Observatório Constitucional

As virtudes passivas da ADPF versus as virtudes ativas dos precedentes

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3 de setembro de 2022, 11h28

Entre as diversas questões que estão na pauta do processo constitucional brasileiro, uma tem chamado a atenção da prática jurisdicional e institucional, assim como da comunidade acadêmica, qual seja, a chamada zona de penumbra entre as cortes supremas. Outra questão, no entanto, que orbita esse cenário e tem recebido uma atenção opaca é o diálogo institucional entre as cortes por meio de ADPF como fórmula para o controle interpretativo dos precedentes. A princípio, o uso da ADPF para a solução de controvérsias constitucionais relevantes consubstanciadas em decisões judiciais pode não levantar indagações. Todavia, o seu desenvolvimento na prática jurisdicional traz questões que merecem reflexões, especialmente no âmbito do diálogo institucional entre o STF e as demais cortes supremas.

Dois casos ilustram o argumento colocado. O primeiro trata da ADPF 501, em que foi declarada a inconstitucionalidade da Súmula 450 do Tribunal Superior do Trabalho, que definia interpretação jurídica no sentido da remuneração das férias em dobro, incluído o terço constitucional, ainda que gozadas na época própria, quando descumprido o prazo do artigo 145 da CLT. Ademais, foram invalidadas as decisões judiciais não transitadas em julgado que, amparadas no texto sumular, tenham aplicado a sanção de pagamento em dobro com base no artigo 137 da CLT.

Em decisão monocrática, foi negado seguimento à ação constitucional, ao motivo de não observância da subsidiariedade. Interposto agravo regimental, foi levada à deliberação pelo Plenário a discussão a respeito do cabimento da ADPF para questionar a validade constitucional de súmula do TST, assim como a questão da configuração de subsidiariedade.

A opinião majoritária entendeu ser cabível ADPF, por duas razões principais. Primeiro, com fundamento em outros precedentes do STF, entendeu-se pela natureza normativa da súmula, portanto, por seu enquadramento como ato do poder público. Segundo, quanto ao requisito da subsidiariedade, ao argumento de ausência de outro instrumento processual capaz de impugnar ações e recursos que serão obstados com base no preceito impositivo (súmula) no âmbito da Justiça Trabalhista, validou-se sua observância. Em resumo, apontou-se que a ADPF se apresenta como o meio processual idôneo para opor ato do poder público que tem gerado controvérsia judicial relevante.

Por sua vez, a opinião divergente sustentou a inviabilidade da ADPF, uma vez que o argumento de ser esta o instrumento processual de maior eficácia é insuficiente para autorizar sua admissibilidade. Não devendo, em verdade, servir de fundamento para que se desconsidere as vias judiciárias e processuais próprias e hábeis à revogação das súmulas, ainda que estas impliquem maiores ônus procedimentais, no cenário do intricado complexo recursal.

O segundo caso é o da ADPF 323. Neste, declarou-se a inconstitucionalidade da Súmula 277 do TST, conforme a redação atribuída pela Resolução 185, de 27 de setembro de 2012. O enunciado sumulado previa a ultratividade da norma coletiva, que se caracteriza pela incorporação das cláusulas coletivas aos contratos individuais de trabalho, mesmo quando exaurido o prazo da norma coletiva sem que as partes tenham optado pela sua renovação. O Plenário decidiu também pela inconstitucionalidade de interpretações e de decisões judiciais que entendam que o artigo 114, §2º, da Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, autorize a aplicação do princípio da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas.

Quanto ao cabimento de ADPF, a opinião majoritária afirmou que interpretação literal da subsidiariedade retiraria da arguição seu significado prático, visto a necessidade de comprovação de absoluta inexistência de outro instrumento processual capaz de afastar eventual lesão a preceito fundamental. Avaliou-se que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não são meios idôneos para sanar controvérsia constitucional relevante, de forma ampla, geral e imediata. Asseverou-se que não seria cabível ação direta de inconstitucionalidade, e mesmo os recursos extraordinários interpostos contra decisões do TST não seriam aptos a afastar, em caráter incidental e definitivo, a lesividade a preceito fundamental. Argumentou-se, ainda, que em face de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas produzidos pela interposição de recursos extraordinários idênticos, caberá ao STF conhecer da arguição de descumprimento em proteção ao princípio da segurança jurídica.

Já a opinião divergente convergiu no sentido da inadmissibilidade da arguição. Para tanto, indicou-se que a ultratividade dos acordos e convenções coletivas de trabalho foi vedada pelo §3º no artigo 614 da CLT, inserido no sistema pela Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017 (reforma trabalhista). Desse modo, inexistente interesse de agir quando o resultado pretendido pela ação já foi alcançado por meio de nova legislação, fato que enseja sua extinção, por perda superveniente de objeto. Ainda, como razão de decidir, assinalou-se que a inovação legislativa impõe o diálogo institucional entre o legislador e o Judiciário trabalhista. O que significa dizer que compete à essa jurisdição, por meio do controle difuso-incidental, deliberar sobre as possibilidades interpretativas de revogação da Súmula, em especial ao TST, como ator institucional responsável pela formação dos precedentes em matéria infraconstitucional trabalhista.

Nessa toada, de acordo com o dissenso instaurado, a atuação do STF, por meio de ADPF, seria prematura, na medida em que obstaria e anteciparia a deliberação do direito vivente trabalhista. Vale dizer, ante alteração normativa consolidada pela reforma trabalhista, caberia a reabertura interpretativa da questão discutida na súmula na arena própria da Justiça Trabalhista. A divergência evidenciou que "ocorrerá indesejável sobreposição jurisprudencial e indevida supressão de instâncias jurisdicionais" no caso da Corte Constitucional se posicionar sobre a supressão do entendimento sumulado.

Quanto aos casos, algumas considerações emergem, como pensamentos em voz alta, para a reflexão sobre o adequado institucional do sistema de precedentes nessa interface entre as cortes supremas. Não interessa neste ensaio o mérito das soluções normativas adotadas nas ações, mas, sim, as questões que gravitam o processo constitucional brasileiro. A exemplo, a revogação de súmulas do TST pelo STF por meio de ADPF, sob o argumento de tutela da segurança jurídica para a solução de controvérsias judiciais relevantes, ainda não resolvidas pela Corte Suprema do Judiciário Trabalhista. A proteção da segurança jurídica, inclusive, residiria justamente na demora inerente do itinerário recursal no âmbito da jurisdição trabalhista, para a definição do precedente pela sua corte, o TST. Daí que o diálogo instaurado pelo STF ocorre em face das decisões divergentes dos tribunais regionais, e não entre cortes, por meio de precedentes.

No entanto, o uso da ADPF como instrumento apto à solução das divergências interpretativas no Judiciário Trabalhista ou à revogação das súmulas do TST, mesmo em face de inovação legislativa, significa, bem vistas as coisas, possível supressão do saudável debate das possibilidades interpretativas na arena da jurisdição trabalhista de perfil difuso-incidental. O sistema de precedentes tem como premissa esse estágio de insegurança jurídica, em que os argumentos estão sendo testados perante os órgãos jurisdicionais que compõem a estrutura hierárquica do Poder Judiciário. A definição dos direitos por meio de precedentes pelas cortes supremas pressupõe esses momentos de indefinição interpretativa. É natural e necessário para se evitar precedentes imaturos, resultados de deliberações apressadas. O sistema de precedentes não tem por objetivo prevenir divergências, mas, sim, solucioná-las, atribuindo unidade ao direito, após o amadurecimento dos dissensos.

Nos casos mencionados, ao contrário, a admissibilidade da ADPF obstou a manifestação pelo locus jurisdicional originário acerca da matéria ao argumento de comprovado o requisito da subsidiariedade sem que fosse dada a oportunidade procedimental para o juízo de revogação ou não de seu entendimento sumular. Ao inibir novas rodadas deliberativas pela corte suprema trabalhista, igualmente se obstruiu a pluralidade argumentativa exigida nas hipóteses de superação de precedente, que pode ser canalizada, inclusive, por meio de audiências públicas. Mais que isso, frustrou o diálogo institucional entre o legislador e o TST, uma vez que a inovação legislativa nada mais do que a resposta ao precedente formado por esta corte suprema. Caberia, portanto, a ela debater sobre a valoração dos novos argumentos legislativos postos.

O diálogo institucional entre as cortes supremas, como já discutido no problema da zona de penumbra, deve ocorrer por meio de precedentes. De igual forma, então, poderia se delinear a concertação entre o STF e o TST: por meio de precedentes. A preferência seria o diálogo pela via da jurisdição de perfil difuso-incidental, ou seja, por recurso extraordinário. A porta da ADPF também se encontraria aberta para o diálogo institucional, mas a subsidiariedade exigiria a prévia solução normativa da controvérsia judicial pela corte suprema competente, o TST. Da decisão do TST por manter determinado precedente ou entendimento sumular que caberia o seu questionamento, por questões constitucionais para o STF.

Como exemplificado no caso da ADPF 323, a inovação legislativa tornou iminente a rediscussão da validade da súmula em debate, mas esta foi decidida verticalmente pelo STF, dificultando a abertura de espaços para outras abordagens na arena jurisdicional trabalhista. Sob a lógica das virtudes passivas [1], cabe à Corte Constitucional exercer autocontenção em face das rodadas deliberativas inerentes aos seus interlocutores, como fórmula institucional de espaço para o devido amadurecimento das questões ainda controversas e de construção para o incremento deliberativo das decisões constitucionais.

O uso da ADPF como instrumento processual preventivo de controvérsia jurisdicional, ao argumento de lesão de preceito constitucional consistente na segurança jurídica, e não como resolutivo na criação dos precedentes, deve ser medido pelo juízo da prudência e da não decisão, como virtude passiva necessária. As virtudes ativas devem ser deixadas para o desenvolvimento do sistema de precedente na arena da jurisdição difusa.

Mais uma vez, a proposta aqui é pensar em voz alta sobre os desenhos institucionais adequados ao nosso processo constitucional brasileiro, sem respostas corretas. O compromisso é sempre com a deliberação das ideias, nunca com elas.


[1] BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics. 2 ed. New Haven: Yale University Press, 1986. SUNSTEIN, Cass R.. One case at a time: judicial minimalism in the Supreme Court. Massachusetts: Harvard University Press, 2001. MARINONI, Luiz Guilherme, Luiz Guilherme. Técnica decisória e diálogo institucional: decidir menos para deliberar melhor. Suprema-Revista de Estudos Constitucionais, v. 2, n. 1, p. 49-85, 2022.

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