Opinião

Dez anos da Lei de Cotas e panorama da diversidade no âmbito da magistratura

Autor

  • Marina Mendes Fikota

    é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora dos grupos de pesquisa Observatório das Audiências de Custódia (OBSAC) e A Simbiose entre o Público e o Privado ambos vinculados à Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

7 de setembro de 2022, 18h23

Promulgada em 29 de agosto de 2012, a Lei 12711 (Lei de Cotas) teve como objetivo regulamentar a política de reserva de vagas para ingresso de estudantes egressos de escolas públicas, de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e/ou com deficiência nas universidades e instituições de ensino técnico de nível médio federais. Alvo de grande resistência na época da sua implementação, a Lei de Cotas representou, especialmente para as universidades públicas, uma grande conquista em termos de democratização do acesso ao ensino.

Já no seu artigo 1º, a Lei determina que ao menos metade das vagas oferecidas para os cursos de nível superior sejam destinadas a estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Das vagas reservadas, 50% ou mais devem ser destinadas a estudantes de baixa renda, e um percentual paritário ao total de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência naquela unidade da Federação, respectivamente, deve ser garantido a esses.

Apesar de ter completado dez anos de vigência, marco legalmente estabelecido para a sua revisão, em razão de uma série de embates políticos isso não ocorreu. As cotas, especialmente as raciais, ainda geram controvérsia. Pesquisa divulgada no dia 12 de junho de 2022 demonstrou que, hoje, 50% dos brasileiros são favoráveis às cotas raciais, sendo 34% contra, 3% indiferentes e tendo 12% afirmado não saber responder [1].

Com receio de que uma nova votação pudesse acarretar um retrocesso social, com uma redução do número de vagas reservadas àqueles historicamente excluídos desses espaços, o Projeto de Lei (PL) 1788/21, de autoria do deputado Bira do Pindaré (PSB/MA), propôs a prorrogação do prazo revisional da Lei de Cotas para 2032. Isso se justificaria em razão da grande relevância social e atualidade dos seus dispositivos.

À época da edição da lei, em 2012, não se tinha talvez ideia de o quão seria relevante e a grande inclusão que se obteve com a Lei de Cotas, de modo que, hoje, as instituições federais de ensino têm, de fato, predominância de estudantes de baixa renda e daqueles pertencentes a segmentos historicamente discriminados.

Portanto, talvez não houvesse a exata dimensão de que, uma década após sua edição, a Lei de Cotas continuaria extremamente atual e, sobretudo, necessária, ainda mais considerando-se o contexto decorrente da pandemia provocada pelo novo coronavírus (Covid-19). É isso que nos leva a prever que a revisão estabelecida no artigo 7º da norma legal em questão seja de 30 e não de 10 anos [2].

O PL1788/21 já foi aprovado pelas Comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD), de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e da Educação (CE), estando pendente a deliberação no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Ressalta-se que a previsão original já era a de revisão da Lei no prazo de 30 anos, sendo o prazo de dez anos incluído apenas em 2016, por meio da Lei 13.409.

De fato, dez anos não é tempo suficiente para que a Lei de Cotas produza todos os efeitos aos quais se propõe. Em síntese, as ações afirmativas costumam ter como objetivos principais a reparação social ou histórica, a garantia de uma igualdade material e o aumento da diversidade (ou representatividade) em espaços de poder. No caso das cotas para as universidades públicas federais, tradicionalmente elitizadas e consideradas, em regra, as melhores instituições de ensino superior no país, a política de democratização do acesso ao seu corpo discente tem como objetivo adicional o de tornar possível a mobilidade social.

Remover as barreiras estruturais e institucionais erguidas ao longo de séculos, entretanto, é um processo longo. Mesmo ingressando nas universidades de ponta, alunos pobres, periféricos, não brancos e com deficiência, continuarão lidando com as inúmeras dores da desigualdade no Brasil, dentro e fora da sala de aula. Da fome e impossibilidade de comprar livros, até os ambientes sem acessibilidade e as aulas ou textos dados em língua estrangeira, uma série de fatores  internos e externos  faz com que mesmo a faculdade não seja igual para todos. Professores e servidores acostumados a lidar apenas com a classe média/alta branca, levarão um tempo para se adaptar à nova realidade e para corrigir os procedimentos e práticas injustos.

Se a adaptação da universidade, ambiente propício ao questionamento e seguro para a livre manifestação e organização discente, não será automática, mais lenta ainda será a transformação do mercado de trabalho e da sociedade como um todo.

Como caso exemplificativo, trago dados atuais referentes à magistratura no Brasil, uma das classes de maior prestígio social e detentora de significativo poder e status.

Já existem ações afirmativas e cotas para o Poder Judiciário. Em sintonia com a Lei de cotas raciais para concursos públicos, Lei 12990/12, a Resoluções 203 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou as cotas raciais nos concursos para magistratura, e a 336 nos programas de estágio do Judiciário. As Resoluções 255 e 376, estabeleceram diretrizes de incentivo à participação feminina institucional no Judiciário, e a 270 estabeleceu o uso de designação distintiva de gênero como regra e do nome social para pessoas trans, travestis e transexuais. Por sua vez, a Resolução 401 incluiu diretrizes de inclusão para pessoas com deficiência nos órgãos do Judiciário.

Ainda assim, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça [3], o panorama na magistratura brasileira ainda se mostra padronizado e elitizado. Pesquisa de 2021 indicou o percentual dos juízes que possui alguma deficiência é de 0,42% (dentre os que responderam a pesquisa), e o total de magistrados autodeclarados negros é de 12,8%. Já pesquisa de 2019 [4] constatou que apenas 38,8% dos magistrados no Brasil são mulheres, apesar de constituírem mais da metade da população brasileira. Por sua vez, mulheres negras constituem apenas 6% do total de magistrados, de acordo com dados de 2020 [5].

Esses números são recentes, posteriores à Lei de Cotas e às resoluções que regulamentaram as ações afirmativas no âmbito do Judiciário, mas permanecem indicando um cenário de desigualdade. Parte disso se dá pela insuficiência de tempo para que um número significativo de alunos cotistas, egressos de universidades, passem em concursos públicos para a magistratura, mesmo com as recentes políticas de cotas, que costumam exigir, inclusive, tempo de prática profissional. Nesse sentido, reforça-se o argumento de que dez anos não permitem avaliar de forma plena os impactos das políticas de reserva de vagas. Outra parte, no entanto, tem origem em uma série de empecilhos explícitos ou implícitos para que indivíduos provenientes de grupos socialmente marginalizados consigam adentrar espaços que sempre os segregaram.

No caso da magistratura, observamos que nos cargos mais altos da carreira a padronização do perfil dos magistrados se intensifica.

A partir de uma análise detalhada das listas de magistrados que formam os tribunais superiores: Supremo Tribunal Federal ('STF'), Superior Tribunal de Justiça ('STJ'), Superior Tribunal Militar ('STM'), Tribunal Superior do Trabalho ('TST') e Tribunal Superior Eleitoral ('TSE'), disponíveis nos respectivos sites oficiais, foi possível identificar que os ministros hoje permanecem sendo majoritariamente homens, brancos, sem deficiência, com mais de 60 anos, cisgêneros, heterossexuais e provenientes do eixo Sul e Sudeste.

Atualmente, 86 ministros integram tribunais superiores no Brasil, sendo 11 do STF, 31 do STJ (dois cargos vagos), 15 do STM, 26 do TST (um cargo vago) e três do TSE (desconsiderados os seis do STF, três efetivos e três substitutos, e os quatro do STJ, dois efetivos e dois substitutos) [6].

Analisando a atual composição dos tribunais superiores no Brasil com base nos critérios de gênero, idade, raça, deficiência, orientação sexual, estado da federação e classe social de origem, podemos observar que, desses 86 membros dos tribunais superiores, 16 são mulheres e apenas 1 é negro, o ministro do STJ, Benedito Gonçalves [7].

Nenhum ministro foi identificado como sendo pessoa com deficiência ('PCD'), declaradamente homossexual ou transgênero, se algum o for, essa informação não está publicizada.

No que se refere à faixa etária, dos 86 ministros, 35 são idosos (65 anos ou mais), 20 têm entre 60 e 65 anos e 23 têm entre 44 e 59 anos e oito não tiveram a idade identificada. Além disso, 42 são provenientes do Sudeste, 17 do Nordeste, 16 do Sul, 6 do Centro Oeste e um do Norte, dois são naturalizados brasileiros e dois não tiveram a origem identificada.

A persistência da ausência de diversidade no âmbito da magistratura é simbólica. Ela mostra o longo caminho que será preciso trilhar para que os mais diversos espaços de tomada de decisão e exercício de poder possam se democratizar. Dez anos podem parecer muito, mas em uma perspectiva histórica eles correspondem a um período curtíssimo. É preciso mais tempo para que o país possa reparar dívidas de 500 anos ou mais.

Apesar disso, uma série de avanços são visíveis. Desde que adotou a política de cotas, em 2014 [8], a Universidade Federal do Rio de Janeiro, por exemplo, teve um aumento de 71% no número de alunos que se autodeclaram negros [9]. As gerações de alunos cotistas que chegam ao mercado de trabalho como mão de obra qualificada contribuem para a construção de um país menos desigual e excludente. O ingresso não é tudo, mas é muito. A partir dele, as estruturas e instituições vão, por meio de um longo processo de adaptação, cedendo e se modificando para acomodar aqueles que ocupam um espaço que sempre foi seu por direito.

Ainda falta muito para que o Brasil se torne o país que ele pode ser, mas a Lei de Cotas representa um passo dado na direção certa.

 


[2] Justificativa do projeto de Lei 1788/21 de autoria do deputado Bira do Pindaré, PSB/MA. 12 mai. 2021. Inteiro teor disponível no Portal da Câmara dos Deputados. Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 29 ago. 2022.

[3] Relatórios Pessoas com Deficiência no Poder Judiciário https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/pesquisa-pcd-no-pj-1.pdf. Acesso em 29 ago. 2022. e Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-290921.pdf. Acesso em 29 ago. 2022.

[4] Diagnóstico de Participação Feminina no Poder Judiciário. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_RELATORIO_Participacao_Feminina-FIM.pdf. Acesso em 29 ago. 2022.

[5] A participação feminina nos concursos para magistratura. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/08/relatorio-participacaofeminina.pdf. Acesso em 29 ago. 2022.

[6] Dados referentes ao dia 06 de maio de 2022.

[7] Foi dada preferência à utilização do critério de heteroidentificação fenotípica a partir de fotos dos referidos ministros. Esse critério permite eventuais discordâncias, uma vez que a racialização não é um processo estático, e as pessoas podem ser lidas socialmente de formas múltiplas por diferentes indivíduos. Ainda assim, optou-se por essa metodologia em razão da divergência considerável com relação aos dados obtidos pelo Conselho Nacional de Justiça. Esses incluem mais ministros negros nos Tribunais Superiores, mas se basearam em formulários preenchidos e enviados pelos próprios, que, eventualmente, podem sofrer influências de interesses pessoais dos ministros ou tribunais em questão (tendo em vista, por exemplo, o objetivo de se atingir a meta do CNJ de aumento do número de pretos e pardos na composição dos mesmos).  Atualmente, as bancas de heteroidentificação de políticas de ações afirmativas raciais adotam, como melhores práticas, o critério fenotípico de análise por fotos e/ou entrevistas, posterior à autoidentificação dos candidatos.

[8] A Lei 12711/12 previa o prazo de quatro anos para o cumprimento integral dos seus dispositivos, conforme dispõe o artigo 8º.

Autores

  • é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora dos grupos de pesquisa Observatório das Audiências de Custódia (OBSAC) e A Simbiose entre o Público e o Privado, ambos vinculados à Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

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