Opinião

Morte de um golfinho-nariz-de-garrafa: bioética, biodireito e ecologia

Autor

  • Bárbara Cristina Kruse

    é doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Mestre em Gestão do Território pela UEPG especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (Emap-PR) advogada acadêmica do mestrado profissional em Direito pela UEPG e integrante da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário/Agronegócio da subseção de Ponta Grossa (OAB-PR).

31 de outubro de 2022, 16h05

A contextualização desse escrito se dá com a terceira morte de um golfinho-nariz-de-garrafa em um delfinário, em menos de seis meses, por problemas respiratórios. O que chama atenção, contudo, é que o animal possuía menos da metade da idade da sua expectativa de vida. A suspeita do motivo da morte do animal, ocorre tanto pelo mesmo permanecer preso em cativeiro, pois isto o expõe ao cloro e ao ozônio (diferentemente do seu habitat), mas, também, porque o animal permaneceu exposto ao forte calor do deserto de Nevada, em Las Vegas, durante as apresentações no Cassino The Mirage. A notícia publicada em 21 de outubro de 2022, remete-nos ainda à questão da exploração dos animais, aos seus intensos e severos treinamentos (CASTRO, 2022).

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Em síntese apertada e longe de esgotar a questão biológica desses cetáceos, o debate das questões éticas e do direito mostra-se oportuno. Isto, pois, a ética decorre da dinamicidade ao comportamento social materializada em hábitos e costumes "em um determinado lugar ou em um determinado período histórico" (CREMONESE, 2019, p. 3).

A moral, neste contexto, rege as atitudes práticas do sujeito, ou seja, é a ação tomada por cada um e, também, a indagação do que se pode ou não fazer. A moral atrela-se a ética, no entanto, é a partir da ética que se reflete o valor imbuído na ação. Neste panorama, a ética faz parte da análise crítica, do questionamento quanto à atitude tomada e, consequentemente, do julgamento de determinadas ações. Enquanto a ética se refere à conduta humana e ao movimento reflexivo, a moral relaciona-se com as condutas. Neste mesmo enlace, a lei desponta como uma proteção de determinados valores a partir de regras que intentam a manutenção da ordem.

Na verdade, a ética, a moral e a lei, exteriorizam a necessidade de discutir o comportamento humano em múltiplas situações. De modo efetivo, enquanto uma delimita uma ação aceitável por todos, configurado como costume (moral), a outra reflete e examina, pelo crivo da perspectiva crítica, estes mesmos costumes (ética). Por fim, a lei é o resultado dos comportamentos que envolvem a ação e a reflexão, transfigurando-se em regras de imposição ao convívio social.  Não é a lei, portanto, que faz juízo de valor, mas a ética que imprime um modelo de conduta ideal. É por isso que, no pensamento de Kelsen (1999), enquanto sistematizador de uma ciência do Direito, intentou-se excluir do conhecimento todo e qualquer objeto que não pertencesse rigorosamente à direção do Direto. Para tanto, delimitou-se uma metodologia essencialmente a Ciência do Direito. Dissociou-se, por consequência, outros elementos periféricos, a exemplo dos fatos sociais e morais, eis que a pretensão era alcançar a libertação da ciência jurídica com outras circunstâncias que lhe são estranhas. Ética e moral, para o positivismo jurídico, atrapalhariam a clareza do método proposto.

Teorias críticas e em prol da interdisciplinaridade galgaram ao longo do contexto histórico, sobretudo àqueles mais contemporâneos. O positivismo, neste viés, passou a ser visto como insuficiente no campo cientifico das complexas relações sociais pós-modernas e pós-humanistas. A análise crítica contemporânea, enquanto substrato metodológico, passou a incorporar a ética nas mais amplas discussões, especialmente após as grandes guerras. Neste contexto, desponta a bioética conceituada como "o estudo sistemático de caráter multidisciplinar, da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais". (KOERICH; MACHADO; COSTA, 2005, p. 108).

A bioética, a partir de princípios pautados pela moral, intenta harmonizar a preservação da vida com a dignidade humana. Porém, a questão desta reflexão pauta-se na indagação: e os não humanos? Ora, se a inserção do meio técnico, científico-informacional (SANTOS, 2006) na sociedade passou a desafiar a filosofia, a ética e a teologia sobre o direcionamento dos seus próprios avanços e conhecimentos, é plausível que ainda no século 21 utilizem-se métodos de entretenimento humano às custas do sofrimento animal? Questiona-se, ainda, o papel do biodireito enquanto disciplina jurídica que abarca as discussões bioéticas, a necessidade de ultrapassar discussões biomédicas, incluindo aí preceitos morais de proteção e valorização da vida não humana. É fato que animais possuem sentimentos nobres como calor, frio, afetuosidade e outros.

O bem-estar animal, mais do que uma discussão acadêmica e filosófica, deve também fundamentar-se na analogia da dignidade da vida humana.  Aliás, a visão antropocêntrica de que os direitos se restringem a nomenclatura "humanos", vem sendo cada vez mais debatida atualmente. Importante destacar, neste panorama, o caso da Declaração de Toulon, proclamada na França em 29 de março de 2019, e, também, o Superior Tribunal de Justiça, com a relatoria do ministro Og Fernandes (REsp 1.797.175/SP), 21 de março de 2019, que apontou a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana, apontando, inclusive, um novo paradigma jurídico biocêntrico. Contudo, apesar dos graduais avanços no que tange aos animais, notícias como as dos golfinhos causam inquietação.

Não há, portanto, como desvencilhar a ecologia e a ética, ao passo em que vivemos em um geossistema dinâmico e indissociável que engloba todas as formas de vida no Planeta Terra. Na reflexão da Carta Encíclica Laudato Si' (2015), do papa Francisco, o Planeta é pontuado como casa comum da civilização humana e não humana, além de que a mesma aponta uma possível catástrofe ecológica que decorre da civilização industrial, na medida em que o progresso social e moral esteve desunido na busca do desenvolvimento econômico [1]. A ecologia, mais do que corrente de pensamento contemporânea, se incrusta no século 21 expondo a contradição insolúvel da cultura de massa e mercadológica do capital, frentes as demandas ambientais. Seja pela vertente da obsolescência programada, pelas mudanças climáticas, pelos microplásticos ou pelo problema do lixo, por exemplo, é fato que paulatinamente a natureza vem dando sinais de esgotamento e desequilíbrios.

A exposição do caso dos golfinhos, portanto, teve como objetivo fomentar a discussão ecológica, bem como alentar os debates em torno da dignidade da vida não humana a partir do biocentrismo. A urgência de mudanças clama pela educação ambiental e pela ecologia.   

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CREMONESE, D. Ética e moral na Contemporaneidade. Revista Latino-Americana de Relações Internacionais, v. 1, nº 1, jan.–abr. 2019.

CASTRO, Luiz Felipe. Revista Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/agenda-verde/morte-de-golfinhos-nos-eua-reabre-debate-sobre-exploracao-dos-animais/. Acesso 22 out. 2022.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KOERICH, M. S.; MACHADO, R. R.; COSTA, E. Ética e Bioética: para dar início à reflexão. Texto Contexto Enferm, v. 14, nº 1, p.106-110, jan.-mar. 2005.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si ́. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

 


[1] Nas palavras do Papa "O progresso humano autêntico possui um carácter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado". (…) (p. 6).

Autores

  • é consultora ambiental, doutora em ciências sociais aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), mestre em gestão do território (UEPG), especialista em Direito Aplicado (Emap-PR), acadêmica do mestrado profissional em Direito pela UEPG, integrante da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário/Agronegócio da subseção de Ponta Grossa da OAB-PR e pesquisadora da área cultural e ambiental.

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