Opinião

Atos constitucionais provisórios no alvorecer das revoluções e dos golpes

Autor

  • Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

    é advogado e consultor previdenciário bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale membro do grupo de estudos "Teoria Crítica e Constitucionalismo" da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MG — Subseção Contagem.

6 de setembro de 2022, 21h32

Impera "a promiscuidade do Direito, a serviço de qualquer valor que exprima hegemonia nas pautas da agenda política" (Athánis Molas Rodrigues, 2014, p. 20) [1]

A obra Elementos de Direito Constitucional, do professor Michel Temer, foi publicada pela primeira vez em 1982 e é considerada um clássico dos estudos constitucionais no Brasil. Um trecho específico da obra [2] sintetiza brilhantemente o tema dos atos constituintes ou atos constitucionais [3] que são fruto do poder constituinte originário mas possuem como principal característica a sua transitoriedade.

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Por conseguinte, Temer (1997) explica que o poder constituinte originário "visa criar o Estado. Antes dessa manifestação, o Estado, tal como veio a ser positivado, não existia. Existe, é, a partir da Constituição. Ressalte-se a ideia de que surge novo Estado a cada nova Constituição, provenha ela de movimento revolucionário ou de assembleia popular. O Estado Brasileiro de 1988, não é o de 1969, nem o de 1946, de 1937, de 1934, de 1891, ou de 1824. Historicamente é o mesmo. Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente. A cada manifestação constituinte, editora de atos constitucionais como Constituição, Atos institucionais e até Decretos (veja-se o Dec. 1, de 15.11.1889, que proclamou a república e instituiu a Federação como Forma de Estado), nasce o Estado. Não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto [constitucional] em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se novo Estado" (TEMER, 1997, p. 33) [4].

Nesse novo Estado, possivelmente tem-se o mesmo povo, o mesmo território e soberania, porém, o governo é novo e faz de questão de exercitar seu poder conquistado através das normas que pode editar livremente. Em outras palavras, se antes a constituição vigente figurava no topo da "pirâmide de Kelsen", nesse novo momento a mesma será espezinhada pelos novos líderes que a considerarão letra morta. O poder de fato — não discutindo aqui a sua legitimidade [5] — é obtido através de uma revolução ou golpe de estado, independentemente da localização de seus atores no espectro político.

Ferraz Jr. citado por Lenio Streck (2005) observa pertinentemente que "nos movimentos revolucionários, o direito anterior à revolução é relativizado e atualizado em função da nova situação, […] muito embora, quanto ao direito novo, pós-revolucionário, tende-se a privilegiar a vontade do legislador e a fazer prevalecer as soluções legislativas sobre as judiciais que, a todo custo e no máximo possível, devem a elas se conformar" (FERRAZ JR. APUD STRECK, 2005, p. 104) [6].

Logo, os vencedores subvertem "as regras do jogo" a seu bel-prazer, sem respeitar a normatividade do regime anterior. No mesmo ato, apropriam-se do exercício do poder constituinte originário — não da sua titularidade, que pertence ao povo — e produzem normas outorgadas de natureza constitucional para estabelecer um marco legal do novo regime político. Essa é uma exigência do princípio da legalidade que vem norteando o Estado Moderno de Direito nos últimos dois séculos, ou, ao menos, da necessidade de legalidade minimamente aparente, ainda que apenas nominal, tão necessária a esses governos.

Tais atos constitucionais de caráter provisório foram um instrumento muito utilizado na história do Brasil nos últimos 130 anos e também coincidiram cronologicamente com acontecimentos históricos relevantes, usualmente momentos dramáticos de ruptura política. São exemplos o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, emitido no mesmo dia da proclamação da república pelo marechal Deodoro da Fonseca; o Decreto nº 19.398 de 11 de novembro de 1930, emitido apenas oito dias após Getulio Vargas assumir o cargo de presidente provisório no contexto na Revolução de 1930; o Ato Institucional nº 1 de 9 de abril de 1964, baixado logo em seguida ao golpe militar de 31 de março; e, em certa medida, a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de Outubro de 1969, que ratificou todos os atos institucionais baixados pelo governo ditatorial, manteve em vigor o famigerado AI-5 e ainda inaugurou o que os historiadores chamam de "os anos de chumbo".

Cada uma das normas citadas acima foram as respectivas leis supremas dos períodos nos quais as constituições anteriores tiveram sua normatividade invalidada pelos então novíssimos ocupantes do poder central. Trata-se do "interregno constitucional", segundo Jorge Miranda (2003, p. 108) [7].

Resta claro que o poder constituinte que ressurge nesses momentos históricos é "um tipo de poder constituinte fundacional adjetivado de revolucionário, porque desconhece legalidade constitucional preexistente. Exercita-se por instâncias de fato, a exemplo dos regimes de emergência, dos governos provisórios ou de transição e dos prolongamentos de administrações paralelas" (BULOS, 2011, p. 393) [8]. Não obstante, o poder de criar a norma que funda o Estado não se esgota na edição do ato constitucional transitório, tendo em vista a necessidade da elaboração e aprovação da Constituição formal que lhe sucederá, como texto constitucional definitivo.

De qualquer modo, os atos constitucionais provisórios de fato inauguraram novas versões do Estado brasileiro, ora marcando a passagem do "Império" para a "República", ora da chamada "República Velha" para a "Era Vargas", ora servindo de marco legal para o início da ditadura militar no Brasil e para o recrudescimento do seu autoritarismo nos nefastos "anos de chumbo". São documentos históricos e, ao mesmo tempo, soluções jurídicas no mínimo interessantes que surgiram da necessidade de legitimação de novos regimes políticos que manejaram revoluções ou golpes de estado exitosos no país, para consignar o rompimento com a ordem jurídica anterior em um texto legal eminentemente transitório. Em alguns casos, a ordem jurídica anterior, ainda que democrática, não pôde se restabelecer ante a força dos usurpadores.


[1] RODRIGUES, Athánis Molas. Raízes integralistas da teoria tridimensional do direito: história das ideias de Miguel Reale (1933-1953). 2014. Dissertação (mestrado em Direito) — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.

[2] Este excerto do livro também foi citado por Uadi Lammêgo Bulos no seu Curso de Direito Constitucional e por Pedro Lenza no seu didático Direito Constitucional Esquematizado.

[3] Estes atos não devem confundidos com documentos prévios como os anteprojetos de constituições.

[4] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 13ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1997.

[5] Otto Kirchheimer trata com maestria o tema da Legalidade e da Legitimidade no texto que leva esse mesmo nome (Legality and Legitimacy), sob o prisma da Teoria Crítica e no contexto da Alemanha de Weimar. Recomenda-se a leitura.

KIRCHHEIMER, Otto. Legality and Legitimacy (1932). Trad. Leena Tanner; Keith Tribe. In: TRIBE, Keith (Ed.). Social Democracy and the Rule of Law – Otto Kirchheimer and Franz Neumann. London: Allen & Unwin, 1987. p. 130-148.

[6] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

[7] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

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