Opinião

Dupla discriminação sofrida na Justiça pelas pessoas com surdez unilateral

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2 de setembro de 2022, 17h09

Em 2021 foi editada a Lei nº 14.126 em favor das pessoas com visão monocular, mas a surdez unilateral continua sendo o "bode expiatório" das deficiências no Brasil, sofrendo uma dupla discriminação.

Até 2004, tanto a visão monocular quanto a surdez unilateral eram deficiências descritas no artigo 4 do Decreto nº 3.298/99, baseada no modelo social das deficiências, descrito na Classificação Internacional de Funcionalidades da Organização Mundial de Saúde CIF/OMS.  

No final do ano de 2004, o famigerado decreto foi alterado, e apenas essas duas deficiências retro foram retiradas do rol taxativo, sob o argumento de que tirariam as vagas de quem mais precisa.

A alteração não retirou nenhum tipo de deficiência física, pelo contrário ampliou, acrescentando ostomia e nanismo, fazendo uma clara preferência aos brasileiros entre si [1].

O problema foi que após a retirada da visão monocular e surdez unilateral do Decreto nº 3.298/99, essas deficiências continuaram sendo discriminadas nos cargos que exigem aptidão plena do candidato, por exemplo na área policial.

Um tratamento degradante que agrediu frontalmente a dignidade humana das pessoas com visão monocular e surdez unilateral. Trata-se de dupla discriminação, nem é pessoa com deficiência, nem é normal para cargos de aptidão plena.

A visão monocular conseguiu uma importante jurisprudência, que foi a edição da Súmula de nº 377 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), neste caso pelo menos nas cotas dos concursos públicos, as pessoas com visão monocular não tiveram muitos problemas.

Acontece, que o mesmo STJ editou uma outra súmula antagônica para a surdez unilateral, a súmula de nº 552 para excluir a surdez unilateral, estas pessoas passaram a sofrer dupla discriminação, no caso de não poder prova judicialmente que também são discriminadas, na ampla concorrência como normal dos concursos que exijam aptidão plena do candidato, como militares e policiais.

Segundo o médico legista Genival Veloso de Franca: "propomos os seguintes percentuais de déficits, levando em conta a redução da capacidade funcional do conjunto dos valores do corpo humano para as seguintes perdas:(…) surdez de um ouvido 30 %" [2].

A Associação Brasileira dos Deficientes com Visão Monocular (ABDVM) ressalta que a perda total da visão de um olho provoca um comprometimento de 24% para o homem como um todo (vide Wikipedia sobre visão monocular).

Ou seja, a perda de um dos órgãos duplos é analogia.

A alteração do artigo 4º do Decreto nº 3.298/99 subestimou os sentidos mais importantes para o aprendizado do ser humano, Maria Teresa destaca a importância da função dos dois órgãos juntos "a função visual ou auditiva necessita da intervenção de ambos os olhos ou ouvidos, respectivamente" [3].

A inclusão da visão monocular e exclusão da surdez unilateral provoca desigualdade flagrante, porque não existe meio deficiente, ou a pessoa é ou não é deficiente. Ser meio deficiente e ter que concorrer com quem não tem deficiência, faz com que as pessoas com perda auditiva unilateral sofram uma desvantagem em relação a quem escuta com os dois ouvidos.

Na verdade, o estado brasileiro nunca teve capacidade de oferecer uma melhor cidadania às pessoas com deficiências físicas mais graves, ou as cegueiras e surdez totais, seja deficiência intelectual.

No processo seletivo simplificado para ingresso no ensino superior, nas cotas para PCD, da universidade federal de Campina Grande PB, muito pouco foram as aprovações de deficiências graves como cegueira binocular e surdez total bilateral [4].

Já tá mais do que na hora de o estado brasileiro usar de políticas afirmativas especificas para beneficiar as deficiências mais graves, sem discriminar as mais leves, a exemplo do escalonamento feito na Espanha, com uma reserva específica para pessoas com deficiência intelectual, a lei naquele país reserva 7 % das vagas nos concursos, destas 2 % são para pessoas com deficiência intelectual, 0,5% para pessoas com surdez bilateral, e os outros 4,5 % para os outros tipos e graus de deficiências [5].

Vide Real Decreto 248/2009, de 27 de fevereiro, Decreto 36/2004, de 16 de abril, Lei 3/2007 [6].

Talvez a alteração do artigo 4 do Decreto nº 3.298/99 tenha sido por contas das fraudes, também dentre outros motivos.

O relatório chamado de Bad News for Disabled People: How the Newspapers Are Reporting Disability (Más notícias para as Pessoas com Deficiência: A forma como os jornais estão a noticiar a deficiência feito com recursos da associação Inclusion London analisou as notícias de cinco medias da Inglaterra comparando dois biênios, 2010/2011 com 2004/2005, o resultado foi um aumento substancial das notícias sobre fraudes e pensões de incapacidade. Ao entrevistar o público na rua, as pessoas se referiam as histórias dos pedidos fraudulentos que tinha lido nos jornais como "75 % das baixas são de mandriões" [7].

O programa Câmera Record, da TV Record, denunciou as fraudes nos direitos para as pessoas com deficiência comprarem automóveis com desconto. Ou seja, o que antes qualquer um tinha vergonha de ser considerado "deficiente", depois das leis de benefícios, qualquer um quer "ser considerado deficiente" para ter os benefícios.

Acontece que em muitos casos de pessoas que não tem deficiência ou tinha uma doença leve usam de simulação para aumentar o grau de deficiência e conseguir o benefício, muitas pessoas querem se aproveitar da lei, é uma forma de não pagar imposto [8].

Talvez um dos motivos da alteração do artigo 4º do Decreto nº 3.298/99 foi justamente as fraudes, diferente das deficiências físicas, as perdas de visão e audição parcial, como o exemplo da visão monocular e surdez unilateral, não geram tanto impacto, não são perceptíveis, por isso são subestimadas, daí a estimar de querer dizer que essas pessoas quando lutam pelas políticas afirmativas pelo menos de cotas nos concursos é malandragem.

Desta forma, o governo tem que incentivar as denuncias e combates as fraudes, e não tratar a surdez unilateral como "bode expiatório", porque sempre vai existir o duplo preconceito histórico de "incapacitado ou malandro", contra qualquer tipo e grau de deficiência.

Depois da aprovação da lei de cotas raciais, com a reserva de 20% das vagas no serviço público para negros e pardos, apenas 5% das vagas estão sendo reservadas para pessoas com deficiência. Antes chegava a ser até 20 %.

Como a população Brasileira com deficiência gira em torno de 24 %, segundo o IBGE, a população economicamente ativa (PEA) deve ser de 15 %, as deficiências leves ou graves vão continuar sendo a reserva de mão de obra desempregada.

Uma análise minuciosa de cada voto, dos seis ministros do STJ, que votaram a favor da emissão da Súmula nº 552, percebe-se uma total discriminação em relação aos tipos e graus de deficiência, quando o primeiro TIDH aprovado com status de Emenda Constitucional (Convenção da ONU em Nova York), e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (LBI) proíbem a discriminação por motivo de deficiência.

As Súmulas 377 e 552 do STJ são antagônicas, por promover, uma discriminação desarrazoável e desproporcional, ou seja, as súmulas são contraditórias.

Atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, uma ser humano de cor parda que tenha surdez unilateral concorre nas cotas, mas uma pessoa branca com surdez unilateral não é cotista, uma clara agressão ao princípio da diferença.

Portanto, ao mesmo tempo que o estado brasileiro deve fazer políticas públicas especificas em favor das deficiências mais graves, não deve tratar a surdez unilateral como "bode expiatório".

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Referências
[1] TRIGUEIRO, Charles de Sousa Trigueiro. Discriminação por graus de deficiência: as súmulas do STJ para visão monocular e surdez unilateral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

[2] FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 9ed.Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998. p. 184

[3] CRIADO DEL RIO, MT. Relacion causal. Estado anterior. IN: Valoracion médico legal del Daño a la Persona. Civil, penal, laboral e administrativa. Responsabilidade profesional del perito médico. Colex, Madrid, 1999. p. 246-275

[4] TRIGUEIRO, Charles de Sousa Trigueiro. Escalonamento das cotas nos vestibulares Brasileiros em três graus de deficiência. IN: II CITICDE, novembro de 2017, Coimbra – Portugal (ANAIS) Centro de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, 2017.

[5] TRIGUEIRO, Charles de Sousa Trigueiro.; OLIVEIRA, Letícia. Martins. A previsão de uma reserva específica para pessoas com deficiência intelectual na Espanha. In: [autores, Adriano Zilhão… et al.]. (Org.). I Congresso Ibero-Americano de Intervenção Social : Cidadania e Direitos Humanos. 1ed.portugal: Lema de Origem, 2018, v. 1, p. 1-450. ISBN: 9789898890016. URL: http://iacobus.usc.es/search~S1*gag?/Xcidadania+e+direitos+humanos&SORT=D/Xcidadania+e+direitos+humanos&SORT=D&SUBKEY=cidadania+e+direitos+humanos/1%2C2%2C2%2CB/frameset&FF=Xcidadania+e+direitos+humanos&SORT=D&1%2C1%2C

[6] OLINA. José Antonio Moreno. La inclusión de las personas con discapacidad en un nuevo marco jurídico-administrativo internacional, europeo, estatal y autonómico. Prólogo José Luis Piñar Mañas. Navarra: Editorial Aranzadi, 2016. p.163 e164

[7] BRIANT, Emma; WATSON, Nick; PHILO, Greg. Bad News for Disabled People: How the newspapers are reporting disability. Strathclyde Centre for Disability Research e Glasgow Media Unit, Universidade de Glasgow em associação com Inclusion London. Versão eletrônica em http://www.gla.ac.uk/media/media_214917_en.pdf

Ver também:

JOLLY, Debbie. How the media is demonising disabled people in Europe, relatório para o Europena Network for Independent Living. Versão eletrônica em http://www.enil.eu/news/how-the-media-is-demonising-disabled-people-in-europe

[8] RECORD TV BRASIL, Programa Câmara Record (2020, fevereiro 03). Câmera Record investiga golpe da falsa deficiência na compra de carros novos [Arquivo de vídeo] Recuperando de https://www.youtube.com/watch?v=qcUkCElJ3V8

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