Opinião

Liberdade de quê? Não é censura, é civilidade

Autor

  • Thiago Turbay Freiria

    é mestre em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (Espanha) e Università Degli Studi di Genova (Itália) mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) pós-graduado pela Universitat de Girona (UdG) e diplomado em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile).

29 de outubro de 2022, 17h14

A circulação e difusão de mensagens manipuladas com objetivo de burlar legislações e regulações concernentes ao direito, em especial eleitorais, não são o mesmo que o livre exercício de manifestação política autorizada.

No último mês, assistimos à profusão desenfreada de discursos em contrariedade do que nomearam de censura, calçados na discordância de decisões judiciais, cuja investidura de poderes, em realidade, prescrevem o dever de agir contra violações que merecem reproche pelo direito e pela comunidade política.

A questão é: as decisões judiciais que proíbem a veiculação de conteúdo manipulado e ofensor merece proteção jurídica válida e justificável racionalmente? É preciso analisar as normas de permissão e proibição dos discursos para chegarmos a uma conclusão minimamente aceitável.

A Ata da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou o texto Constitucional vigente, em sua folha 15 assevera: "durante processo de votação do Capítulo I da Constituição, é aprovado o fim da censura, a criminalização da tortura e a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação; é aprovado o direito de todo cidadão conhecer as informações a seu respeito arquivadas nos bancos de dados do governo" [1].

A requisição para inclusão da liberdade de expressão no texto constitucional foi autuada após pressão da classe artística, vítima contumaz da censura [2]. O documento foi contestado [3] pela Associação dos Censores Federais (Anacen), a Associação Nacional dos Servidores do Departamento de Polícia Federal (Ansef), Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), que conjuntamente apresentaram emenda para a manutenção da censura. O resultado final, todos sabem, cunhou-se o artigo 5º, inciso IX: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença".

Tal fundamento já encontra limites no próprio texto constitucional, cuja barragem está no artigo 139, III: "Na vigência de estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: III. Restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei…".

A ideia por trás da norma que limita a liberdade de expressão é o interesse público, condensado no conjunto de valores protegidos pelo direito, que foram agrupados na locução "ordem pública" [4]. Valores esses concernentes à segurança pública, preservação do patrimônio, saúde pública, democracia, dignidade humana, entre outros.

De saída, o limitador da liberdade de manifestação intelectual, científica, artística e de comunicação prescreve um dosador de condutas inerentes à civilidade social e a organização do substrato social em termos de garantir a pacificação de conflitos. A liberdade de expressão é fundamento reitor do sistema constitucional, célula de ancoragem que coloca a manifestação livre como atributo da dignidade humana, portanto, de observância necessária no centro de poder das decisões do estado e do convívio social.

Esse fundamento é suficiente para atestar a grande valência da liberdade de expressão de maneira a promover a dignidade humana, a proteção frente às ofensas detratoras incomunicáveis com o Estado Democrático de Direito.

É nesse sentido que a proibição de discurso de ódio nos parece razoavelmente justificada pelo Direito e expressada na Constituição Federal, ainda que dependente de uma perspectiva analítica [5], que requer a realização da atribuição de valor ao texto, a interpretação das normas constitucionais. A justificação dos enunciados normativos expressados na Constituição requer a compreensão do conteúdo linguístico que traduz a prescrição, o agir em conformidade ao modelo instituído. No caso do direito, o agir sem contraste com as normas que assimilam um conjunto de permissões e proibições que regulam a vida social.

É necessário realizar uma interpretação coerente, sistêmica e semanticamente defensável para extrair o conteúdo das normas constitucionais. Tal atividade é comumente realizada pela argumentação, nos dizeres de Comanducci: a atividade de brindar razões em favor de uma conclusão racional, o que requer a apropriação de uma concepção que considere o grau de consistência da norma que prescreve um comportamento aceitável frente ao direito. Tal asserção é condizente com um modelo de justificação racional do conteúdo das normas frente ao sistema jurídico o qual está inserida.

Explico! Se a liberdade de expressão não é o único valor jurídico protegido pela Constituição, é necessário realizar uma atividade intelectiva de conjugação [6] com outras normas e regulamentos concernentes à Constituição, o que prediz sua força. Não pode o direito proibir um comportamento que ele aceita como válido e justificado, o que lhe conduziria à fissura da sua coesão e consistência e do caráter preditivo do direito. Exemplo: se a norma "matar A é proibido" é válida e legítima, não pode haver uma permissão de matar A.

Com maiores detalhes, o direito proíbe condutas ofensoras da honra [7] e dignidade humana, o que restringe o âmbito de autorização de comportamentos individuais, ainda que regidos por uma liberdade concessiva à manifestação pública. É simples, a liberdade de expressão é nuclear e organicamente vinculada aos valores protegidos pelo direito, no tocante às garantias e liberdades individuais.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) explica com mais clareza, em seu artigo 10. Segundo a norma internacional, que inspirou nossa formulação normativa, "Toda pessoa tem direito a liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber o comunicar informações o ideias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem consideração de fronteiras" [8]. Em um primeiro momento, parece uma concessão ilimitada. Mas vejamos: "O exercício destas liberdades, que inserem deveres e responsabilidades, poderá ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituem medidas necessárias para uma sociedade democrática…".

Não há nada mais claro. Mas, houve por bem completar o sentido, para que não houvesse dúvidas semânticas mais profundas. Continua a Convenção: "… para a segurança nacional, a integridade nacional ou segurança pública, a defesa da ordem e prevenção de delito, proteção da saúde e da moral, proteção da reputação ou de direitos alheios…". Basta por aqui!

O agregador das normas expressadas na CEDH revela que o estamento de proteção da liberdade de expressão convola regras protetivas da dignidade humana e do convívio social, não admitindo detração da ordem democrática e integridade nacional. Portanto, requer-se uma concessão de liberdade responsável, eticamente validada e admitida pelo direito e pelas normas de convívio social.

Aos desavisados já alerto, o esboço argumentativo que fiz não valida incontinenti violações injustificadas ao direito de proferir manifestações livremente. Todavia, condiciona esse exercício de direito à programação constitucional que prescreve responsabilidade e deveres, havendo clara legitimidade para sanção de condutas desviadas do texto Constitucional e da ordem jurídica.

Por fim, a aposta civilizatória de responsabilização da produção, difusão massiva [9] e orientada de conteúdo ofensor, distribuição e propagação de conteúdo manipulativo e detrator da ordem de direitos e liberdades individuais e da organização democrática e constitucional do Estado, considerada em seu bloco protetivo, não retarda ou desidrata a liberdade de expressão. Ao contrário, age para fortalecer, vinculando-a a produção responsiva e ética.

A razão protetiva que destaca normas opulentas de proteção à liberdade manifestação não visam proibir discursos indesejados, mas ofensas criminosas, que são detratoras da própria liberdade, dado o caráter manipulativo e opressor dos conteúdos ofensores de direitos e da dignidade humana e do Estado Democrático.

 


[2] Tomarei como conteúdo semântico de censura a proibição, interrupção, deformação da originalidade do conteúdo artístico, científico, religioso, intelectual e comunicacional realizado por meio de arbítrio injustificado, considerando a ordem jurídica nacional.

[4] Apesar da difícil conceituação do que compreende o âmbito de incidência e o conteúdo do que é ordem pública, a ideia geral é de controle de avenças que colocam em risco a estrutura do Estado e do convívio social.

[5] Nesse sentido, veja COMANDUCCI, Paolo. Razonamiento Jurídico: elementos para un modelo. Fontamara, Año 1999, pp. 71 ess.

[6] Tal expediente se reconhece como técnica de interpretação e decisão chamada ponderação. Veja Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 93 e ss.

[7] Cito como exemplos os crimes contra a honra, tipificados no Título I, Capítulo V do Código Penal.

[8] Disponível em: https://echr.coe.int/documents/convention_por.pdf. Acesso 28/10/2022.

[9] Já me pronunciei junto ao professor Guilherme Pinheiro acerca da necessidade de responsabilizar ofensas realizadas por meio das redes sociais ou aplicações de internet, atribuindo obrigações e deveres de informações responsáveis pela integridade social e comunitária dessas ferramentas. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-buscadores-e-redes-sociais-devem-ser-punidos-penalmente-por-conteudos-ilicitos-dos-usuarios/. Acesso em 28/10/2022.

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