Segunda Leitura

O processo como forma de intimidação e fim em si mesmo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de setembro de 2022, 11h56

A judicialização sem limites, o poético, mas nocivo, inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal (XXXV  "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"), que vedou soluções prévias ao contencioso, a ânsia de ampliarem-se os direitos e as garantias individuais sem qualquer atenção aos correspondentes deveres e a falência do princípio da autoridade minam pouco a pouco a administração pública brasileira, tornando-a, a cada dia, mais ineficiente.

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Tudo isso se dá de modo imperceptível, em momentos e locais diversos e sem que haja um ato visível ou discussão política. Mas, aos mais atentos e aos que sofrem os resultados da má administração, isso se torna perceptível.

Indagará o ingênuo: Mas como? Explico.

Ser parte, na condição de réu, em uma ação judicial pode ser um verdadeiro suplício. A citação obriga a contratação de um advogado e aí já se tem as primeiras despesas. Depois seguem as idas e vindas do processo e o demandado, que muitas vezes acompanha seu caso pela internet, não entende bem aquelas decisões e seus recursos. Se ele tiver de produzir prova, enfrentará muitas dificuldades, pois o esperado apoio de terceiros será raro. E, quando tiver sentença, ainda que favorável, suportará a apelação e depois recursos ao STJ e ao STF. É possível que a partir do quarto ou quinto ano abandone tudo, ligando o botão "seja o que Deus quiser".

Essa é uma experiência comum dos que sofrem ação judicial, muito embora os detalhes possam variar. O nível de estresse, em grau maior ou menor, causará consequências físicas e psicológicas como insônia, irritação, gastrite, ansiedade e pressão alta.

Pois bem, muitas pessoas já se deram conta de que essa via crucis intimida as pessoas de bem e disso se valem para alcançar os seus objetivos. A elas pouco importa o desfecho da ação judicial, o que interessa é o terror despertado pelo processo e, através dele, conseguir o pretendido.

Vejamos, hipoteticamente, exemplos comuns.

Tício, servidor público, é convocado para fazer parte de uma comissão processante por falta disciplinar de um colega. Cumpre as suas funções e, dos fatos, resulta uma pena de suspensão. O servidor punido ingressa em juízo contra o Tício, dizendo-se vítima de dano moral por isso ou por aquilo. A ação não tem possibilidade alguma de ser julgada procedente, mas ele terá obrigado o membro da comissão disciplinar a contratar advogado, defender-se e permanecer vinculado por um bom tempo a um processo sem causa. Tício e todos os colegas que lhe são próximos evitarão ao máximo participar novamente de uma comissão de tal tipo. Perde a administração pública.

A professora de escola pública que descumpre seus deveres é punida pela diretora com a pena de advertência. Inconformada, ingressa no Juizado Especial contra sua superiora hierárquica, afirmando ter sofrido dano moral durante o processo administrativo. A demandada não pode valer-se de procuradores do estado para a sua defesa, terá de custeá-la, pois, não sendo considerada pobre, não terá como recorrer à Defensoria Pública. Participar de audiências, acompanhar a produção de provas, ir ao Juizado, tudo isso é estressante. Resultado, certamente essa diretora ignorará futuras faltas de professores ou servidores da escola, a fim de não sofrer os ônus da condição de demandada.

Um agente de órgão de controle, deparando-se com simples menção de um subalterno que fez o exame das contas de alguém que exerce um cargo de chefia, pede a instauração de inquérito policial ou aciona o órgão para ingressar com ação judicial pedindo, liminarmente, severas medidas restritivas contra o suspeito, inclusive apreensão de seu telefone celular e bloqueio de valores de sua conta corrente bancária. O demandado, sem dúvida, sofrerá forte abalo, que, possivelmente, o levará a renunciar à posição de comando. E aí teremos mais um caso daqueles em que um cargo público não é ocupado, porque as pessoas disponíveis recusam-se a assumir qualquer espécie de risco. Isso é mais comum do que se imagina e causa sério prejuízo à administração pública.

Outra via possível é a propositura de uma ação popular. Para tanto basta ser cidadão, portanto, bem mais fácil do que pedir a intervenção do Ministério Público. Isso é rotina na disputa política, mas pode ser utilizado também nas relações interpessoais. Por exemplo, um vencido em uma licitação propõe ação popular contra o servidor que tomou a decisão administrativa, afirmando a existência de atos lesivos ao patrimônio público, pedindo a declaração de nulidade. Pouco importa ao autor o resultado da demanda, que poderá demorar dez ou mais anos, mas, sim, causar um mal àquele que contrariou os seus interesses.

Procedimentos semelhantes às hipóteses descritas podem ser direcionados contra presidentes de bancas de concurso, agentes do Ministério Público no exercício de suas funções, policiais, magistrados, disso não escapando ninguém em qualquer nível e esfera do serviço público. Em época de eleições, eles podem multiplicar-se, uma vez que na disputa prevalece a paixão sobre a razão e todas as formas de combate são utilizadas, muitas vezes de forma incorreta.

Esse desvirtuamento do direito de petição, que já não é mais risco, mas, sim, realidade, atinge diretamente os serviços públicos, estimula a fuga de lideranças e a busca de iniciativas criativas, criando uma legião de acomodados que optam por cumprir suas funções de forma burocrática e desinteressada a assumir qualquer posição de relevo e sujeitar-se ao ódio de insatisfeitos.

Que fazer?

Combater investidas que camuflam verdadeiras intenções revela-se urgente. Reclamamos todos que precisamos de uma administração pública ágil e eficaz, mas pouco estudamos e, menos ainda, combatemos, o que leva a tal situação.

Entre outras coisas, é necessário que os juízes examinem com cautela máxima tais tipos de petições iniciais Na vigência do atual Código de Processo Civil, o indeferimento da inicial será difícil, pois as hipóteses do artigo 330 são numerus clausus, não podendo serem aplicadas outras além das previstas no dispositivo processual.

Assim sendo, cabe ao juiz cautela na concessão de medidas preventivas e, com a resposta, fazer um exame da viabilidade de prosseguimento do pedido, inclusive em eventual audiência de conciliação (artigo 335, inciso I, do CPC), julgando antecipadamente o pedido. Caso fique flagrante o propósito de obter com a ação vantagem econômica ou pessoal indevida (v.g., vingança), aplicar ao autor punição por revelar-se litigante de má-fé (artigo 80, inciso III, do CPC), não hesitando em fazê-lo em valores que desestimulem tal tipo de procedimento.

No âmbito dos Juizados Especiais, nada impede que seja imposta multa por litigância de má-fé (artigo 55, parágrafo único, inciso I, da Lei 9.099/95). Ademais, impõe-se a necessidade de alterar-se a referida lei, a fim de que seja incluída a permissão da cobrança de honorários advocatícios nas hipóteses de litigância de má-fé, assim desestimulando aventuras jurídicas.

Em suma, é preciso recolocar as coisas nos devidos lugares, pois os danos de tais condutas alcançam todos, muito embora poucos percebam.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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