Segunda leitura

Direito e Justiça, dos sonhos a um avanço possível

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de outubro de 2022, 8h00

O Direito e o sistema de Justiça no Brasil, por vezes, parecem encaminhar-se a um estado onírico, manejado por pessoas inexperientes ou — o que é pior — por vezes mal-intencionadas. Ação e reação partem de premissas ideais, sem avaliar os limites das possibilidades de realização. O posterior resultado insatisfatório, que alimentou esperanças não alcançadas, acaba frustrando não apenas os atores jurídicos como as partes envolvidas.

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Afastando-se deste modelo nocivo, partindo para a realidade como forma de entender e dar aplicabilidade ao Direito, registro, como primeira observação, que o Judiciário é, além de um Poder de Estado, um serviço a ser prestado à comunidade. E como todo serviço, tem o dever da eficiência e isto implica, inclusive, em aproximar-se da sociedade. A ideia de um Tribunal distante, ao qual o cidadão entrava de cabeça baixa, passou. Os que não entenderem isto terão dificuldades em exercer as suas funções.

Começando pela base, ou seja, pelo curso de Direito, que é o começo de tudo, continuam multiplicando-se os cursos, oferecendo descontos e outros meios de cobrança de fazer inveja às mais populares lojas de departamentos. Alimentando sonhos de jovens que, na sua grande maioria, migrarão para outras atividades por absoluta falta de oportunidades. E sepultando sonhos de seus pais, que não raramente empregam suas economias para suportar as despesas do curso. O fato não é novo e, de concreto, nada se vê para suspender a criação de novos cursos. Neste particular, a OAB deve ser mais ativa, usando toda a sua força política e experiência.

Passando à distribuição de Justiça, a solidariedade, a preocupação com o próximo, devem estar presentes em todas as áreas do Direito e na sua aplicação. Afinal, a pobreza cresce a olhos vistos, sendo desnecessária a citação de estatísticas, pois basta sair à rua para constatar tal fato. Pois bem, o juiz pode e deve ter preocupações sociais. Mas ele tem limites, não deve perder a imparcialidade, pois, sem ela, não mais será juiz, nem levar aquele que considera sistematicamente errado (empresa ou órgão governamental) à insolvência ou ao caos administrativo.

Porém, se o juiz está preso a tais amarras, o Poder Judiciário, por suas instituições, muito pode fazer. Assim é que o Conselho Nacional de Justiça, estimulado por juízes federais criativos e organizados, editou a Resolução 425, de 2021, que institui no âmbito do Poder Judiciário a Política Nacional de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades.i Por exemplo, estimular a adoção de medidas preventivas de litígios (art. 1º, inc. VI) e fornecer documento de identificação civil (art. 1º, inc. X).

Mas a pobreza não está apenas nas ruas. Regiões distantes da Amazônia merecem a mesma atenção que a dada aos grandes centros. E, neste particular, Tribunais de Justiça da Região Norte promoviam, antes da COVID 19, expedições a locais distantes, uma verdadeira Justiça itinerante, praticada em grandes embarcações. Elas iam além do ato de julgar, promovendo também assistência de espécies variadas, como correção e fornecimento de documentos. A Justiça do Amapá foi precursora na área, iniciando tais trabalhos em 1996.ii Mais recentemente, a Justiça Federal e a do Trabalho integraram-se nesses mutirões. É importante que tais medidas retornem.

A medida, de todo oportuna, não significa quebra da imparcialidade, mas sim um posicionamento de necessária atenção especial a um problema que se agrava a cada dia. Neste particular, com justo orgulho, registro que no distante ano de 1977, quando a economia era muito maior e a pobreza muito menor, coordenei evento de tal tipo, na comarca de Caraguatatuba, onde era Promotor de Justiça, com o apoio do Judiciário, da OAB, do município e outros atores.iii

O processo eletrônico é outro ponto que merece atenção. Trata-se de avanço inquestionável e irreversível, tendo a COVID 19 prestado um grande e involuntário favor para a sua evolução. No entanto, exige cuidados éticos. Um exemplo. Na Inglaterra, na década passada, Daniel Blake, com 59 anos de idade, teve um ataque de coração e, apesar de aconselhado por seu médico a não voltar ao trabalho, não conseguiu subsídio para o seu emprego nem qualquer apoio do órgão de saúde. Procurou recorrer da decisão e viu-se diante de um emaranhado de barreiras nas plataformas digitais e também para encontrar pessoas a quem pudesse expor o seu problema.iv

Tal fato foi transportado para o cinema em 2016 e serve como referência para alertar sobre a necessidade de ser lembrado que muitos não têm acesso digital. E não estou me referindo a não ter um telefone celular, mas sim a não conseguir acessar as plataformas que asseguram direitos. Idosos, pessoas com deficiências físicas ou mentais, analfabetos, populações tradicionais e tantos outros. Estas pessoas precisam ter a sua opção, ainda que isto se torne um acréscimo econômico para o órgão público. Por exemplo, nos Juizados Especiais, na portaria de Fóruns e Tribunais, é imprescindível que haja pessoa capacitada a prestar tal tipo de auxílio.

Ainda no âmbito judicial, seria demais os tribunais enviarem técnicos a centros comunitários carentes para capacitar os líderes a manejar os programas de acesso à Justiça? Certamente não. Na verdade, seria uma ótima forma de divulgar e facilitar a cidadania.

E a corrupção, que há um bom tempo vem se desenvolvendo com voracidade, não poupando nem serviços públicos de elevado cunho social, como o combate à COVID 19? Estamos preparados para esse combate? Evidentemente, nem uma criança de 11 anos acredita que ela será eficazmente combatida apenas com programas de educação. Estes são importantes, sem dúvida. Mas a corrupção é crime de pessoas mais requintadas, que detestam violência e que, de regra, são sedutoras. Não seria o caso de ser criado um Tribunal Anticorrupção, com regras próprias, seleção de juízes e servidores feita com especiais cautelas (v.g., metade dos examinadores reconhecidos expertos estrangeiros) e estrutura condizente?

E as conciliações prévias às ações judiciais, não poderiam ser on line, conduzidas por um simpático avatar? Deixar aos juízes e mediadores apenas os casos mais complexos e, com isto, reduzir o tempo de duração dos processos?

E as relações dos tribunais com a comunidade? Existem algumas iniciativas, como as cartilhas explicando, de forma simples, o que é e como funciona o sistema de Justiça. Mas isto não é novidade nenhuma, existe desde os anos 1990.

Muitas coisas podem ser feitas, algumas a custo zero. Por exemplo, um programa de visitas guiadas para estudantes de Direito ao Fórum, mostrando como são realizadas as audiências presenciais, atos processuais à distância, sala da memória e outros tópicos de interesse. Há alunos que se formam sem nunca ter entrado em um órgão do Judiciário.

E a nova concepção da arquitetura judiciária? Ainda se justifica a edificação nos modelos tradicionais? O processo on line resultou na economia de espaços. A circulação de pessoas nos Fóruns diminuiu, o trabalho em casa, ainda que parcial, é uma realidade. Que tal criar espaço para crianças se distraírem enquanto suas mães participam de audiências?

Centros de inteligência já existem e produzem oportunas iniciativas. Mas que tal avaliar os impactos da duração do processo na vida das pessoas? Em que medida a espera da família de uma vítima assassinada impacta a vida de todos, material e psicologicamente? Impactos econômicos, sobre a liberdade de presos provisórios, sobre o que representam de custos e outros tantos, podem justificar políticas públicas de aperfeiçoamento do sistema.

Uma videoteca destinada aos que aguardam um julgamento, com vídeos sobre a história do Poder Judiciário, do Tribunal, dos casos mais significativos e outros de interesse, não seria de custo elevado e aproximaria a Justiça dos que dela dependem.

Nas salas de audiência em primeiro grau e nas de julgamento nos tribunais, não está na hora de serem colocadas telas para a exposição de vídeos pelas partes? Um filme mostrando o local da ocorrência pode ser mais útil para a compreensão do caso em discussão do que várias testemunhas. Algo simples, de fácil instalação e baixo custo.

Enfim, muito há a fazer, tudo a depender da vontade e do interesse de cada um, especialmente dos que administram a Justiça.


i CNJ, Resolução 425, de 2021. Disponível em: Resolução n. 425, de 8 de outubro [de] 2021 (tst.jus.br). Acesso em 21 out. 2022.

ii CNJ. Disponível em: Marco na história amapaense, Justiça Itinerante Fluvial faz 20 anos – Portal CNJ. Acesso em 22 out. 2022.

iii Semana do Registro Civil em Caraguatatuba. Revista Justitia, v. 40, jan.-março de 1978, fls. 230 a 240.

iv Filme “Eu, Daniel Blake”. Diretor Ken Loach, ator Dave Johns. Disponível em: Eu, Daniel Blake – Filme 2016 – Adoro Cinema. Acesso em 22 out. 2022.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUC-PR, desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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