Opinião

Fernando de Noronha: os impactos da decisão da Anac para além das férias

Autor

  • Rafaela Guerra Monte

    é advogada sócia da Fraemam e Guerra Advocacia mestra e doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE).

26 de outubro de 2022, 9h11

Quem acompanha as notícias deve ter visto a proibição de pousos de aeronaves do tipo turbojato em Fernando de Noronha pelas más condições da pista e o caos instaurado a partir de então. Em um breve resumo dos fatos ocorridos neste mês de outubro, deve ser pontuado que:

Ana Clara Marinho/TV Globo
Pista de pouso em Fernando de Noronha
Ana Clara Marinho/TV Globo

No dia 7 foi publicada a decisão da Anac no DOU (Diário Oficial da União;

Dia 10 as empresas suspenderam as vendas de passagens tanto para turistas, como para moradores;

No dia seguinte ocorreu um voo noturno da Gol Linhas Aéreas, o último com aeronave turbojato;

No dia 12 passou a valer a restrição;

Dia 18 o Ministério Público de Pernambuco enviou ofício à Gol, com investigação instaurada para apurar danos causados pela empresa aos seus clientes, determinando a tomada de providências no prazo de 24 horas [1];

Dia 19 a Gol conseguiu fazer uma operação em parceria com a Voepass e transportou os últimos clientes que ainda estavam na ilha;

No dia 21 a Secretaria de Infraestrutura de Pernambuco (Seinfra-PE) informou que as obras de recuperação da pista, orçadas em R$ 1,2 milhão, devem começar no dia 24/10 [2], com execução no período da noite e previsão de duração de 60 dias;

Por fim, no dia 24 foram enviadas fotos informando o início do serviço e o prazo de conclusão para o dia 30 de novembro [3].

Em que pese a surpresa da população em relação a esta problemática na pista do aeroporto da ilha, ao consultar o portal da Anac verifica-se registro desde 2018 a respeito de fiscalização sobre pontos da pista do aeroporto que estavam com desagregação e remendos, vide procedimento administrativo nº 00065.051282/2018-96 [4]. Esse procedimento contém e-mail (ID 3406374) da Anac, com data de envio de 23/8/2019 [5], no qual solicita-se, dentre outras providências, "a elaboração de uma avaliação técnica e de segurança operacional das áreas pavimentadas, conforme previsto no item 153.201 (f) do RBAC 153, que tem como possíveis ações, a mitigação do risco para a garantia da segurança operacional; nova manutenção preventiva e/ou corretiva; ou até a adoção de restrição operacional por decisão do Operador de Aeródromo".

Por conseguinte, essa tratativa foi transferida para o procedimento nº 00065.060248/2019-93 [6], no qual consta a Análise de Plano de Ações Corretivas ID nº 4289644 de 28/4/2020 e o relato de que a Seinfra-PE já havia contratado empresa para realização do projeto de restauração da pista. Na oportunidade, a Anac solicitou o cronograma das etapas de execução das obras, estipulando-se que a irregularidade deveria ser corrigida até julho de 2022. Ao longo da tramitação foram apresentados cronogramas com prazos variados, com datas de encerramento que oscilavam entre dezembro de 2022 e junho de 2023 [7]. Com o decurso do tempo, foi instaurado novo procedimento de número 00058.020738/2022-41 [8]. Em Despacho (ID 7723175) de 26/9/22, a Anac considerou que:

"Tendo em vista a situação identificada na área pavimentada do aeródromo de Fernando de Noronha, registrada no relatório de inspeção aeroportuária 037P/GFIC-SIA/2022 (7067901), e face às ações planejadas pelo Operador para restauração do pavimento apresentarem prazos extensos/indefinidos, entende-se que seja necessário adotar ações de monitoramento mais frequentes de coleta de dados sobre as condições dessa infraestrutura e das ações mitigadoras compromissadas.
Assim, serão realizadas ações específicas para coleta de informações, por meio de solicitação de evidências documentais das ações e registros fotográficos que demonstrem o estado atual dos pavimentos." (G.n.)

Em 30/9/22, foi apresentado um novo cronograma (ID 7758657) não disponível para a consulta pública. No mês seguinte, dia 4/10/2022, reuniram-se representantes da Anac, Gol e Azul, e compartilharam informações sobre a localidade, ao tempo que a Anac apresentou o histórico dos trâmites administrativos com o operador do aeródromo, o qual teria informado o dia 2/2/2024 como o novo prazo para conclusão das obras.

Na reunião supracitada, também foi apresentado um relatório técnico com a informação de que, dos 1.845 metros de comprimento e 45 metros de largura da pista, apenas 1% se enquadra como regular, sendo 54% classificado como ruim e 45% como péssimo, de acordo com escala de PCI da Infraero. Nessa ordem, a memória de reunião (ID nº 7771199) explicita que os representantes das empresas foram informados de que estavam em curso ações para restringir o tráfego no aeródromo com a consequente aplicação de medida cautelar de proibição das operações de pouso de aeronaves com motor a reação (turbojato).

Ainda em 4/10, a Seinfra-PE apresentou ofício, contrato de prestação de serviços e Ordem de Serviço assinados na mesma data (ID nº 7771295, 7771296, 7771297). No dia seguinte, foi acostado o Parecer 139/2022 (ID nº 7763577) com a recomendação de proibição de pouso e decolagem na pista de aeronaves com motores a reação (turbojatos). Ato contínuo, foi proferida a Decisão nº 22/2022 (ID nº 7770117), nos seguintes termos:

"No uso das atribuições que me conferem os art. 2º e 25 da Portaria nº 6880/SIA, de 30 de dezembro de 2021, considerando o disposto no parecer nº 139/2022/VABR/GFIC/SIA (SEI nº 7763577) e o que consta no processo Anac SEI nº 00058.020738/2022-41, decido pela aplicação de medida administrativa acautelatória de proibição de operações de pouso de aeronaves com motores à reação (turbojatos) no aeródromo em referência, exceto no caso de operações de emergência médica ou de transporte de valores realizadas mediante prévia coordenação com o Operador do Aeródromo, com vigência a partir de 12 de outubro de 2022.
A medida ora aplicada tem caráter provisório, sem prazo determinado, e será mantida até que o Operador do Aeródromo solicite sua revogação e demonstre o cumprimento das condições definidas no Parecer que fundamentou esta decisão.
Comunique-se ao Operador do Aeródromo e encaminhe-se Portaria que torna pública a presente Decisão para publicação em Diário Oficial da União."

No dia 8/10, a Seinfra-PE anexou ofício e um cronograma que indicava o início das obras em 5/10, com previsão de três meses de duração. Entretanto, como visto na notícia do G1, as obras não teriam começado na referida data.

Nesse contexto, insta salientar que, na nota divulgada em 6/10, a Anac informa a decisão e aborda tópico acerca dos direitos dos passageiros no que se refere à comunicação prévia de no mínimo 72 horas de antecedência e obrigação da empresa aérea de oferecer a opção por reacomodação ou reembolso, o qual deverá ocorrer no prazo de até sete dias [9].

Urge expor que os impactos da decisão da Anac ultrapassam, e muito, a esfera individual dos passageiros diretamente afetados. A economia da ilha, cuja atividade principal é o turismo, está comprometida. Toda a rede composta por pousadas, guias turísticos, taxistas, empresas de turismo, restaurantes, locadoras de veículos e demais comércios foi afetada, de modo que já ocorreram diversas demissões.

Deve-se frisar que o ramo de hospedagem e de restaurante faz investimentos durante o ano visando a alta temporada que se inicia justamente em setembro e tem o ápice no réveillon. Todo esse planejamento foi prejudicado. A logística de órgãos públicos e empresas não sediados na Ilha também foi influenciada, a exemplo de urnas eletrônicas para as eleições, que precisaram ser enviadas de barco [10] e do Mercado Livre, que atendia aos pedidos feitos na ilha realizando um serviço de entrega em poucos dias, mas que agora está estimado em 30 dias.

Merece atenção o fato do transporte de carga, além do de passageiros, ter sido igualmente abalado. Os ilhéus já enfrentam dificuldades com o desabastecimento, principalmente, de medicamentos [11], hortifrutis e carnes congeladas.

Sendo assim, não foram apenas os passageiros da Gol os prejudicados. Os danos aos moradores, que ainda estavam se levantando do baque que foi a pandemia, são imensuráveis. Verifica-se, no momento atual, demandas direcionadas à responsabilização da companhia aérea. Entretanto, além desta não ser responsável pela decisão da Anac, não pode responder pela magnitude dos danos causados à economia local, acima expostos.

Quanto aos passageiros da Gol, deve-se ponderar se a empresa poderia ter implementado alguma medida para prevenir o abandono dos seus clientes no arquipélago e se teria obrigação de conseguir aeronave de modelo que não possui na sua frota. Demonstrando a companhia aérea que tomou todas as providências que estavam ao seu alcance, não pode a transportadora ser responsabilizada por fatos que não dependiam da sua vontade e de seus serviços.

É necessário fazer o seguinte alerta, se predominar o entendimento de que esse risco estava inserido no negócio da companhia aérea e que caberia a ela suportá-lo, duas serão as consequências: encerramento da oferta de voos para essa localidade, restringindo ainda mais a concorrência e aumentando o preço, ou a continuidade das atividades da empresa com o aumento das passagens para repassar aos consumidores a absorção do risco. Em outras palavras, a responsabilização da companhia aérea irá ensejar, de toda forma, o aumento do valor das passagens e, provavelmente, mais dificuldades para os moradores.

O momento exige, portanto, um plano emergencial da administração pública, não apenas quanto à realização da obra, mas com a melhor solução para garantir o abastecimento do distrito estadual, com condições dignas para a população, e a garantia de que o problema seja tratado com a seriedade, transparência e o diálogo que exige, de modo que as competências dos órgãos se somem e não se anulem.

Com relação à responsabilidade civil do Estado quanto à omissão, ficará a cargo da próxima governadora, a ser eleita no segundo turno do próximo dia 30, o esforço argumentativo para explicar a atuação estatal e encontrar soluções para o cenário.


[1] Fernando de Noronha: MP-PE fixa prazo de 24 horas para Gol disponibilizar transporte para clientes afetados por restrição parcial de operações aéreas. Disponível em: https://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/noticias/16955-fernando-de-noronha-mppe-fixa-prazo-de-24-horas-para-gol-disponibilizar-transporte-para-clientes-afetados-por-restricao-parcial-de-operacoes-aereas

[2] MARINHO, Ana Clara. Anunciada há 15 dias por causa de restrição de pousos, recuperação emergencial da pista do aeroporto de Noronha não começou. "O g1 esteve no aeroporto em diferentes horários desde o anúncio das restrições e não encontrou movimentação de obra até a quinta-feira (20), apenas o trabalho rotineiro da empresa que administra o aeroporto para tapar buracos com asfalto frio". Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/blog/viver-noronha/post/2022/10/21/anunciada-ha-15-dias-por-causa-de-restricao-de-pousos-recuperacao-emergencial-da-pista-do-aeroporto-de-noronha-nao-comecou.ghtml

[3] MARINHO, Ana Clara. Governo diz que deve concluir obra emergencial na pista do aeroporto de Noronha até 30 de novembro; pousos seguem restritos. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/blog/viver-noronha/post/2022/10/24/governo-diz-que-deve-concluir-obra-emergencial-na-pista-do-aeroporto-de-noronha-ate-30-de-novembro-pousos-seguem-restritos.ghtml. Acesso em: 24 out. 2022.

[5] Ainda em 2019 foi realizada fiscalização que gerou outro procedimento administrativo, o de número 00065.062825/2019-81 em que consta o auto de infração nº 010196/2019 com o seguinte histórico:

"Foram constatados defeitos disseminados na PPD. Trincas de grande severidade e extensão e buracos de média severidade e média dispersão em toda a PPD, localizados predominantemente nas juntas construtivas originais. Grande número de reparos acumulados, vários com desnivelamento na linha de corte das caixas. Defeitos com grande potencial de emissão de FO e danos às aeronaves.”

No referido procedimento há requerimento de 18/3/2020 solicitando a aplicação da multa com desconto de 50% pela Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos de Pernambuco e, consequentemente, foi aplicada a multa no valor de R$ 7.000.

[7] Na consulta pública do procedimento nº 00065.060248/2019-93 existem várias comunicações com solicitação de informações sobre a previsão de execução dos reparos. Em 08/06/2021 foi apresentado o cronograma ID nº 5808575, com a previsão de execução da obra entre 18/06/2022 e 15/12/2022. Em 30/09/2021 foi apresentado outro cronograma, com data para execução entre 09/7/2022 e 5/1/2023 (ID nº6281285). Em maio de 2022, foi apresentado novo cronograma (ID nº7148047), com a divisão em duas fases nomeadas de “Executar reparos localizados para restauração dos pavimentos – etapa preliminar” (15/07/2022 a 13/10/22) e "Executar as obras de restauração dos pavimentos do Aeroporto Governador Carlos Wilson – SBFN" (28/03/2023 a 26/06/2023). Já o transporte de material, antes previsto para encerrar em 08/07/2022, foi postergado para 27/03/2023.

[9] Por questão de segurança, ANAC determina restrição parcial das operações no Aeroporto de Fernando de Noronha. Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/noticias/2022/por-questao-de-seguranca-anac-determina-restricao-parcial-das-operacoes-no-aeroporto-de-fernando-de-noronha.

[10] OLIVEIRA, Vítor; FONTES, Bruno. Urnas são enviadas para Fernando de Noronha de barco por causa da restrição de pousos na ilha. Disponível em:https://g1.globo.com/pe/pernambuco/eleicoes/2022/noticia/2022/10/19/urnas-eletronicas-sao-preparadas-para-o-segundo-turno-das-eleicoes-em-pernambuco.ghtml. Acesso em: 23 out. 2022.

[11] MARINHO, Ana Clara. Mercados e farmácias enfrentam desabastecimento após restrições de pousos em Fernando de Noronha. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/blog/viver-noronha/post/2022/10/20/mercados-e-farmacias-enfrentam-desabastecimento-apos-restricoes-de-voos-para-fernando-de-noronha.ghtml. Acesso em: 23 out. 2022.

Autores

  • é advogada, sócia da Fraemam e Guerra Advocacia, mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) e recém-aprovada na seleção do doutorado do mesmo programa.

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