Opinião

ADI do piso salarial dos enfermeiros: os equívocos da decisão de Barroso

Autor

  • Edilton Meireles

    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa doutor pela PUC-SP desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

5 de setembro de 2022, 18h02

O ministro Roberto Barroso, ao apreciar, em medida liminar, a ADI nº 7.222, determinou a suspensão da aplicação integral da Lei nº 14.434/22. Como sabido, por essa lei foi fixado o piso salarial dos enfermeiros, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira, beneficiando os empregados públicos e privados e os servidores estatutários da União, estados, Distrito Federal e municípios.

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A ADI 7.222 foi proposta pela Confederação Nacional de Saúde (CNS), que representa os hospitais e estabelecimentos e serviços de saúde do setor privado, incluindo as entidades públicas submetidos às normas de direito privado.

A decisão do ministro Barroso foi no sentido de determinar a suspensão da eficácia de forma integral da Lei nº 14.434/22. Essa decisão, porém, contém diversos equívocos, sendo que alguns — diríamos — primários.

O primeiro dos equívocos se refere à determinação da suspensão da eficácia da lei inclusive em relação ao setor público vinculado à administração direta. Ora, é sabido que a CNS não representa os entes da administração direta. Logo, ela não tem legitimidade para pedir a suspensão dos dispositivos que dispõem sobre os salários devidos aos servidores estatutários, submetidos ao direito público, da União, estados, Distrito Federal e municípios. Quando muito, a suspensão, na área pública, deve se limitar aos empregados públicos vinculados às entidades submetidas ao regime de direito privado.

E, neste ponto, por certo que a CNS também não tem legitimidade para questionar qualquer impacto financeiro da mencionada lei em relação aos entes da administração direta. A decisão, aliás, neste ponto, revela-se surpreendente, inclusive quanto ao não enfrentamento do tema relacionado a pertinência temática da CNS em questionar o impacto financeiro no setor público! Logo, impõe-se a mudança da decisão neste ponto de modo imediato, pois ela não se sustenta conforme os precedentes do próprio STF, dada a absoluta ausência de pertinência temática entre a atuação da CNS e o pedido de suspensão da lei no ponto que trata dos salários dos servidores estatutários e do impacto nas finanças públicas.

Resta o setor privado. Quanto ao setor privado, o ministro Barroso indicou dois fundamentos para concessão da medida liminar. O primeiro deles é o impacto financeiro nas entidades do setor privado conveniadas "ao SUS, em especial para os hospitais filantrópicos". Aponta que o "eventual desequilíbrio econômico-financeiro que sobrevenha aos convênios e contratos formalizados para a prestação de serviços ao SUS, é esperado que os particulares busquem a revisão de suas cláusulas em face dos Estados e Municípios celebrantes".

Em relação a este primeiro argumento, o ministro Barroso revelou preocupação com a saúde financeira das empresas, mas não com a dos trabalhadores, esquecendo o princípio da valorização do trabalho humano, que recomenda uma melhor retribuição ao labor desenvolvido.

Mas o equívoco desse argumento está no fato de que o "desequilíbrio econômico-financeiro que sobrevenha aos convênios e contratos formalizados para a prestação de serviços ao SUS" não se resolve suspendendo a lei de forma desproporcional. Isto porque, como o próprio ministro afirma adiante, ao tratar do segundo argumento apontado em sua decisão, qualquer medida na área pública deve guardar respeito ao princípio da proporcionalidade. Logo, ao apreciar o pedido liminar cabe ao juiz verificar se a medida requerida "não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade)".

Ora, neste caso, o desequilíbrio financeiro se resolve com a revisão contratual dos "convênios e contratos formalizados para a prestação de serviços ao SUS". E com uma liminar, diante de cada (ação) caso concreto. Ou até de forma genérica, na própria ADI, se fosse o caso, mas não simplesmente cortando o benefício trabalhista. Ou seja, o ministro sacrificou integralmente o direito de um (dos trabalhadores), em favor de outro (empregador), quando tinha uma alternativa "menos gravoso[a] para chegar ao mesmo resultado (necessidade)".

Já o segundo argumento apontado pelo ministro Barroso seria a violação ao princípio da proporcionalidade (que justifica qualquer coisa!). E, no caso, aponta a possibilidade de "invalidação de atos do poder público quando: (i) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); (ii) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade); e (iii) os custos superem os benefícios — i.e., quando o que se perde é de maior relevo do que o aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)".

O ministro não aponta qual seria a inadequação da lei, nem aponta os meios alternativos (necessidade), em violação ao disposto no parágrafo único do artigo 20 da Lindb. O ministro aponta, porém, que a desproporcionalidade estaria evidenciada com "(i) o risco de demissões em massa de profissionais da enfermagem, notadamente no setor privado; e (ii) o prejuízo à manutenção da oferta de leitos e demais serviços hospitalares, inclusive no SUS". Por este segundo argumento, então, a suspensão da lei também acabaria por beneficiar as entidades privadas de saúde de modo geral, inclusive aquelas não conveniadas ao SUS.

Permissa venia. Primeiro, mostra-se até irônico a confederação das empresas revelar preocupação com o risco de maior desemprego. Ora, para evitar o desemprego basta não despedir. E para tanto as empresas não precisam buscar o Judiciário (falta de interesse). Basta respeitar o direito fundamental à proteção do emprego.

Nesse ponto (em juízo precário), o que, quando muito, poder-se-ia admitir é a concessão de uma medida liminar para esclarecer que a lei não tem, a princípio, efeito retroativo. Logo, ela não impactaria os contratos de emprego em curso, aplicando-se, tão somente, em benefícios aos novos empregados, admitidos após início da vigência da Lei, até posterior análise (em juízo final) do disposto no caput do artigo 7º da CF, que assegura a "melhoria da condição social" do trabalhador (inclusive com efeito retroativo), bem como da eventual violação ao princípio da isonomia ao não se conceder esse efeito retroativo. Logo, em assim se entendendo, não haveria qualquer impacto financeiro de imediato ou de grande monta, até posterior decisão.

Segundo, em relação ao setor conveniado ao SUS, já se disse que há meio alternativo, que seria a revisão dos convênios, para manutenção do equilíbrio financeiro. Logo, desnecessária a suspensão da lei por essa razão.

Resta a proteção do setor privado não vinculado ao SUS. No caso, o ministro revela preocupação com "manutenção da oferta de leitos e demais serviços hospitalares". Ora, aqui duas questões devem ser postas. A primeira é que a administração pública tem o dever de oferecer os serviços de saúde. Logo, se o setor privado (não conveniada ao SUS) não oferece ou diminui a "oferta de leitos e demais serviços hospitalares" a alternativa é ordenar que o setor público preencha o espaço deixado pelo setor privado, sem sacrificar o direito dos trabalhadores. Logo, há uma alternativa para a proteção à saúde da população.

Por outro lado, revela-se desproporcional a decisão que, para proteger as empresas, simplesmente veda o aumento salarial. Beneficia integralmente um, em detrimento integral do outro. E o pior é com a interferência na iniciativa privada tão simplesmente para proteger as empresas. Ora, como se diz, quem não tem competência não se estabelece. A empresa assume o risco do negócio. Logo, se ela não tem competência de se manter, conforme seus custos, por certo que seus problemas não se resolvem sacrificando integralmente o direito assegurado ao trabalhador. E os custos do trabalhador?

Ou seja, em relação ao setor privado também somente caberia, em juízo precário, quando muito, esclarecer que a lei não tem efeito retroativo.

Concluindo: impõe-se a correção da decisão proferida pelo ministro Barroso na ADI 7.222 dado seus equívocos conforme acima apontado.

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  • é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, doutor pela PUC-SP, desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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