Opinião

Cancelamento de pontos em programa de fidelidade aérea com falecimento do titular

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28 de outubro de 2022, 20h13

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou válida a cláusula do regulamento do programa de fidelidade de uma companhia aérea que previa o cancelamento dos pontos acumulados pelo cliente após o seu falecimento.

123RF
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O ministro Moura Ribeiro, relator do caso, observou que esse é um tipo de contrato de adesão, unilateral e gratuito, em que a empresa aérea fica responsável tanto pelo estabelecimento das cláusulas quanto pelas obrigações decorrentes do acordo, não tendo o consumidor que pagar pelo benefício. "Sendo o contrato gratuito, deve ser interpretado de forma restritiva, nos termos do disposto no artigo 114 do Código Civil", disse o relator.

Com a devida vênia ao entendimento do ilustre ministro Relator, não podemos nos filiar a esse entendimento.

Necessário se faz demonstrar o compreender o modelo de negócio de fidelização e o  enquadramento jurídico desses programas, nos quais o consumidor pode acumular pontos de duas formas distintas:

a) pela compra de pontos, que é uma espécie de contrato de câmbio entre moeda oficial e moeda paralela (pontos), onde o consumidor pode comprar pontos diretamente dessas empresas de fidelização, pagando o valor correspondente em reais, e;

b) adquirindo produtos e serviços de seus parceiros comerciais, certo que a cada contratação realizada perante seus parceiros comerciais, o consumidor acumula uma determinada quantidade de pontos, o que inclui as milhas acumuladas pelas passagens compradas das companhias aéreas.

Na primeira hipótese, é indubitável que, em se tratando da aquisição direta demonstrada, os pontos são comercializados pelas empresas de forma onerosa, mediante contrapartida de pagamento em dinheiro. Nesse cenário, a transação é operada diretamente entre o consumidor e o administrador do programa de fidelidade com o pagamento em dinheiro em troca dos pontos.

Já na segunda hipótese, o consumidor recebe, além do produto ou serviço adquirido, uma determinada quantidade de pontos. Em princípio, poderia se cogitar que o acúmulo de pontos no programa de fidelidade nesta modalidade constituiria um benefício graciosamente ofertado pelas empresas aos seus clientes, como estímulo à fidelização na aquisição de seus serviços.

No entanto, para que fosse possível compreender os pontos como forma de premiação, seria necessário afastar qualquer forma de contrapartida financeira do consumidor ao empresário. Ou seja, os pontos não teriam nenhum custo ao consumidor e, na verdade, seriam totalmente custeados pelos empresários que os ofereceria a título de premiação e liberalidade. Mas por óbvio, o preço desses pontos está embutido no preço dos bens adquiridos.

Nota-se, portanto, que os pontos representam uma receita. Assim, se a sua contabilização é como receita, não podem ser considerados como um prêmio ou benefício concedidos gratuitamente ao consumidor, caso contrário sua contabilização deveria se dar a título de despesa.

"Economicamente, esta denominada 'gratuidade' é ilusória. É justamente o movimento da análise econômica nos Estados Unidos que nos alerta para a falácia 'econômica' dos chamados 'serviços', 'utilidades' ou promessas 'gratuitas', o que não passaria de uma superada ficção jurídica. O que parece juridicamente gratuito, nos alertam mesmo os conservadores e radicais autores deste movimento de Chicago, é economicamente baseado na certeza da remuneração indireta, na interdependência de prestares futuros e atuais (sinalagma escondido), no estado de catividade e de dependência a que um dos parceiros fica reduzido no lucro direto e indireto do outro". (CLÁUDIA LIMA MARQUES, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 115).

Por isso é que, como premissa básica, a aquisição de pontos pelo consumidor se dá, sempre, a partir de uma relação onerosa, seja ela de compra e venda, de prestação de serviço, de transporte aéreo de passageiros ou mesmo, pela troca de moeda oficial pelos pontos.

Para além da onerosidade evidente, analisando de forma ainda mais aprofundada, verifica-se que a partir do discurso e posicionamento dessas empresas no mercado, os pontos de fidelidade ganharam conotação e status de moeda paralela.

Na prática, o empresário administrador do programa de fidelidade confere ao empresário "parceiro" uma quantidade determinada de pontos por um valor previamente estipulado em moeda oficial. É como se o empresário administrador estivesse realizando propriamente uma atividade de câmbio, ao fixar um valor em moeda oficial da cotação da moeda paralela.

Após a aquisição pelo empresário parceiro, é realizada a distribuição e circulação dos pontos aos seus clientes. A cada compra realizada com determinado empresário parceiro, além do produto, serviço ou contratação de transporte aéreo de passageiros, o consumidor recebe uma determinada quantidade de pontos.

Ainda no ciclo de circulação dos pontos, o consumidor pode utilizá-los amplamente para a aquisição de novos produtos, serviços e aquisição de passagens aéreas, com todos os empresários que integram o programa de fidelidade.

Quando não se está diante de um compra direta de pontos (espécie de contrato de câmbio), sob o aspecto da transferência patrimonial, o que ocorre é que o consumidor, ao realizar compras de produtos, contratar serviços ou transporte aéreo, paga não apenas pelo que de fato objetivou comprar/contratar, mas, também, pelos pontos.

O modelo de negócio criado, portanto, divulga a criação e circulação da moeda paralela, com o credenciamento dos empresários e consumidores, que passarão a utilizar a referida moeda em suas transações.

Demonstra-se, portanto, que o modelo de negócio conhecido como programas de milhagem e fidelidade, está assentado na aquisição onerosa de pontos que são tratados como espécie de moeda paralela, o que vincula e obriga o empresário, nos termos do artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor.

Ora, se os pontos de fidelidade são amplamente comercializados pelas empresas e vendidos aos consumidores finais, é inequívoca a conclusão de que estão tais bens inseridos no mercado e são adquiridos onerosamente pelos consumidores.

Nesse sentido, é a lição de Marli Aparecida Sampaio: "Ao pagar o preço da passagem, ou utilizar de serviços que efetuem pontuação, o consumidor, reitera-se: está pagando em parcelas, por um serviço de transporte aéreo que se efetivará ao final. Mas enquanto não alcança os pontos, também existe uma legítima pretensão do consumidor em somar os pontos, cuja administração fica a encargo da companhia aérea. Esta administração não se dá a título gratuito, mas por interesse da companhia em 'cativar' seus clientes. Daí a remuneração quase que indireta do serviço de contagem de pontos. Ocorre no caso vertente o que Claudia Lima Marques denomina de 'falácia da gratuidade' […] Não existem passagens aéreas grátis, quando entregues por conta de que o passageiro já alcançou as milhas. Na realidade, o consumidor já pagou por elas, e cumpre à companhia honrar todos esses compromissos, sob pena de buscar a tutela de seus direitos junto à Justiça". (SAMPAIO, Marli Aparecida. A natureza jurídica dos pontos acumulados nos "programas de Fidelidade" ou "programas de milhas" das companhias aéreas. Revista de Direito do Consumidor, v. 15, nº 60, p. 196–211, out./dez. 2006).

Assim, por se tratar de negócio jurídico oneroso, o estabelecimento de qualquer cláusula restritiva quanto à disponibilidade de tais bens, por si só, já contraria a essência do negócio jurídico firmado entre os consumidores e as empresas de fidelização por meio da adesão aos seus regulamentos.

É o que sobressai da doutrina de Caio Mário da Silva Pereira, que prescreve: "Não é lícita a imposição das cláusulas restritivas em contrato de compra e venda, permuta, ou outra modalidade aquisitiva onerosa. Nem se tolera que resultem de ato próprio do dono. É inválida, obviamente, a declaração restritiva em relação aos próprios bens". (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito Civil, v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.108/109).

Destarte, podemos concluir que a premissa utilizada pelo ilustre ministro relator é falsa, o que gera como consequência, o resultado equivocado da decisão judicial.

Uma falsa premissa é uma proposição incorreta que dá forma à base de um silogismo lógico. Uma vez que a premissa (proposição ou assunção) não é correta, a conclusão traçada inevitavelmente será errada.

O silogismo baseado em premissas falsas é também conhecido como silogismo erístico. É importante notar, entretanto, que a validade (na técnica, não no senso comum) de um argumento é uma função de sua consistência interna, e não do valor verdadeiro de suas premissas.

A falsa premissa forma, portanto, a base do problema epistemológico de se estabelecer relações de causalidade.

Diante do exposto, podemos concluir que à aquisição de pontos e milhas, deve ser dada caráter oneroso, o que gera como consequência, o direito do possuidor dos pontos, dispor deles como lhe convier e a seguir essa linha de raciocínio, considerando o valor econômico desses pontos no mercado, esses devem ser também transmissíveis aos seus herdeiros quando da sua morte.

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