Opinião

Execução penal internacional e Convenção de Transferência de Pessoas Condenadas

Autores

  • André Luiz Valim Vieira

    é advogado mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) doutor em Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Unesp coordenador da Comissão de Direito Internacional da 22ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São José do Rio Preto/SP e sócio da Vieira & Carvalho Advogados.

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  • Robson Ferreira de Carvalho

    é advogado sócio da Vieira & Carvalho Advogados e pós-graduado em Criminologia Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário de Rio Preto (Unirp) coordenador da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da 22ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São José do Rio Preto/SP.

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31 de outubro de 2022, 11h09

O exercício do jus puniendi do Estado se manifesta de duas formas principais em um Estado Democrático e a partir do devido processo legal: através do processo de conhecimento em que se procura  mediante as garantias do contraditório, ampla defesa e seus consectários constitucionais  a constituir um título executivo criminal judicial estabelecendo uma pena; e, posteriormente, mediante a execução criminal com o cumprimento efetivo da reprimenda penal conforme as previsões normativas ou os tratados internacionais relativos a este tema. Assim como a norma penal se apresenta, ante o princípio da legalidade, como legalidade estrita e o princípio da jurisdicionariedade; segundo Ferrajoli, duas regras semânticas complementares [1], tendo como destinatários o legislador e o julgador, respectivamente.

Essa regra de jurisdicionariedade, portanto, em conotação binária ou complexa pressupõe para aplicação da pena: decisão condenatória conforme o decido processo legal e as regras processuais; e, uma posterior execução criminal com o cumprimento da pena ou medidas impostas. Destaque-se que tanto uma como outra podem ser perfectibilizadas internamente segundo as regras de jurisdição, competência e ação internas ou ser originárias de outros Estados mediante mecanismos convencionais internacionais.

O Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41) enquanto norma reguladora dos procedimentos criminais inicia sua ordenação com sua aplicação erga omnes excepcionando-se somente quanto aos tratados, convenções e regras de direito internacional. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) surgida no movimento legislativo reformador penal cujas consequências foram a alteração da Parte Geral do Código Penal e a legislação de execução criminal. Convém destacar ainda que com a Lei de Migração (Lei nº 13.445/17) ao revogar o anterior diploma do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) estabeleceu novas bases relativas aos direitos fundamentais dos migrantes assim como inovou no sistema normativo nacional com a previsão da transferência de execução de pena.

Até o advento da nova legislação migracional toda sistemática de execução criminal de estrangeiros ou nacionais, internamente ou internacionalmente, prescindiria de tratado bilateral ou multilateral com a adesão e concordância das nações envolvidas. Posteriormente, com a codificação migracional deste tema o Brasil passou a ter uma legislação própria, norma geral, sobre o tema de transferência de pessoas condenadas, transferência de execução penal e outros temas correlatos imprescindíveis à sua consecução: como a regulação dos procedimentos de deportação, expulsão e extradição.

A Lei de Migração ao regular o procedimento transferência de execução de pena e de transferência de pessoa condenada (juntamente com o Decreto nº 9.199/17) como forma de cooperação jurídica internacional sempre vinculada à existência prévia de tratado e acordo, bilateral ou multilateral, entre as nações ou mediante o compromisso diplomático de reciprocidade. Interessante destacar que, conforme a lei migracional, enquanto a transferência de execução de pena pressupõe um envio para outro país como requisito para início do cumprimento de pena; a transferência de pessoa condenada importa em medida tem natureza humanitária com o propósito de reintegração social do beneficiado. Juntamente com a transferência da pessoa condenada para o seu país de nacionalidade ou para onde tiver residência habitual ou vinculo pessoal, desde que expresse interesse nesse sentido, a fim de cumprir a pena a ele imposta pelo Estado brasileiro por sentença transitada em julgado, acrescentando-se a este procedimento a imposição de impedimento de reingresso no território nacional.

Para a Lei de Migração nos casos em que couber solicitação de extradição executória possa a autoridade competente solicitar ou autorizar a transferência da execução da pena [2]. Para a transferência de execução de pena há a necessidade de homologação da decisão condenatória perante o Superior Tribunal de Justiça e, após a execução de pena em instâncias ordinárias ocorrerá perante a Justiça Federal. Logo, para a transferência de competência internacional para a execução da pena é necessária a atuação jurisdicional com a homologação e o cumprimento da pena.

A transferência de pessoa condenada, entretanto, não apresenta a necessidade de atuação do Poder Judiciário para a homologação da decisão estrangeira. Todas as etapas e requisitos, definidos em tratados ou estabelecidos de forma diplomática pelo condão da reciprocidade, serão discutidos através do Ministério da Justiça. Quando o condenado tem o Brasil como destino (transferência ativa) após sua internalização em território nacional a execução e continuidade da pena passariam para supervisão e fiscalização perante o Judiciário para execução criminal. Registre-se ainda que a transferência de pessoa condenada deverá após as formalidades e tratativas  com o ingresso do nacional em território brasileiro para a transferência ativa, ser encaminhada à Justiça Federal, segundo as regras da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), para que a vaga em estabelecimento prisional onde a pessoa condenada cumprirá o restante da pena no território nacional seja providenciada.

O Brasil é signatário de 16 tratados bilaterais124 e três multilaterais125 versando sobre a Transferência de Pessoas Condenadas [3]. Em breve, um novo tratado será acrescido a este rol de normas processuais e execução penal de origem internacional. A Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, é conhecida no meio acadêmico e diplomático como Convenção 112 ou ETS 112 (Convention on the Transfer of Sentenced Persons) [4], cuja numeração integra sua denominação. Foi assinada em Estrasburgo, em 21 de março de 1983. Aplica-se às nações integrantes do Conselho da Europa com uma peculiaridade: Estados não europeus podem manifestar adesão e integrar como parte este Tratado multilateral. O próprio texto da norma internacional autoriza sua adesão por países não integrantes do Conselho Europeu com o objetivo de que nacionais condenados no exterior e em outros Estados-parte possam ter a oportunidade de cumprir, em seu país de origem, o restante da pena privativa de liberdade imposta pela Justiça estrangeira, de modo a facilitar sua reinserção na vida em sociedade. Concede-se assim aos estrangeiros que se encontram privados da sua liberdade em virtude de uma infracção penal tenham a possibilidade de cumprir a condenação no seu ambiente social mais familiarizado cumprindo assim uma dupla conquista: o preenchimento do caráter humanitário do Tratado e do cumprimento da pena.

Através da Mensagem nº 481/2019 o Poder Executivo, por meio do Ministério da Relações Exteriores, enviou ao Congresso Nacional, em outubro de 2019, o texto da Convenção 112. O texto então, tramitando inicialmente na Câmara dos Deputados obteve aprovação junto às Comissões da casa iniciadora e, por fim, sendo aprovada em Plenário em 18 de novembro de 2011, como Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 768, de 2019. No Senado Federal, em sua função de casa revisora, encerrando a tramitação bicameral, foi finalmente aprovado no início de outubro de 2022, resultando assim no Decreto Legislativo nº. 134/2022, cujo desiderato é a aprovação do texto da Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas. Restando somente a ratificação e publicação por parte do Presidente da República.

Quando já em vigência para o Brasil, a Convenção 112 modificará significativamente o sistema de cooperação jurídica internacional em matéria de execução criminal: descortinando uma nova forma de reinserção social do condenado, aproximando-o de seus familiares e de sua origem. E, talvez cumprindo mais fielmente o propósito ressocializador da pena. Impõem-se que o condenado seja nacional do Estado da execução da pena, diverso daquele Estado da condenação; que a sentença seja definitiva; assim como que os atos ou omissões que deram origem à condenação criminal constituam, igualmente, uma infração penal face à lei do Estado de execução. Pois, propõe-se aproximar o Brasil de dezenas de outras nações signatárias e integrantes do mesmo tratado multilateral.

Há que se destacar ainda a imposição de outras exigências e requisitos para que possa ser realizada a transferência de pessoas condenados entre os Estados signatários, como por exemplo: que o restante da pena privativa de liberdade a ser cumprido deva ser de, no mínimo, seis meses quando do recebimento do pedido (artigo 3º); a necessidade de existir no processo de transferência documento que ateste o consentimento expresso e voluntário da pessoa condenada em ser transferida para seu país de origem (artigo 8º) inclusive cuja verificação regular de concordância possa ser feita por cônsul ou outro representante do Estado de execução; além de questões relacionadas sobre os efeitos penais da condenação entre o Estado sentenciador e o Estado recebedor (artigo 9º).

Outra questão extremamente interessante é o dever jurídico assumido pelos Estados signatários da Convenção 112 de que o condenado ao manifestar, junto do Estado da condenação, o seu desejo de ser transferido ao abrigo da presente Convenção, este Estado da sentença condenatória deve informar de tal fato, via cooperação jurídica internacional, ao Estado da execução. Não se trata, pois, de uma faculdade e sim de um dever jurídico internacional de vinculação obrigatória às nações partes do tratado; fixando-se o Ministério da Justiça de cada país como Autoridade Central.

O fato de se realizar a transferência de execução criminal e envio da pessoa condenada perante o Estado de julgamento para o Estado de origem e executor da pena exige ainda que: o Estado executor continue a execução da condenação imediatamente ou com base numa decisão judicial ou administrativa, não havendo proibição no Tratado para a concessão de qualquer perdão, anistia ou indulto conforme as leis locais permanecendo o Estado destinatário da transferência vinculado pela· natureza jurídica e pela duração da sanção; em converter a condenação, mediante processo judicial ou administrativo, numa decisão desse Estado executor, substituindo assim a sanção proferida no Estado da condenação por uma sanção criminal prevista pela legislação do Estado da execução para a mesma infração penal. Quanto a qual norma deve se aplicar na execução da pena: se a Estado sentenciante ou do Estado executante da pena a Convenção especifica (artigo 9º, b) que execução da condenação se regerá pela lei do Estado da execução, o qual detém competência exclusiva para tomar todas as decisões.

Questão interessante que cabe destacar ainda acerca da Convenção 112 é a de que por se consubstanciar em tratado internacional sobre normas processuais possibilita sua aplicação retroativa, isto é, sua aplicação no tempo pode ser diferida para se aplicar às execuções de condenações criminais anteriores ou posteriores à sua entrada em vigor. No caso do Brasil, após a aprovação em ambas as Casas Legislativas em havendo a ratificação, promulgação e publicação por parte da Presidência da República abre-se a possibilidade de que brasileiros e nacionais condenados em outros países  signatários da Convenção — e que nestes locais estejam cumprindo as sanções possam ser enviados ao Brasil para aqui executar a pena. Assim como permitir-se-á que estrangeiros condenados e que se encontram cumprindo pena em território nacional poderão requerer o envio do cumprimento de sua pena para seu Estado de origem desde que o país destinatário seja integrante da mesma Convenção: os quarenta e cinco Estados integrantes do Conselho da Europa e mais vinte e três Estados terceiros que fizeram adesão.

 


[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103.

[2] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1112.

[3] DEL'OMO, Florisbal de Souza; ROTTA, Diego Guilherme. Das Medidas de Cooperação. In:  FERNANDES, Ana Carolina de Souza; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. Lei de Migração Comentada. Campo Grande: Editora UFMS, 2022, p. 323.

[4] Disponível em: Full list (coe.int)

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor em Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Unesp, pós-doutorando em Direito Internacional Público pela Unesp e coordenador da Comissão de Direito Internacional da 22ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São José do Rio Preto/SP.

  • é advogado, pós-graduado em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal pela Unirp (Centro Universitário de Rio Preto), sócio da Vieira & Carvalho Advogados, vice-coordenador da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da 22ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São José do Rio Preto (SP) (2020-2021).

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