Pensando a Lápis

Desenvolvimento e direitos humanos devem andar de mãos dadas

Autor

  • Belisário dos Santos Jr.

    é advogado ex-secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo (1995-2000) membro da Comissão Internacional de Juristas e membro fundador da Comissão Arns de Direitos Humanos.

5 de setembro de 2022, 8h00

O final do segundo milênio foi extremamente instigante, valendo apenas rápida consideração sobre as profundas transformações ocorridas no século passado. Exemplos de profundas transformações: o abandono da ótica cartesiana e do enfoque mecanicista para as ciências físicas/a revolução de Einstein/a evolução biológica/o conceito de que o universo está em permanente evolução/a revolução tecnológica/a acumulação do saber genético, só para exemplificar.

Sempre incomoda um pouco rever o fato de que algumas das grandes conquistas tenha emergido em épocas de conflito ou por razões militares. O avião, o avanço nas comunicações, a internet, passando, às vezes, a noção de que, não obstante evitável muitas vezes, o conflito era útil.

Essa ideia da razoabilidade do conflito é inerente à própria cultura de competição que animou e que ainda anima parte da nossa cultura.

O progresso industrial, divulgado ampla e competentemente por uma mídia cada vez mais poderosa e abrangente, criou e ampliou uma cultura de identificação do consumo sem restrição com qualidade de vida. Sempre a questão da aparência em confronto com a realidade. Seguramente esse dado cultural, aliado a fenômenos de urbanização sem regras e à exclusão de grandes massas dos benefícios desse progresso, tem lugar garantido como um dos fatores da violência e, claro, da criminalidade.

O alto desenvolvimento da tecnologia e do campo das comunicações ocorreu sem que as contradições desse mundo avançado, com a ampliação da desigualdade, da pobreza e da fome, tenham sido apaziguadas.

A implantação do sistema 5G com todas as suas possibilidades ainda convive com a notícia de que continua a morrer gente com frio e fome nas ruas de São Paulo. E a pandemia, de que vivemos talvez os últimos momentos, ampliou as desigualdades existentes e aprofundou a completa exclusão digital dos menos favorecidos.

Merece ser relembrada a consideração de que Estado de Direito deve ser um estado a caminho do fim da fome e da exclusão. Define-se Estado de Direito como a estrutura de proteção legal dos direitos humanos. Os direitos humanos, o Estado de Direito e a democracia estão interligados e se reforçam mutuamente, formando parte dos valores e princípios fundamentais, universais e indivisíveis das Nações Unidas.

Esse texto é parte da declaração adotada pela 67ª Assembleia Geral das Nações Unidas, de setembro de 2012, apelando ao reforço do Estado de Direito no mundo. Navi Pilay, jurista sul-africana, alta comissária de direitos humanos à época, acrescentou que as normas e padrões internacionais devem ser a base do Estado de Direito, assim, os Estados devem abraçar a nível nacional o que se comprometeram a fazer em nível internacional.

Se queremos uma sociedade livre, justa e solidária, como escrevemos na Constituição da República de 1988, devemos respeitar e incentivar os fundamentos do Estado democrático de Direito que estão na cidadania e na dignidade da pessoa humana, garantindo o desenvolvimento nacional, no sentido de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. O Estado de Direito é, portanto, uma garantia para o desenvolvimento. Economia e Direitos Humanos (DDHH) devem andar de mãos dadas. Não se opõem.

Não por outra razão, os líderes mundiais de 193 países, reunidos na Assembleia Geral da ONU de setembro de 2015, considerando os notáveis avanços alcançados com o compromisso dos objetivos de desenvolvimento do milênio (2000 a 2015), e sem perder de vista os milhões de pessoas que acordam sem saber se vão se alimentar (hoje em torno de 800 milhões), terem criado a estratégia dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (agenda 2015 a 2030), um largo espectro de políticas sociais, com temas, subtemas e metas, no sentido de criar um modelo global de governança com a finalidade de acabar com a pobreza, proteger o ambiente e promover a prosperidade e o bem-estar de todos até 2030.

A Comissão Internacional de Juristas, entidade voltada para atividades de defesa do Estado de Direito e dos direitos humanos, divulgou em março de 2019 a Declaração de Tunis.

"Estado de Direito é essencial para a implementação adequada de outras importantes prioridades globais acordadas internacionalmente, como proteção ambiental e desenvolvimento sustentável, as quais, como afirma a Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de 2030, devem ser orientadas pelos propósitos e princípios da Carta da Nações Unidas e fundamentada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos tratados internacionais de direitos humanos".

Seria interessante rememorar que o Secretário Geral da ONU, o português Antonio Guterres, já em fevereiro de 2020, havia lançado um Chamado à Ação no sentido de colocar a dignidade e os compromissos da Declaração Universal de Direitos Humanos no cento do nosso cotidiano. Os DDHH precisam estar na frente e no centro. Mas, alertou também que o cenário é de um crescente étnico-nacionalismo, populismo, autoritarismo e um retrocesso contra os DDHH.

No Brasil recente precisamos de atenção especial. Segundo dados da importante Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), divulgados pelo portal UOL, o número de pessoas que passam fome no Brasil passou de 19,1 milhões para 33,1 milhões e a quantidade de pessoas e famílias com mais de US$ 1 bilhão foi de 42 para 62 (revista Forbes), entre 2020 e 2022.

A Agenda das Nações Unidas (Agenda 2030) deve constituir um estímulo aos governos com forte compromisso social ou, no mínimo, um norte para todos, fornecendo pistas para diminuir desigualdades por meio de objetivos ambiciosos divulgados com parâmetros e métricas para seu monitoramento.

Entre os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), aprovados pelo Brasil, estão: a erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, educação de qualidade, água potável e saneamento, redução das desigualdades, ação contra a mudança global no clima, paz, justiça e instituições eficazes e parcerias e meios de implementação do desenvolvimento sustentável.

Neste último ODS (de número 17), incentiva-se os países aderentes a investir fundamente em tecnologia:

"17.6. Melhorar a cooperação Norte-Sul, Sul-Sul e triangular regional e internacional e o acesso à ciência, tecnologia e inovação, e aumentar o compartilhamento de conhecimentos em termos mutuamente acordados, inclusive por meio de uma melhor coordenação entre os mecanismos existentes, particularmente no nível das Nações Unidas, e por meio de um mecanismo de facilitação de tecnologia global
17.7. Promover o desenvolvimento, a transferência, a disseminação e a difusão de tecnologias ambientalmente corretas para os países em desenvolvimento, em condições favoráveis, inclusive em condições concessionais e preferenciais, conforme mutuamente acordado
17.8. Operacionalizar plenamente o Banco de Tecnologia e o mecanismo de capacitação em ciência, tecnologia e inovação para os países menos desenvolvidos até 2017, e aumentar o uso de tecnologias de capacitação, em particular das tecnologias de informação e comunicação."

Ocorre que, há uma luz amarela acendendo no campo do cumprimento no Brasil dos ODS. Estudo divulgado pela Câmara aponta que o Brasil não apresenta progresso satisfatório em nenhuma das 169 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, estabelecida pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2015. Das 169 metas, 54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram progresso insuficiente (fonte: Agência Câmara de Notícias).

Os dados constam no Relatório Luz 2021, produzido por entidades da sociedade civil, que mostra o grau de implementação dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) no Brasil. O relatório foi lançado em audiência pública em julho de 2021 na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados.

É, assim, extremamente preocupante o veto presidencial à adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como diretriz do Plano Plurianual do Brasil (2022-2023), justificado por razões de ordem jurídica (os ODS são recomendações — o PPA é vinculante), porque sem forte estímulo governamental e sem recursos os ODSs viram mera retórica sem compromisso qualquer com a realidade trágica da desigualdade no Brasil, como se viu do Relatório Luz 2021.

A boa notícia é que a sociedade civil já está mobilizada em torno da Agenda 2030, ao mesmo tempo que Tribunais de Contas (como o TCE-SP), Prefeituras, Estados, começam a incluir os ODSs como guia para suas políticas públicas, divulgando e chamando o compromisso público com essa Agenda 2030, o que tem substrato jurídico de vez que a eficiência da administração é um dos princípios básicos previstos pelo artigo 37 da C.F. para análise de sua atuação.

O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Portaria nº 133/2018, criou comitê interinstitucional para propor integração das metas do Poder Judiciário com as metas e indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030). Ao início de 2022, o CNJ já havia recomendado aos órgãos do Poder Judiciário a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Recomendação 123/22). O Brasil não é uma ilha, precisa estar integrado ao patamar civilizatório em matéria de respeito à cidadania.

Já tive oportunidade de afirmar que as declarações de Direitos Humanos — a Americana como a Universal, colocam como deveres a tolerância e a convivência; ou em outras palavras: são exigências da humanidade — o respeito ao outro e à sua dignidade e o reconhecimento da importância da vida social e da contribuição que todos devemos a ela dar.

Essas Declarações e outras propiciam pistas para o Direito ao Desenvolvimento (Declaração Universal — artigo XXII, Declaração sobre preconceitos sociais da Unesco em 1978, em resoluções da ONU, em 1981, p.ex.), finalmente estabelecido como direito inalienável em 1986 (Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento).

A Declaração sobre o direito ao desenvolvimento, coloca-o como o direito-essência, ao dizer, em seu artigo 2º, que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. Acrescenta ainda que os Estado têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento.

Logo a seguir, em 1988, a Constituição da República estabeleceu (artigo 3º) o desenvolvimento como objetivo fundamental, ao lado da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais e regionais. No artigo 170, o direito ao desenvolvimento volta a ser citado, indiretamente, como princípio geral da atividade econômica. No artigo 174, o Estado volta a ser lembrado como indispensável agente normativo e regulador da atividade econômica, com funções de fiscalização, incentivo e planejamento.

Tudo conjugado, vê-se que o Estado tem o dever de buscar o desenvolvimento humano, respeitar o Estado de Direito, de que o desenvolvimento e a democracia são esteios, e que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, longe de serem meras recomendações, são pistas das obrigações concretas de cada país para cumprir seu papel nos cenários nacional e internacional.

O futuro próximo no Brasil deverá dar lugar à reconstrução das agendas de DDHH e da democracia, à retomada do desenvolvimento, à prática diária do respeito à Constituição, na forma de políticas públicas, em que sociedade civil e Estado interajam, tendo a Agenda 2030 das Nações Unidas como linguagem comum e instrumento principal para atingir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e, por meio deles, a paz e a harmonia social que os constituintes de 1988 nos legaram para cumprimento e respeito. Nada está pronto. Mas a missão é urgente.

Autores

  • é advogado, sócio de Rubens Naves Santos Jr Advogados, sócio do Iasp e presidente de sua Comissão de Direitos Humanos, ex-secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo (1995-2000), membro da Comissão Internacional de Juristas e membro fundador da Comissão Arns de Direitos Humanos.

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