outro colega professor, fundador da Escola do Recife, inclusive quando este já havia falecido e sem poder se defender, Pedro Lessa escreveu[6]: "Tobias Barreto, o qual — não sabemos por que—alguns espíritos frívolos têm tido a veleidade de transformar em homem de ciência, como se para o ser bastasse conhecer pela rama, e indigestamente, alguns escritores alemães, ainda não trasladados para o francês. Com a sua invencível incapacidade de raciocinar seriamente, e com proveito, sobre qualquer assumpto científico". Trata-se de notável e infeliz engano, pois é impossível não reconhecer o brilho e o relevo de Tobias Barreto. Um tal comportamento descredenciaria Pedro Lessa de merecer qualquer chance de ser elevado ao patamar de "Marshall Brasileiro", pois também denota confronto e embate, ao invés de conciliação.

Por vários aspectos, podemos dizer que o presidente da Suprema Corte à época do caso desembargador José Climaco poderia muito bem ser cogitado, com temperamentos, como nosso equivalente tropical de "Marshall", não apenas por sua já recordada adaptabilidade política, e nem exclusivamente por ter exercido a segunda mais longa presidência do STF (12 anos consecutivos), mas por seu juízo de moderação, reconhecidamente relevante para comandar o Instituto Histórico e o Supremo, em momentos de transição, e sendo capaz de "moderar a herança do passado monárquico e as expectativas republicanas"[7].

Sem dúvida, uma importante contribuição do ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro foi também o texto doutrinário publicado em 1891 sobre o Habeas Corpus[8], no qual menciona o processo de HC nº 1, e também resgata sua dignidade processual, defendendo a sua ampliação, asseverando: "como deixar sem pronto remédio a violência de que era vítima o paciente?", e prossegue, ainda questionando: "desde que não havia meio de torná-la efetiva?". E arremata: "se conclui que a jurisprudência dos tribunais, tende a fixar a inteligência da lei no sentido mais favorável ao recurso do Habeas Corpus, considerando ao mesmo tempo, e como é de reconhecida necessidade, as legitimas conveniências da justiça e os não menos respeitáveis direitos individuais".

Ajudou a sedimentar a importância do Supremo Tribunal de Justiça do Império, e foi peça fundamental na ratificação da importância do Supremo Tribunal Federal na República, denotando a mais densa respeitabilidade pelas instituições. Foi um Estadista, na mais nobre acepção do termo, na função de Chefe do Poder Judicial. Daí a importância da Suprema Corte brasileira, ontem e hoje, na preservação do Estado democrático de Direito, como farol e vigia das liberdades fundamentais, função exercida com destemor e altivez nos períodos e circunstancias mais difíceis.


[1] Confira-se nosso novo livro, no Prelo: PADUA, Thiago Aguiar. O “Common Law Tropical” e o Caso Marbury v. Madison brasileiro. No prelo, 2022.

[2] Cfr. AQUINO E CASTRO, Olegario Herculano de. Homenagem do Instituto Historico e Geografico Brazileiro: sessão extraordinária em comemoração do falecimento de S. M. e Snr. D. Pedro II: celebrada a 4 de março de 1892. Rio de Janeiro: companhia Typographica do Brazil, 1892.

[3] Cfr. BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse Outro Desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 59.

[4] Cfr. ROSAS, Roberto. Pedro Lessa, o Marshall brasileiro. Brasília: Horizonte Editora, 1985.

[5] O fato de termos tido, em São Paulo e Pernambuco, as duas primeiras Faculdades de Direito do Brasil, naturalmente, trouxe algum bairrismo e disputas competitivas. Recorde-se, pois, Braz de Sousa Arruda que cuida de refutar a alegação de que a “faculdade de Direito de Recife contribuiu muito mais que a de São Paulo para o desenvolvimento das letras jurídicas no Brasil”; e, com base em Pedro Lessa, ataca o Maranhão, dizendo que esse estado não seria tão iluminado assim, pois “limitadíssimo era o número de literatos daquela região”, também atacando Tobias Barreto, sobre quem alegou “nada ter de notável”, e que o Recife produzira apenas “um grande mestre, um jurista de grande valor”, que seria, segundo alega, Francisco de Paula Batista, e que Clóvis Bevilácqua deveria ser considerado um produto da Capital Federal, além de afirmar, de maneira contundente, a insignificância doutrinária dos autores de Pernambuco: “Os compêndios que aqui foram adoptados de professores de Pernambuco, (…) estão hoje em completo esquecimento, por serem insignificantes e de nenhum valor científico”. Trata-se de um libelo. Cfr. ARRUDA, Braz de Sousa. O estudo do Direito no Brasil. As duas Faculdades officiaes. Revista de Direito da Universidade de São Paulo, V. 32, N. 1, 1936.

[6] Cfr. LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Da complexidade do direito. Distincção entre a moral e o direito. Relações do direito com a sociologia, com a anthropologia, a sciencia economia e a politica. Revista de Direito da Universidade de São Paulo, V. 7, 1899.

[7] Cfr. DETONI, Piero. A História ilustrada e diligente de Olegário Herculano de Aquino e Castro (1892-1906). Oficina do historiador, v. 14, n. 1, p. 1-14, jan.-dez. 2021.

[8] D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 5-23

Autores

  • faz pós-doutoramento em Direito (Università degli Studi di Perugia, Univali e UnB). É doutor e mestre em Direito. Professor do programa de mestrado em Direito do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal). Professor da pós-graduação em "Direito e Poder Judiciário" da Escola Judicial de Goiás do TJ-GO. Membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais). Membro da Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal). Membro da ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil). Membro da ABrL (Academia Brasiliense de Letras). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Advogado.

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