Opinião

Ajuizamento do RCE sem a constituição da SAF e a suspensão de constrições

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4 de setembro de 2022, 13h15

A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e a lei que a criou — nº 14.193/21 — tem sido considerada a "bola da vez" dos clubes de futebol para criação de clubes-empresa, com objetivo principal de atrair investidores para estimular o mercado esportivo.

Justamente para atrair esses investidores e com o intuito de resolver um histórico de grandes dívidas que parecem não ter fim, os clubes podem optar pelo ajuizamento do pedido do Regime Centralizado de Execuções (RCE).

E o que se tem visto, em diversos casos, é o ajuizamento do pedido antes mesmo da constituição da SAF. Ajuizar o RCE sem antes ter constituído a sociedade anônima, no entanto, parece questionável.

A dúvida surge, principalmente, porque o legislador, em nosso entendimento, deixou a desejar ao permitir uma interpretação lacunosa dos artigos 13 e 14 da Lei 14.193/21, que dispõem sobre o pedido de RCE, indicando apenas o clube ou pessoa jurídica original como a parte legítima para o pedido, sem condicionar o ato à prévia constituição da SAF. Com isso, os pedidos de RCE, na prática, têm sido ajuizados sem a criação do clube-empresa.

Contudo, com base em uma interpretação sistemática (e que nos parece mais acertada), a Lei 14.193/21 coloca a criação da SAF como requisito prévio e imprescindível ao ajuizamento do RCE e que, em princípio, não poderia ser driblado.

Primeiro porque não podemos esquecer que o RCE está inserido dentro de uma legislação cuja finalidade precípua é justamente a instituição da Sociedade Anônima do Futebol. Desse modo, pensar que o RCE pode ser instaurado mesmo sem a SAF parece um contrassenso.

Segundo porque, apesar do artigo 14 não citar a SAF como requisito prévio de forma direta, entendemos que o faz de forma indireta. Isso porque a lei prevê que o pagamento das dívidas dentro do RCE será feito com os valores arrecadados nos moldes do artigo 10.

E o artigo 10, por sua vez, indica em duas oportunidades que a constituição da SAF é necessária: 1) quando dispõe que o clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da SAF (ou seja, pressupõe que a SAF foi constituída) e; 2) quando prevê o repasse das receitas da SAF, servindo a nova sociedade como principal fonte financeira para reestruturação das dívidas no procedimento de RCE. Mesmo porque a SAF concentraria as principais atividades de geração de receitas para fazer frente às dívidas — garantindo, com isso, o efetivo pagamento dos credores.

Entretanto, as decisões dos tribunais vêm autorizando o início do procedimento concursal sem a constituição prévia da SAF, fundamentando-se na leitura isolada dos artigos 13 e 14 que, como mencionado, autorizam o RCE em nome do clube ou pessoa jurídica original (sem nenhuma referência direta à criação prévia da SAF).

Clubes tradicionais como Vasco, Botafogo e Portuguesa apresentaram o pedido isolado de RCE, se aproveitando da omissão na redação da Lei. Com a chancela do Poder Judiciário, esses clubes já tiveram os pedidos de RCE deferidos, sob o fundamento de que o objetivo da medida é promover a reunião de todos os processos em fase executiva em um único juízo centralizador, o que acarretará planos de pagamento definidos de forma unilateral pelos clubes, os quais, provavelmente, se prolongarão no tempo por anos a fio — dispensando a necessidade prévia de constituição da SAF. Referidos clubes foram também beneficiados pela suspensão das ações ajuizadas por seus credores.

Recentemente, um dos mais tradicionais clubes paulistas e uma das maiores torcidas do país, o Corinthians, seguiu o mesmo caminho e apresentou seu pedido de RCE sem constituição prévia da SAF. A dívida estimada do clube nas execuções movidas por seus credores é de mais de R$ 40 milhões.

A decisão da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a instauração do concurso de credores pelo Corinthians e a centralização das execuções em Juízo único, sob o fundamento de que o artigo 14 concede legitimidade aos clubes para o pedido de RCE, independentemente da existência da SAF.

Autorizado o processamento do feito e realizada a distribuição ao Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo, agora competente para decidir qualquer controvérsia sobre o processo, o Corinthians requereu a concessão da tutela de urgência para suspender o andamento das ações autônomas e as tentativas de constrição do seu patrimônio, considerando as diversas ameaças diárias de bloqueios judiciais oriundos de sua dívida milionária.

Mas, dessa vez, diferentemente dos demais casos, em que houve a imediata suspensão das ações (notadamente das constrições ao patrimônio ou às receitas do clube), o pedido de efeito suspensivo do Corinthians foi indeferido pelo Juízo competente, com a manutenção do andamento das ações de execução contra o clube, consubstanciada no fato de que o artigo 23 da Lei 14.193/21 somente autorizaria a suspensão requerida após a apresentação, homologação e comprovação de cumprimento das obrigações do Plano de Pagamento da RCE, o que ainda não ocorreu.

Após recurso do clube, a decisão, por ora, está mantida pelo Tribunal de Justiça que negou o efeito suspensivo requerido, em decisão proferida no último dia 18/8/2022, trazendo como justificativa a diferença entre os procedimentos de RCE e pedido de recuperação judicial — em que, apenas para este último, a suspensão das ações ocorre já com o deferimento do pedido (e antes do plano de pagamento).

O Corinthians acabou apresentando pedido de desistência do RCE em 22/8/2022, em razão de acordos celebrados com seus credores.

De todo modo, abriu-se, com seu caso, outro ponto de dúvidas na aplicação das disposições da Lei da SAF — já que os juízos deram interpretações diversas a suspensão das ações contra o clube (se imediata ou apenas após a implementação do plano de pagamento).

Assim, parece que, além de ser necessário ao Judiciário se debruçar sobre a criação da SAF como requisito prévio ao pedido de RCE, deverá também definir o momento em que o clube será beneficiado pela suspensão das ações movidas por seus credores.

Diante desse cenário, se espera que, em prol da segurança jurídica, haja definição sobre a correta interpretação legal dessas questões, de forma que se reconheça o deferimento do RCE somente aos clubes que tenham constituído previamente a SAF e com a suspensão das ações apenas após a implementação do plano de pagamento.

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