Opinião

Digital Markets Act e o controle de estruturas no Brasil

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23 de outubro de 2022, 6h32

A União Europeia publicou em seu diário oficial, no último dia 12, a versão oficial do Digital Markets Act ("DMA") (Regulação nº 2022/1925). Trata-se de documento que reconhece o protagonismo de plataformas digitais no ambiente econômico europeu e a ascensão de um número reduzido de gatekeepers (ou "controladores de acesso", na tradução oficial do DMA em português) capazes de distorcerem o ambiente competitivo do mercado. Nesse cenário, o objetivo expresso do DMA é garantir a maior contestabilidade de mercados digitais em geral, a partir do estabelecimento de regras mais claras e específicas para o setor. O DMA entra em vigor dia 1º de novembro de 2022, mas a totalidade de suas disposições somente estará em vigor a partir de maio de 2023.

O DMA é produto de intenso movimento acadêmico e político para repensar os mecanismos de proteção da concorrência na economia digital baseada em plataformas. A nova diretriz europeia é a primeira grande legislação com amplo escopo de atuação, buscando não somente o fomento de um ambiente mais competitivo, mas também promover a proteção e o uso adequado de dados coletados por plataformas. Mais importante ainda, o DMA dispõe sobre mecanismos de atuação ex ante, favorecendo a ação preventiva da autoridade de defesa da concorrência.

O DMA inova ao trazer disposições que são aplicáveis somente a um grupo específico de agentes econômicos: os gatekeepers. É o que Diogo R. Coutinho e Beatriz Kira denominaram como um antitruste assimétrico. A partir de pressupostos teóricos, o DMA positivou a definição de gatekeepers no artigo 3º. Para que uma plataforma seja considerada como tal, ela deve: a) ter faturamento superior a 7,5 bilhões de euros dentro da União Europeia nos últimos três anos ou ter seu valor médio de mercado estipulado em 75 bilhões de dólares, além de fornecer seus serviços em, ao menos, três Estados-membros; b) possuir, ao menos, 45 milhões de usuários-finais ativos ou dez mil usuários de negócios dentro da União Europeia. Além disso, o agente econômico que preenche os requisitos do item b) nos últimos três anos é também considerado como detentor de posição "enraizada e duradoura".

A mesma ideia de antitruste assimétrico também é cogitada do outro lado do Atlântico. O Congresso dos Estados Unidos atualmente possui pelo menos três propostas legislativas que impõem padrões de comportamento mais rígidos para gatekeepers. Por exemplo, o American Innovation and Competition Online Act utiliza o termo "covered platform" para identificar quais plataformas estariam sujeitas às disposições da nova lei. A proposição americana difere no modo como uma plataforma é conceituada  covered platform ao invés de gatekeeper , mas o objetivo é o mesmo do DMA: criar uma categoria separada de agentes econômicos sujeitos a obrigações mais rígidas e predeterminadas, considerando a sua posição dominante nos mercados.

Talvez o Brasil possa se inspirar com a publicação do DMA e passar a olhar para sua própria lei de concorrência e avaliar possíveis mudanças. Passados dez anos da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011, a prática de defesa da concorrência está sedimentada no Brasil e internalizada pelos agentes econômicos. Todavia, isso não significa que não devamos pensar em mudanças para melhor abordar os desafios da economia de plataformas. Algumas iniciativas do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) merecem reconhecimento, como o caderno de estudos em mercados digitais e a detalhada revisão de relatórios especializados. Tais iniciativas possuem muito mais o mérito de promoverem o necessário mapeamento do debate do que efetivamente introduzirem mudanças significativas no modo como a autoridade da concorrência lida com plataformas digitais.

Não se defende aqui um mero transplante jurídico de disposições estrangeiras para o Brasil. Pelo contrário: se reconhece que o Brasil se insere em seu próprio regime de defesa da concorrência, a partir das balizas postas pela ordem econômica constitucional. Mas o Brasil também se insere em um contexto de mercado global e o debate sobre reformas legislativas deve ser pautado. Partindo da concepção de gatekeepers posta pelo DMA, podemos cogitar possíveis ajustes na legislação concorrencial brasileira.

Um importante ajuste seria rever os critérios de notificação de atos de concentração. A atual redação da Lei 12.529/2011 escolheu o faturamento bruto dos grupos envolvidos no ato de concentração como o filtro exclusivo para determinar se uma operação é de notificação obrigatória ou não. Esse critério único parece não mais se adequar à realidade da economia digital, onde plataformas com expressiva base de usuários não alcançam os critérios de faturamento mínimo para análise do Cade. O debate sobre novos critérios para submissão de atos de concentração poderia ser pautado não somente por uma atualização dos valores de faturamento, mas também pela inclusão de critérios alternativos, para além do faturamento. Nesse sentido, a criação de categoriais especiais, tais como os gatekeepers, seria interessante para assegurar que o Cade analise atos de concentração que possuam relevância competitiva, mas não são de notificação obrigatória.

A criação desta nova categoria, estabelecendo uma assimetria antitruste também no Brasil, de acordo com a realidade econômica pátria, teria o condão de diminuir o vácuo de atuação do Cade em atos de concentração em que a empresa-alvo possui faturamento abaixo dos 75 milhões de reais. Operações envolvendo grande base de usuários e com claros efeitos no Brasil, como Facebook/Whatsapp, Facebook/Instagram e Google/Waze, não foram objeto de análise pelo Cade, exatamente pelo não atingimento do faturamento mínimo para provocar a notificação obrigatória do ato de concentração.

Os critérios de notificação obrigatória de atos de concentração ao Cade estão defasados. Enquanto a autoridade gasta parte importante dos seus recursos lidando com atos de concentração sumários com reduzido potencial lesivo à concorrência, operações relevantes não são capturadas pelo radar do Conselho. É preciso discutir mais seriamente potenciais ajustes nos filtros de análise. A solução encontrada pelo DMA, ao estabelecer o critério de gatekeeper e impor assimetria antitruste entre agentes econômicos, pode servir como farol para necessárias discussões futuras no Brasil.

Autores

  • é LL.M. pela Yale Law School, doutorando em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na pós-graduação em Direito do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/SP) e Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

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