Opinião

A Síndrome de Paris e a Constituição Federal de 1988

Autor

  • Fernando Procópio Palazzo

    é advogado mestrando em criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

4 de setembro de 2022, 15h22

Paris é uma das cidades mais icônicas no mundo e objeto de desejo de diversos turistas todos os anos. A capital francesa possui não só memoráveis atrações turísticas como a Torre Eiffel e a Champs-Élysées, como também possui uma rica história de transformações, revoluções e influência. A cidade foi um dos epicentros do período iluminista entre os séculos 17 e 18 e as inovações desse período são até hoje percebidas. Não obstante, não bastasse essa proeminência intelectual e filosófica, ganha destaque também o fato de a cidade ter sido um dos primeiros grandes centros europeus a adotar um vasto sistema de iluminação pública, motivo pelo qual passou a ser referida como a "Cidade das Luzes" (La Ville Lumière). Todos esses fatores contribuíram para o crescimento do fascínio pela cidade e as suas diversas atrações, cabendo, pois, a Ernest Hemingway imortalizar os seus memoráveis anos na cidade no livro Paris é uma festa. De igual forma, o cineasta nova-iorquino Woody Allen, ao utilizá-la como cenário para o seu romance Meia-Noite em Paris, confirmou que o carisma da cidade é atemporal.

Com toda essa aura histórica e poética envolvendo a cidade, torna-se natural imaginar a grande expectativa que existe no coração daqueles que a visitam pela primeira vez. Ocorre, no entanto, que a capital francesa não vive apenas de fantasia e possui acentuados contrastes que contribuem para o desdourar da imagem criada. Nesse contexto, notou-se entre visitantes japoneses um peculiar fato consistente em um distúrbio psicológico que foi alcunhado como a "Síndrome de Paris". De acordo com os psiquiatras israelenses Eliezer Witztum e Moshe Kalian (2017), a síndrome é uma forma de choque cultural observado principalmente entre japoneses. A seu turno, o psiquiatra japonês Hiroaki Ota, considerado o primeiro a identificar o distúrbio, o descreveu da seguinte forma: "imagine pessoas que têm essa ideia gigante e fantástica de quão grande é Paris e é tão decepcionante quando chegam lá que ficam realmente doentes. Se você observar os sintomas, verá coisas como alucinações. Imagine-se odiando tanto Paris que você começará a alucinar". A gravidade do problema é tanta que a embaixada japonesa em Paris inclusive disponibilizou um canal de atendimento vinte e quatro horas para aqueles que estejam sofrendo dos sintomas e necessitem ajuda. Como se pode perceber, trata-se de uma condição psicológica real em que pessoas que visitam Paris pela primeira vez se sentem extremamente desapontados com contrastes que não imaginavam. Além das diferenças culturais, a capital francesa enfrenta sérios problemas sociais, migratórios e raciais que, por certo, também afetam certas expectativas líricas sobre a cidade a ponto de se transformar em um distúrbio psicológico gerador de grande ansiedade e alucinações.

De igual maneira, ao atravessar o oceano Atlântico e aportar no Brasil, é possível fazer não uma licença poética, mas sim uma "licença médica", e considerar que o brasileiro aparenta sofrer também de síndrome parecida ao confrontar aquilo que é apregoado pela Constituição Federal de 1988 com a realidade do país. No melhor cenário de Ernest Hemingway, no dia 5 de outubro de 1988 o Brasil era uma festa. Após anos sob regime militar, o país respirava ares de liberdade cívica e transformações, cujo ápice estaria condensado na então alcunhada "Constituição Cidadã". À época de sua promulgação, Ulysses Guimarães declarou que "a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança". Sob esse prisma, torna-se fácil perceber o êxtase que tomou conta do país diante das novas possibilidades que estavam sendo pavimentadas com a nova constituição. As expectativas tornaram-se grandes e alimentaram o sonho de muitos brasileiros.

Não obstante esse panorama, os anos se passaram e aquilo que era para ser um farol para o bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça para todos, encontra-se distante de tais ideais e tem se tornado um elemento causador de muita ansiedade e decepção. A célebre lição de Ferdinand Lassalle de que a constituição precisa ter efetividade, sob pena de se tornar uma mera folha de papel é repetidamente ecoada entre os alunos de Direito. Com efeito, a referida lição não parece ser apresentada sem razão, uma vez que no Brasil a Constituição Federal de 1988 parece não ser apenas uma folha de papel em muitos aspectos, como, também, tem se tornado um rascunho sem sentido, o qual tem sido paulatinamente modificado para acomodar interesses momentâneos e que em nada refletem as aspirações de outubro de 1988.

Resultado dessa discrepância entre expectativa e realidade são perceptíveis na sociedade brasileira, a qual sofre com as incoerências, injustiças e instabilidades que são promovidas por aqueles que deveriam alinhar os rumos do país ao ideário que a Constituição Cidadã inicialmente almejou. As infindáveis relativizações do texto constitucional, más interpretações, ou até mesmo o seu puro e simples descumprimento geram um quadro de ansiedade e desesperança em uma combalida sociedade. O distúrbio psicológico gerado por essa dissonância entre a Carta Magna e a realidade resultam em um povo que não confia nos seus representantes políticos, na credibilidade dos poderes, na estabilidade das instituições, e, diante de tantas e sucessivas incoerências, perde as esperanças por um futuro melhor. Tal qual a Síndrome de Paris, esse estado de disparidade também pode levar a "alucinações" e de tempos e tempos certas ideias e propostas que não fariam qualquer sentido em um ambiente civilizado e democrático passam a ter projeção e, quando se nota, já estão em vigência.

Ao contrário dos japoneses em Paris, não existe uma linha direta para auxílio daqueles que sofrem com essa contradição entre o ideário constitucional e a realidade do país. No entanto, para os brasileiros existe a possibilidade de equilibrar as expectativas com a realidade. O remédio está diretamente condicionado ao exercício individual de cidadania de cada pessoa. Não apenas pelo voto consciente e refletido, mas também pela promoção de ações cotidianas e individuais que interrompam ciclos viciosos de atitudes que não condizem com a democracia, igualdade e justiça para todos. É preciso ousar para o bem e não aguardar mudanças acontecerem. É preciso ser a mudança. Compete, pois, a cada brasileiro decidir mudar, ainda que se passe por uma momentânea minoria, tornando o país um espelho daquilo que se sonhou décadas atrás e, no espírito de Ernest Hemingway, poder dizer que o Brasil é uma festa democrática, progressista, igualitária e que caminha efetivamente em direção a um futuro melhor.

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