Opinião

Ressurgimento e expansão do discurso populista: a democracia sob ataque

Autores

  • Aroldo Nascimento

    é juiz de Direito na Bahia ex-professor de Direito Eleitoral com especialização em Direito Público Processual e Eleitoral e mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade Portucalense no Porto em Portugal.

  • Daiane Marylin Vaz

    é juíza de Direito formada pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná pós-graduada em Processo Civil e mestranda pela Universidade Portucalense (UPT).

5 de setembro de 2022, 15h04

Tendo o mundo ocidental passado por longo período de paz pós-guerra, e com o sucesso das democracias liberais na maior parte dos países, ora percebe-se o ressurgimento e expansão de um discurso populista suportado principalmente por uma extrema-direita radical nacionalista, já se falando numa suposta crise da democracia liberal. E daí, exsurge a questão nuclear do presente artigo: como resistir a tal onda populista?

Destarte, após fazermos breve análise sobre a democracia, partiremos para o estudo específico do populismo, fazendo incursão em algumas de suas concepções mais conhecidas, além de destacar as suas novas facetas.

Assim, buscando inicialmente melhor compreender a própria noção de democracia, o artigo avança e busca oferecer algumas tentativas de resposta a tão delicada questão.

Estado democrático
Surgida ainda na cidade-estado de Atenas a primeira forma de democracia possibilitou que parcela do povo adulto pudesse participar diretamente das decisões da polis, afastando-se, contudo, da vida pública as mulheres e escravos. De todo modo, iniciava-se ali uma experiência inequivocamente revolucionária, trazendo o cidadão para o centro das questões mais relevantes da comunidade.

Com efeito, com o aumento populacional houve a necessidade de se escolherem representantes do povo para integrarem a vontade do Estado, com uma atuação indireta do cidadão.. Observara John Stuart Mill que sendo "impossível a participação pessoal de todos, (…), o tipo ideal de um governo perfeito só pode ser o representativo" [1] Assim, a partir de uma atuação inicialmente direta, o povo acabou por delegar a terceiros a nobre função de participar da vontade política.

Deveras, é forçoso constatar que tal alteração acabou progressivamente por limitar o exercício efetivo da participação popular, esgotando-se no mero exercício do voto, e gerando gradualmente uma grave crise de representatividade.

Democracia liberal
Ainda que ciente da imensa dificuldade em se definir uma locução formada por duas palavras que, isoladamente, possuem múltiplos significados no tempo e no espaço, adotar-se-á aqui a compreensão de democracia liberal como o regime no qual há uma participação do povo de forma livre e justa, somada a um plexo de direitos decorrentes inicialmente das revoluções liberais do séc. XIX, e ampliando-se ao longo do tempo, mormente após a segunda grande guerra, e se espraiando ao longo de quase toda a sociedade ocidental.

Aliás, o sucesso da democracia liberal, principalmente com a queda do muro de Berlim, levou o filósofo político Francis Fukuyama a declarar que a democracia liberal seria o resultado final ideológico da espécie humana, sendo "a democracia liberal a única aspiração política coerente que se espalha por diferentes regiões e culturas em todo o mundo" [2].

A crise da democracia
Nada obstante, vem-se falando cada vez mais num processo de erosão democrática, inexistindo, contudo, uma resposta clara e precisa sobre as suas causas. O sociólogo Manuel Castells [3], vg, atribuiu tal estado de coisas ao distanciamento entre o eleitor e seus representantes. Lado outro, há quem culpe o processo de globalização e, imbricada nesta última, a grave crise econômica de 2008, que resultou no aumento da taxa de desemprego em diversas partes do mundo.

Seja qual for a melhor resposta, parece irrecusável a conclusão de que presenciamos uma dispersão grave no processo de representação política, havendo uma verdadeira desconexão entre o interesse dos eleitores e de seus representantes. Ademais, parece irresistível a compreensão da existência de uma insatisfação generalizada das pessoas quanto ao rumo de suas vidas, em que a incerteza do futuro passou a ser uma constante.

Inserido, pois, num ambiente de ressentimento e descontentamento, é que se percebe o ressurgimento de líderes marcadamente populistas. Pontua Gil B. Ferreira [4]:

"a relação entre 'crise' e 'populismo' tem sido um dos temas constantes na literatura social e política desde os inícios do século passado. Não apenas as 'crises' são perspetivadas como momentos particularmente oportunos para o ressurgimento de atores populistas, como favorecem as divisões sociais e políticas e potenciam os discursos que separam e estimulam tensões — 'povo' e 'elites', governantes e governados, sistema e indivíduos comuns."

Populismo
Longe de ser um fenômeno recente, o populismo vem sempre reaparecendo em algum ponto no espaço e/ou tempo, e sua definição não é tarefa fácil, nem mesmo àqueles que se debruçam sobre o tema, tal como bem observado por P. C. Dibai [5]:

"De definição difícil, o populismo, que não é uma exclusividade do espectro, aparece na literatura de três formas principais: como um estilo ou uma postura política; como uma tendência à moderação com vistas na disputa eleitoral; e como uma característica própria dessa nova fase da direita radical, em diferenciação às foras do passado. De maneira geral, as tentativas de conceituação se aproximam muito do que seria o próprio radicalismo de direita, porém com aspectos adicionais, normalmente relacionados à presença de um líder carismático; às performances ofensivas e discursos inflamados de exclusão contra outgroups; ou como uma nova forma de classificar as partes mais moderadas da direita radical, que não querem aparecer para o eleitorado como antidemocráticas, com receio de perder (ou deixar de ganhar) votos."

Assim, parece claro inexistir uma compreensão única daquilo que se entende como populismo. Para o cientista político Cas Mudde [6], vg, o populismo seria uma doutrina maniqueísta que antagoniza o "povo" honesto e puro, de um lado, e a "elite" corrupta, do outro. Outros destacam exatamente a ausência de uma ideologia clara em tais movimentos. Assim, enquanto na América Latina tem-se um populismo marcadamente de esquerda, percebe-se um populismo com nítido viés de direita na Europa.

Por outro lado, Carlos de la Torre (apud Estrela Serrano) [7], identifica o discurso como a principal característica do populismo, sendo, segundo este, demasiadamente simplista, adotado pelo senso comum, mas destituído de qualquer base científica. Outros autores, por sua vez, percebem o populismo como mera estratégia política para alcançar ou manter o poder.

Destarte, são muitos os entendimentos sobre o que seria, de fato, o populismo. Nada obstante, parece ser difícil excluir inteiramente quaisquer destas características acima citadas, parecendo intuitiva a presença de, ao menos, três elementos básicos ao neopopulismo, quais sejam: a personalização do líder, o maniqueísmo e o conhecimento da mídia.

A rigor, o primeiro destes elementos, a personalização do líder, já aponta para o aspecto antidemocrático do populismo, bem percebido por Jan-Werner Müller [8], vez que a atribuição da condição de salvador a um líder é, por si só, uma ideia nada plural.

Já o maniqueísmo revela-se pelo antagonismo NÓS x ELES, entendendo-se ELES como a elite, e NÓS, o povo, bem evidenciado pelo slogan de campanha "Um Presidente como Você", do ex-presidente peruano Alberto Fujimori.

Por fim, o conhecimento da mídia parece ser uma característica comum nos movimentos neopopulistas.

Neopopulismo
É de se reconhecer, de logo, que estamos a viver um período histórico de ascensão do populismo, ao qual a filósofa política Chantal Mouffe denominou de "momento populista", possuindo uma certa uniformidade de atuação, tratando-se de um movimento de extrema direita, formado basicamente por brancos nacionalistas cristãos e que vem se alastrando pelo mundo.

Assim, seja na Europa, com a ascensão de líderes populistas em países como a Turquia, a Hungria, Portugal, Polônia, Itália, seja em países pouco prováveis como o Brasil, com longa tradição populista de esquerda, ou mesmo nos EUA, país com maior tradição democrática da atualidade, o neopopulismo de extrema-direita vai progressivamente se aproveitando do cenário de crise existencial democrática, colocando-se como opção atraente a muitos, além de, simultaneamente, colocar em causa conquistas caras à sociedade ocidental, tal como a proteção das minorias.

Neopopulismo e mídia
Fenômeno que merece especial destaque nesta nova configuração do populismo é a fluidez do tratamento com as novas mídias.

É, pois, nessa seara, que, hodiernamente, nota-se o uso massivo das redes sociais por tais movimentos, aproveitando-se dum ambiente desregulado, aberto e onde predominam opiniões pessoais, sem base científica, para espalhar meias verdades, inverdades, ou até mesmo teorias conspiracionistas.

No mais, mesmo diante da mídia convencional, certo é que os movimentos populistas se beneficiam de suas publicações, ainda que muitas vezes de maneira não intencional, vez que tais líderes, mediante afirmações polêmicas, acabam por chamar a atenção dos meios de comunicação.

Estrela Serrano [7], em artigo sobre o líder português André Ventura e seu partido, o "Chega", evidencia bem tal situação, declinando "que faz parte da estratégia dos líderes populistas tocarem assuntos sensíveis de interesse popular, tal como a imigração, que assegura constante interesse da mídia".

No ponto, chama especial atenção as inverdades divulgadas pelas redes sociais e outras plataformas no período específico da pandemia, que expuseram parte da população mundial ao risco de transmissão do vírus, tal como a que sustentava que as vacinas conteriam espécie de chip, ou a que aduzia que as vacinas seriam um projeto dos "ricos" para extermínio dos "pobres". Lembra Gil Ferreira [4]:

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, alertava, ainda nos primeiros meses da pandemia, que, com a chegada e a disseminação da Covid-19, "na OMS, não estamos apenas a lutar contra o vírus, mas também contra os teóricos dos trolls e da conspiração que espalham informações erradas e prejudicam a resposta ao surto" (World Health Organization (WHO), 2020).

Aqui, mais uma vez, notou-se um discurso uníssono do populismo de direita, reivindicando supostos direitos de parte da população, tal como o direito à integridade corporal, à liberdade de locomoção, dentre outros. Assim, buscando se capitalizar politicamente com parte do eleitorado, o discurso colocou em causa a vacinação, e, de um modo geral, as medidas restritivas.

A resposta democrática
De logo, convém reiterar o nosso posicionamento de que o populismo, quando começa a tensionar as instituições democráticas, não deve ser aturado. A tolerância, ainda que basilar à democracia, deve ter seu limite exatamente quando põe em risco a sua própria existência, como bem expressado por Karl Popper, em seu paradoxo da tolerância.

É de se destacar que a resistência aos ataques populistas depende do maior ou menor grau de consolidação dos valores e instituições democráticas do país, não sendo possível elaborar uma fórmula geral que sirva para toda e qualquer circunstância. De toda sorte, alguns caminhos podem ser sugeridos, tais como:

– A busca de respostas a questões sociais reais, tal como o problema da segurança pública.
– A atuação de ofício, quando cabível, ou quando provocadas, das instituições democráticas, visando limitar arroubos autoritários de líderes populistas, atuando sempre dentro dos limites da lei.
– A atuação concertada da comunidade internacional.
– A busca de ferramentas institucionais hábeis a reaproximar os representantes eleitos e seus representados, os eleitores.
– A necessária regulação da atividade dos lobistas.
– O resgate do exercício direto do sufrágio, principalmente em matérias de baixa complexidade.

Podemos trazer alguns exemplos de resistência democrática, tal como as reiteradas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia em face ao Estado polonês pelos reiterados ataques ao Poder Judiciário daquele país. A resistência democrática também se revela nas prisões e processos de diversos cidadãos envolvidos no ataque ao Capitólio nos EUA, ou ainda no pedido de Impeachment formulado em face do ex-presidente norte-americano. Outro exemplo recente é o conjunto de medidas decorrentes da justiça eleitoral brasileira, buscando dar maior publicidade e segurança ao sistema eletrônico de votação, alvo de reiterados ataques.

Vê-se, pois, que há formas possíveis de resistência aos ataques populistas atuais. São ferramentas que não ferem os valores democráticos e devem ser postas em cima da mesa.

Assim, em vez de apenas desqualificar tais líderes, é fundamental que as instituições democráticas encontrem respostas aos novos desafios que surgem, sejam de ordem econômica e/ou social.

Por fim, convém lembrar que a democracia já fora posta em xeque em outras oportunidades, e vem conseguindo se sobressair, ainda que ao custo de intervalos autoritários. Assim, a democracia deve fincar bandeiras claras à população, respeitando a alteridade dentro da lei. Fora desta, não deve tergiversar em aplicar as sanções cabíveis, mas sempre de forma pública, e garantindo o contraditório substantivo e a ampla defesa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] MILL, John Stuart. Considerações sobre o Governo Representativo. Trad.: Manoel Innocêncio de Lacerda. Ed. Universidade de Brasília. p.38.
[2] FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Ed. Gradiva. Trad: Maria Goes. p.18. ISBN 972-42-0562-2.
[3] CASTELLS, Manuel. Ruptura – a crise da democracia liberal. Trad: Joana Angélica d'Ávila Melo. Zahar ed.2018. ISBN: 978-85-378-1767-4
[4] FERREIRA, Gil Baptista. «Teorias da Conspiração em Tempos de Pandemia Covid-19: Populismo, Media Sociais e Desinformação», Comunicação e sociedade [Online], 40 | 2021, posto online no dia 20 dezembro 2021, consultado o 25 maio 2022. Disponível em: http://journals.openedition.org/cs/6074
[5] DIBAI, P. C. A Ascensão do Radicalismo de Direito no Mundo: Novos Dilemas de um Velho Problema. In MEDIAÇÕES, Londrina, v. 25, n. 3, p. 728-743, set-dez. 2020. DOI: 10.5433/2176-6665.20203v25n3p728
[6] MUDDE, Cas. The populista Zeitgeist. Government and Opposition. 2004. DOI: 10.1111/j.1477-7053.2004.00135.x. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/government-and-opposition/article/populist-zeitgeist/2CD34F8B25C4FFF4F322316833DB94B7
[7] SERRANO, Estrela. Populismo em Portugal: o fator media. Revista Media &Jornalismo. ISSN: 1645-5681 I ISSN digital: 2183-5462. DOI: https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_12. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/mj/article/view/2183-5462_37_12
[8] MULLER, Jan-Werner. What is populism?. 2016. University of Pennsylvania Press. ISBN 9780812248982

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