Opinião

Filtro de relevância como novo requisito de admissibilidade no recurso especial

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3 de setembro de 2022, 6h32

Não é de hoje que os tribunais superiores se utilizam de expedientes regimentais para não julgar recursos. A edição de jurisprudências defensivas, de igual forma, criam entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.

Há controvérsias a respeito dessa prática. O próprio Código de Processo Civil prevê como princípio basilar a primazia do enfrentamento do mérito, combatendo, de certa forma, essa prática nada constitucional que fulmina o direito do jurisdicionado à prestação eficiente da justiça.

E mesmo com a entrada em vigor do novo regramento processual civil, a prática permaneceu, inclusive com fortes tendências a enraizar-se na sistemática recursal. A causa parece-me clara: o afogamento do judiciário.

Sabe-se que há muito a máquina pública judiciária está saturada de processos e todas as tratativas de solução não se mostraram eficientes.

Preocupados, profissionais diversos têm buscado mecanismos de mitigação do problema. E foi pensando nisso que, no ultimo dia 15 de julho, entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 125 de 2022, originada da chamada PEC da Relevância. A PEC criou um novo requisito de admissibilidade para o recurso especial.

O filtro de relevância, aprovado no Senado em dois turnos acrescenta os §§1º e 2º ao artigo 105 da Constituição e renumera o parágrafo único para instituir, no recurso especial, o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

O motivo da PEC foi justamente esse: diminuição de processos em trâmite perante a Corte Superior. Segundo dados trazidos pela relatora da PEC quando apresentada na Câmara dos Deputados, o Superior Tribunal de Justiça julgou 3.711 processos no ano em que se originou, em 1989. A cifra alcançou números astronômicos já nos primeiros dez anos de existência da Corte, chegando a 128.042 processos em 1999 e atingiu 560.405 processos no ano passado, em 2021.

Parece-me terem encontrado uma solução: diminuir os julgamentos criando barreiras para tanto. Acontece que, se analisarmos friamente a questão, essas barreiras não resolvem de fato o problema, quer dizer, haverá (ou deveria haver, ao menos) um número reduzido de recursos tramitando perante o STJ, claro, mas esse número não refletirá a realidade porque não haverá diminuição de processos em sentido amplo.

O ingresso de demandas judiciais por motivos diversos continuará ocorrendo e esse dado não foi levado em consideração.

Atacou-se o efeito ao invés da causa.

Pois bem.

A respeito do filtro de relevância, a EC assim acrescentou ao texto constitucional:

"Artigo 105, CF. (…)
§1º (…)
§2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o julgamento.
§3º Haverá a relevância de que trata o §2º deste artigo nos seguintes casos:
I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei".

A EC ainda trouxe uma regra de transição à aplicação do filtro:

"Artigo 2º A relevância de que trata o §2º do artigo 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do §3º do referido artigo,"

Analisando o sentido prático da medida, é difícil prever as mudanças que surgirão com a implementação do novo requisito de admissibilidade dos recursos especiais, ainda mais com a regra de transição do artigo 2º, mas já de antemão temos o que não mudará: a continuidade de aplicação de jurisprudência defensiva pela Corte Superior.

Se verificarmos o teor da nova redação, há de fato um novo requisito de admissibilidade, entretanto esse somente poderá ser rejeitado (se entendido pela ausência de relevância) pelo colegiado com manifestação de 2/3 dos membros.

Quer dizer, o presidente do tribunal de origem, para não conhecer deverá levar o recurso para decisão colegiada, podendo sofrer (e inevitavelmente sofrerá, a prática há muito já nos ensina) a interposição de agravo em recurso especial que fará, de uma forma ou de outra, o recurso subir ao STJ.

Demais disso, pela redação do dispositivo, o relator do recurso especial também não tem competência para o rejeitar com base na ausência de relevância.

E assim cria-se dois cenários: a inviabilidade de rejeição pela via monocrática e a inevitável continuidade de processos subindo ao STJ. Qual a função da admissibilidade pela relevância, pois?

Eu respondo: a partir dessa análise, nenhuma. Além de engendrar o sistema recursal com mais burocracia e regras processuais inócuas, haverá a continuação daquilo que sempre se quis evitar: a jurisprudência defensiva (os feriados locais nunca foram tão marcados nos calendários como o são hoje, não é mesmo?).

Acontece que eu defendo a interpretação de que essa medida veio por uma questão nobre. A PEC da Relevância fortificou ainda mais o papel que desde o princípio é (ou deveria ser) atribuído à Corte: atuar como uma corte de precedentes e não como mais uma instância revisora.

O STJ não é uma instância revisora (sim, a súmula 7 veio para ficar). O interesse subjetivo das partes esbarra óbice ao encontrar-se decidido pelo colegiado em segundo grau, cabendo tão-só às Cortes Superiores (e aqui refiro-me também ao Supremo Tribunal Federal que, diferentemente do que ocorreu com o STJ, sempre usufruiu desse papel) adequar o direito à legislação infraconstitucional, no caso do STJ, bem como aos ditames constitucionais, no caso do STF.

A mudança de cultura dos profissionais do direito no que concerne à visão dos tribunais superiores como cortes de precedentes qualificados merece uma atenção maior e mais aprofundada. Deve-se abandonar a lógica positivista estrita, na qual há pouco espaço para a interpretação e hermenêutica jurídicas, e adotar um sistema por meio do qual busca-se prováveis significados do texto legal, interpretando-os a partir do caso concreto.

Entendendo a lógica das cortes superiores como função de uniformização e de criação de precedentes, automaticamente haverá diminuição no trâmite de processos, já que a segurança jurídica estará melhor aparelhada e o óbice no trâmite estará justificado. Como consequência ter-se-á também uma desnecessidade de criação de remédios paliativos para enfrentamento do problema.

A PEC da relevância, portanto, não veio para desafogar o STJ na análise e julgamento de processos, mas sim para firmar um compromisso constitucional de Corte Superior de Precedentes, assumindo o conceito genuíno de stare decisis e a função monofilácica da Corte, a qual deveria ter sido observada desde seu princípio.

Autores

  • é pós-graduada em Direito Público e em Direito Aplicado, pós-graduanda em Segurança Digital, Governança e Gestão de Dados pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) e integrante do grupo de pesquisa em Direito Penal Econômico e Novas Tecnologias pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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