Presidente x Presidente

O que revelam as escolhas de Lula e Bolsonaro para o mundo jurídico

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30 de outubro de 2022, 9h40

A Constituição confere ao presidente da República uma grande liberdade de escolha para a indicação de operadores na área jurídica do governo e do Estado. São de livre escolha do presidente — com aprovação do Legislativo em alguns casos — os ministros do Supremo Tribunal Federal, bem como os titulares da Procuradoria-Geral da República, da Advocacia-Geral da União e do Ministério da Justiça. As escolhas para preencher estes postos na administração pública podem dizer muito da visão de mundo e das intenções de quem as faz.

STF
Divulgação

Comecemos pelo Supremo, possivelmente a mais reveladora vitrine dos sentimentos e pensamentos dos mandatários que indicam seus ocupantes. Luiz Inácio Lula da Silva começou seu governo sob a composição de um Supremo que tinha dois ministros herdados da ditadura militar (Moreira Alves, nomeado em 1975 pelo general Ernesto Geisel, e Sidney Sanches, pelo general João Figueredo em 1984); dois foram escolhas do governo de transição democrática de José Sarney (Celso de Melo e Sepúlveda Pertence); e seis eram crias de governos comandados por Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, os candidatos que derrotaram Lula nas eleições presidenciais anteriores à sua posse em 2003 (Gilmar Mendes, Nelson Jobim e Ellen Gracie por FHC e Carlos Velloso, Ilmar Galvão e Marco Aurélio por Collor). Falta citar o décimo-primeiro integrante da corte, naquele momento: Maurício Corrêa, nomeado por Itamar Franco.  

Spacca
Lula ficaria livre dos dois remanescentes dos tempos da ditadura logo em seu primeiro ano de governo. José Carlos Moreira Alves, um notável jurista, permaneceu 28 anos na Suprema Corte, durante os quais exerceu uma avassaladora influência tanto política quanto jurídica sobre seus pares. Com sua retirada em 2003, o papel de liderança na corte se diluiu. Mesmo tendo a oportunidade de fazer oito indicações para a Suprema Corte, Lula não conseguiu designar um influenciador do porte de Moreira Alves.

O vazio deixado por ele acabou sendo ocupado pelos veteranos Celso de Mello e Gilmar Mendes — ambos impulsionados pela experiência que já tinham na corte, Celso mais por seu notório saber jurídico, Gilmar também por sua desenvoltura política. Também não pode ser esquecida a participação do ministro Marco Aurélio, outro veterano, presente em todos os grandes debates travados na Corte desde então.

Com Gilmar ainda em ação, Celso e Marco Aurélio só vieram a se retirar da Corte no final do governo Bolsonaro, em 2020 e 2021, oferecendo ao presidente a oportunidade para as duas únicas nomeações de sua gestão. Kassio Nunes Marques, um desembargador federal de carreira até então discreta, foi o escolhido para ocupar o lugar de Celso de Mello; André Mendonça, procurador federal que já socorrera o presidente na Advocacia-Geral da União e no Ministério da Justiça, substituiu Marco Aurélio.

Spacca
Embora na escolha de Nunes Marques tenha prevalecido mais o critério técnico — afinal o escolhido foi um juiz federal, vindo do quinto constitucional da OAB, somando experiência tanto na advocacia quanto na magistratura — o novo ministro revelou-se um expert em construir seus votos com argumentos jurídicos que favoreçam os interesses do governo.

Já André Mendonça foi escolhido para satisfazer ao critério extraconstitucional criado pelo presidente da República que procurava um ministro "terrivelmente evangélico". Pesou também na escolha o fato de ter mostrado lealdade incondicional ao presidente quando ocupou a Advocacia-Geral da União — um cargo de Estado e não de governo — e como Ministro da Justiça. Apesar disso, tem demonstrado mais independência em seus votos, ancorado em seu reconhecido preparo acadêmico na área jurídica. A depender da idade dos dois indicados por Bolsonaro, o bolsonarismo estará representado na Suprema Corte pelos próximos 25 anos.

Lula também indicou um ministro terrivelmente religioso — Menezes Direito, que era católico — mas essa característica, à época, foi vista como uma restrição e não como uma qualificação para recomendá-lo. E em sua breve passagem pela Corte — ele morreria dois anos depois de tomar posse — não se notabilizou por votos católicos, mas por ter criado o duvidoso conceito do marco temporal na política de demarcação de terras indígenas, cuja constitucionalidade foi contestada e ainda pende de decisão no Supremo.

Também norteado por requisito que extrapola o notório saber jurídico, Lula indicou o ministro Joaquim Barbosa, um procurador do Ministério Público Federal com notável carreira acadêmica e escassa produção ministerial, para cumprir uma cota racial que o próprio presidente se impusera. A grande contribuição de Joaquim Barbosa na Corte foi a relatoria da Ação Penal 470, o processo do mensalão, que conduziu com furor punitivista e que dizimou os quadros do PT, o partido do presidente que o indicou para o cargo.

O revisor da Ação Penal 470 foi o ministro Ricardo Lewandowski, que é, entre os nomeados por Lula, um dos mais próximos ao ex-presidente. Sua atuação na Corte, como ficou demonstrado no julgamento do mensalão, não revela maior condescendência com os réus e as posições petistas. Coube a Lewandowski, também, presidir o julgamento do processo de impeachment que tirou a presidente Dilma Rousseff do cargo. Partiu dele a iniciativa de preservar os direitos políticos da presidente, mas atuou como um magistrado diante de sua condenação.    

O mesmo se pode dizer dos ministros que relataram as ações da operação "lava jato" na corte, o processo supostamente movido para combater a corrupção na Petrobras, mas que, por obra do juiz Sergio Moro e do procurador da República Deltan Dallagnol, se transformou em arma de perseguição política contra Lula e o PT. Teori Zavascki e Luiz Edson Fachin, os dois relatores do caso no STF, ambos indicados pela presidente Dilma Rousseff, do PT, nunca aliviaram para Lula ou para seu partido, muito pelo contrário.        

O ministro Dias Toffoli, que ostenta em seu currículo prévio ao ingresso na corte passagens pela assessoria jurídica da Casa Civil e pela chefia da Advocacia-Geral da União, ambas no governo Lula, além de serviços de advocacia prestados ao Partido dos Trabalhadores, não registra votos de gratidão a Lula ou ao PT. Nota-se, por sinal, que, como presidente do STF, manteve uma relação muito amistosa com o presidente da República, Jair Bolsonaro.

Cármen Lúcia, a outra ministra indicada por Lula que continua em atividade, deixou em Minas Gerais uma carreira como procuradora do Estado, depois de ter ocupado a Advocacia-Geral do Estado, e outra como professora da PUC-Minas. Sua atuação no Judiciário, onde já foi presidente do STF e do Tribunal Superior Eleitoral, acontece sem demonstração de preferências ou antipatias partidárias.

O novo presidente vai governar em convivência com uma corte formada por quatro ministros indicados pela presidente Dilma Rousseff, do PT (Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso e Edson Fachin); três indicados por Lula (Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli), dois por Bolsonaro (Nunes Marques e André Mendonça) um por Temer (Alexandre de Moraes) e outro por Fernando Henrique Cardoso (Gilmar Mendes).

Ele terá, ainda, a oportunidade de nomear os substitutos de Lewandowski, que se aposenta até o dia 11 de maio de 2023, e Rosa Weber, que pode permanecer na corte e em sua Presidência até o dia 2 de outubro de 2023. 

PGR
A Constituição prescreve que a escolha dos Procuradores-Gerais dos Estados é feita pelo chefe do Executivo estadual a partir de lista tríplice feita pelo respectivo Ministério Público. Mas quando trata da escolha da PGR, a Carta não impõe a necessidade da lista tríplice. Também não a proíbe. Fica a critério do presidente acatar a lista feita pelos procuradores, ou não. Lula acatou, Bolsonaro não. E não se pode dizer que as escolhas de um foram melhores do que a do outro.

Bolsonaro começou seu mandato com Raquel Dodge na chefia da PGR, nomeada pelo presidente Michel Temer, tendo em conta a lista tríplice formada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Ela foi a segunda mais votada dos três indicados. Em primeiro lugar na lista ficou o subprocurador-geral Nicolao Dino.

Dodge não se inscreveu para participar da eleição dos integrantes da lista tríplice que escolheria seu sucessor, mas se colocou à disposição do presidente Bolsonaro, caso ele quisesse mantê-la no cargo.  Bolsonaro não quis e tinha motivos para isso. Em 2018, ela o denunciou por crime de racismo contra quilombolas, indígenas, mulheres e LGBTs, a propósito de afirmações consideradas injuriosas feitas por ele em uma palestra no Rio de Janeiro, quando ainda era deputado.

Bolsonaro ignorou também a lista tríplice e nomeou o subprocurador-geral Augusto Aras. O novo PGR, estranho aos grupos que manobravam a política interna da instituição em gestões anteriores, se propôs e conseguiu institucionalizar o trabalho do Ministério Público Federal. Entre suas realizações, ele aponta a substituição das forças-tarefas, que a exemplo da "lava jato" atuavam como um poder paralelo e autônomo dentro do MPF, pelos Gaecos, Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, que operam de forma orgânica e permanente dentro da estrutura do MP.

Para a oposição, contudo, Aras tem se omitido consistentemente na persecução de crimes supostamente cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele é acusado de engavetar um sem-número de denúncias que miravam ações, omissões e palavras do presidente e de sua gestão.

No início de seu governo, Lula conviveu com um PGR herdado da administração Fernando Henrique Cardoso, já em seu quarto mandato e que era jocosamente conhecido pela alcunha de "engavetador-geral da República". Para sucedê-lo inaugurou a prática de acatar a indicação da lista tríplice. Teve oportunidade de nomear três PGRs e escolheu sempre o que estava em primeiro lugar na lista tríplice formada pela ANPR: Claudio Fonteles em 2003, Antônio Fernando de Barros em 2005 e Roberto Gurgel em 2009.

Coube a Antônio Fernando apresentar a denúncia por crimes de corrupção e formação de quadrilha contra um grupo de integrantes do governo e do PT no que ficou conhecido como o escândalo do mensalão. Mesmo assim foi reconduzido ao cargo para um segundo mandato pelo presidente.

AGU
Por obra e graça de Lula primeiro e depois de Bolsonaro, a Advocacia-Geral da União acabou se transformando em uma espécie de vestibular para o Supremo Tribunal Federal. Antes de ser nomeado ministro do Supremo pelo presidente Lula, o advogado José Antônio Dias Toffoli ocupara por dois anos a chefia da AGU. Por não fazer parte da instituição anteriormente, sua liderança enfrentou resistência de grupos internos. Bolsonaro repetiu o estratagema: colocou André Mendonça na AGU em dois períodos distintos antes de nomeá-lo ministro do Supremo. Esta prática, na verdade, foi inventada no governo FHC: Gilmar Mendes fez um estágio na AGU antes de ser nomeado para o STF.

Antes de Toffoli, Lula nomeou para a AGU subprocurador-geral da República aposentado Álvaro Ribeiro Costa. Para suceder Toffoli, foi escolhido o procurador da Fazenda Nacional Luís Inácio Adams, que permaneceu no cargo por quatro anos. Desta forma, Lula teve três advogados-gerais da União nos oito anos de sua gestão.

Jair Bolsonaro, no entanto, em menos de quatro anos, trocou de advogado-geral quatro vezes. Começou com André Mendonça, substituiu-o por José Levi, voltou com Mendonça e chamou, no final, Bruno Bianco. Sua maior dificuldade foi entender que o advogado-geral exerce uma função de Estado e não de governo. Foi essa confusão que induziu, por exemplo, José Levi Mello do Amaral Júnior a deixar a AGU antes de completar um ano no cargo. Mestre, doutor e livre docente em Direito, professor da USP e do UniCeub, autor de livros de Direito Constitucional, Levi deixou a assessoria jurídica do governo por entrar em choque com o presidente da República.

Ministro da Justiça
Em oito anos de governo, Lula teve três ministros da Justiça: Márcio Thomaz Bastos, um advogado criminalista de renome; Tarso Genro, um advogado trabalhista sem maior destaque, mas um político de grande prestígio dentro do partido do presidente; e Luiz Paulo Barreto, um funcionário de carreira do próprio Ministério da Justiça. Thomaz Bastos, além de ministro, foi um dos principais conselheiros políticos do presidente. Dos oito ministros que Lula indicou para o STF uma coisa é certa: nenhum teve seu nome confirmado sem a aprovação de Márcio Thomas Bastos.

Jair Bolsonaro também teve três ministros, mas em quatro anos de mandato. E nomeação de nenhum ministro de nenhum governo anterior provocou tanta suspicácia quanto a do ex-juiz Sergio Moro para a pasta da Justiça no governo Bolsonaro — uma história nefasta que dispensa maiores explicações. Mesmo prometendo o Juízo Final que revolucionaria a Justiça brasileira, Moro durou pouco. Foi substituído inicialmente pelo coringa André Mendonça e depois, pelo delegado da Polícia Federal, Anderson Torres. 

 

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