Opinião

Lei Complementar 187/2021: remissão fiscal para quem?

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23 de outubro de 2022, 15h18

No passado recente, o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) foi regulamentado pelo artigo 55, da Lei 8.212/1991, e, posteriormente, pela Lei Ordinária nº 12.101/2009. No dia 16 de dezembro de 2021, a referida certificação passou a ser regulamentada pela Lei Complementar (LC) nº 187/2021, editada pelo Congresso Nacional como a norma que "dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes e regula os procedimentos referentes à imunidade de contribuições à seguridade social de que trata o § 7º do art. 195 da Constituição Federal", revogando integralmente a Lei 12.101/2009.

Ao editar-se Lei Complementar regulamentando a imunidade do §7º, do artigo 195, da CF/88, aniquilada está qualquer dúvida acerca do correto tratamento acerca do referido beneplácito fiscal, isto é, trata-se de uma limitação ao poder de tributar, sujeito à reserva de Lei Complementar, nos termos do artigo 146, II, CF/88. Nesse sentido, o artigo 1º da LCP nº 187/2021:

"Art. 1º — Esta Lei Complementar regula, com fundamento no inciso II do caput do art. 146 e no § 7º do art. 195 da Constituição Federal, as condições para limitação ao poder de tributar da União em relação às entidades beneficentes, no tocante às contribuições para a seguridade social."

Ao assim dispor, a nova LCP traz importantes constatações e contornos legais acerca do período anterior à sua promulgação, posto que, como visto, tudo era tratado com base na Lei Ordinária. Os artigos 2º e 3º definem que é considerada "entidade beneficente" apta à imunidade tributária a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que presta serviço nas áreas de assistência social, de saúde e de educação, exigindo uma condicionante indispensável: desde que devidamente certificadas nos moldes da referida Lei Complementar, atendendo aos requisitos estipulados nos incisos relacionados.

Fica expressamente claro que o Cebas, antes configurado no artigo 55 da Lei 8.212/1991 e na Lei 12.101/2009 como instrumento formal fiscalizatório de natureza declaratória, constitui-se, agora, em condição formal, obrigatória e imprescindível para a fruição da imunidade tributária das contribuições à seguridade social, do §7º, artigo 195, da CF/88. Portanto, resta evidente a prescindibilidade do Cebas no período anterior à LC 187/2021.

Contudo, é primordial observar que a LC 187/2021 exsurge logo após o Supremo Tribunal Federal encerrar o julgamento de ações de caráter vinculante que discutiam a norma de regência das imunidades tributárias, nas quais a corte apenas veio a ratificar o seu entendimento histórico de que somente a lei complementar possui legitimidade constitucional para instituir requisitos para fruição da imunidade tributária.

Neste cenário, a referida LCP trouxe hipótese de remissão fiscal sobre aqueles créditos tributários que tenham sido constituídos sob o descumprimento de requisitos previstos na Lei Ordinária. Veja-se o teor do artigo 41:

"Art. 41. A partir da entrada em vigor desta Lei Complementar, ficam extintos os créditos decorrentes de contribuições sociais lançados contra instituições sem fins lucrativos que atuam nas áreas de saúde, de educação ou de assistência social, expressamente motivados por decisões derivadas de processos administrativos ou judiciais com base em dispositivos da legislação ordinária declarados inconstitucionais, em razão dos efeitos da inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.028 e 4.480 e correlatas."

Assim, serão considerados extintos os créditos tributários de contribuições sociais lançados em desfavor de entidades sem fins lucrativos que atuam nas áreas da assistência social, educação ou saúde, que foram alvo de lançamentos fiscais em virtude do não atendimento aos requisitos contidos em Lei Ordinária, seja pelo artigo 55, da Lei 8.212/1991 (ADI 2.028 e RE-RG 566.622/RS), seja via Lei 12.101/2009 (ADI 4.480).

Em primeira perspectiva, poder-se-ia reconhecer uma vitória das entidades que foram alvo de exigências fiscais incompatíveis com o texto constitucional, à medida que terão anulados créditos tributários indevidamente constituídos. Mas a norma revela uma outra face.

É importante observar que as ações vinculantes enumeradas no artigo 41 da LCP apenas confirmaram um entendimento há muito sedimentado no ordenamento jurídico, não só pela doutrina especializada, mas especialmente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que os requisitos veiculados na lei ordinária jamais poderiam ser exigidos como condição de acesso à imunidade hospedada no §7º, do artigo 195, da CF/88.

Lembremos do julgamento do Mandado de Injunção nº 232, julgado em 2/8/1991 (voto de mérito em 6/2/1991 e confirmado em assentada final em 2/8/1991, sem alterações), quando a Suprema Corte declarou o estado de mora do Congresso Nacional em relação ao artigo 195, §7º, da CF/88, ordenando providências legislativas para o cumprimento da obrigação de legislar. Eis a ementa do julgado, in verbis

"MANDADO DE INJUNÇÃO.

– Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7º do artigo 195 da Constituição Federal.
– Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional.

Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, par. 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida." (MI 232, relator MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 2/8/1991, DJ 27-03-1992 PP-03800 EMENT VOL-01655-01 PP-00018 RTJ VOL- 00137-03 PP-00965, transitada em julgado em 8/4/1992)

Naquela assentada já se consignava tratar o artigo 195, §7º, da Carta Magna, de verdadeira imunidade — e não de "isenção" —, como escrito na literalidade da redação do dispositivo. Aliás, especialmente Sua Excelência o ministro Marco Aurélio, já compondo a Excelsa Corte na ocasião, pontuava ao julgar o MI 232, ipsis litteris:

"Com isso, concluo pelo acolhimento do pedido e estabeleço os requisitos que poderão vir a ser substituídos por uma outra legislação específica, tomando de empréstimo o que se contém no CTN quanto à imunidade relativa aos tributos e que beneficia as entidades mencionadas no § 7º do artigo 195 da Carta."

Curiosamente, mesmo antes de finalizado o julgamento do MI 232 (em 2/8/1991), sobreveio a Lei Ordinária 8.212, de 24 de julho de 1991, publicada em 25/7/1991, que entrou em vigor na data de sua publicação e trouxe a já conhecida disciplina normativa no artigo 55, estipulando requisitos.

Vale frisar, por ocasião do julgamento do MI 232, em 2/8/1991, o artigo 55 da Lei nº 8.212/1991, já estava em vigor e, ainda assim, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre a omissão legislativa, formalizando, na ocasião, o dispositivo: "declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, par. 7º, da Constituição".

Por sua vez, no Mandado de Injunção 605 (julgado em 30/8/2001, DJ 28.09.2001), impetrado por entidade sem fins lucrativos, que se dizia beneficente, Sua Excelência o ministro Ilmar Galvão entendeu ser a impetrante carecedora da ação, pois, a pretexto de obter o suprimento da omissão do legislador, como ocorreu no MI 232, na verdade, pretendia a correção do vício de inconstitucionalidade, vez que a matéria do artigo 195, §7º, da CF/88, ao tempo da nova impetração e pelo que alegava o próprio impetrante, estava sendo reconhecida pelo poder público como regulamentada no artigo 55 da Lei 8.212/1991, com as alterações da Lei 9.732/1998. Eis a ementa do julgado:

"EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. IMUNIDADE DAS CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. ART. 195, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI Nº 9.732/98.

Não cabe mandado de injunção para tornar efetivo o exercício da imunidade prevista no art. 195, § 7.º, da Carta Magna, com alegação de falta de norma regulamentadora do dispositivo, decorrente de suposta inconstitucionalidade formal da legislação ordinária que disciplinou a matéria. Impetrante carecedora da ação." (MI 605, relator ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 30/8/2001, DJ 28/9/2001 PP-00038 EMENT VOL-02045-01 PP-00051)

Após longas controvérsias e decisões sem efeitos vinculantes, o Supremo Tribunal Federal recebeu em seu protocolo as ADIs 2.028 e correlatas, bem como o RE-RG 566.622/RS, cujo resultado é consabido e marcado na Tese fixada no Tema 32 "A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas" (18/12/2019).

Esse histórico de decisões revela que a aplicação do artigo 41 da LCP supra referido é mais que uma remissão fiscal, é uma racionalização, pelo Poder Legislativo, do teor da histórica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria.

Nesta toada, constata-se uma engenhosa e, sobretudo, oportuna medida lançada pelo Congresso Nacional para sanar um massivo contencioso fiscal represado há décadas — diga-se, criado pela própria administração tributária em desrespeito a uma regra explicitamente posta pelo constituinte no artigo 146, II, da CF/88 — e livrar os cofres públicos de vultosas condenações a título de honorários de sucumbência que seriam devidos aos agentes envolvidos como natural desdobramento da aplicação pontual do entendimento histórico da Suprema Corte aqui comentado.

Isto porque as disposições do artigo 19, § 1º, I, da Lei 10.522/2002 preveem o afastamento da condenação em honorários advocatícios em desfavor da Fazenda Pública, com destaque para os incisos V e VI, do caput, nas hipóteses de declarações de inconstitucionalidade e temas decididos em caráter vinculante. Nesta linha, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que não são cabíveis honorários advocatícios quando a execução fiscal é extinta em razão da superveniência de lei que ensejou a remissão do crédito tributário (AgRg nos EREsp 1.139.726/SC, rel. ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 1ª SEÇÃO, julgado em 23/11/2011, DJe 30/11/2011).

Diante do exposto, entendemos que o destrinchar do Tema 32 foi a tempestade perfeita aos olhos do Congresso Nacional, concebendo um conveniente mote para salvaguardar os combalidos cofres da União. Fica a reflexão sobre o real beneficiário dos efeitos do artigo 41, da LC 187/2021.

A despeito destas constatações, no final do dia, é salutar o fato de que estão contempladas no escopo do dispositivo em spec aquelas entidades beneficentes de assistência social que, lamentavelmente, por muitos anos, foram alvejadas por cobranças tributárias ilegítimas e vitimadas por todos os caros desdobramentos inerentes às exações fiscais.

Ao nosso ver, o referido dispositivo alcança todos os lançamentos fiscais que estejam fundados no mero desatendimento aos dispositivos de lei ordinária, a exemplo da sumária exigência de porte do Cebas, dentre outros requisitos. A eventual descaracterização da imunidade deve — ou deveria ser feita — sempre sob a luz da Lei Complementar, hodiernamente no artigo 14 do Código Tributário Nacional (CTN). Prova disto é o resultado do julgamento do RE-RG 566.622/RS, uma típica Ação Anulatória de Débito Fiscal, que, mesmo diante da inexistência do Cebas (motivo da autuação fiscal combalida), motivou a Suprema Corte a dar provimento no Recurso Extraordinário pelo provimento do pedido anulatório por restar comprovado o cumprimento do artigo 14, do CTN.

Entende-se que o dispositivo possui ampla aplicabilidade, abrangendo créditos inscritos ou não na Dívida Ativa da União e até mesmo inseridos em parcelamentos fiscais, finalizados ou não, pois eivados de completa nulidade.

Por fim, essa conjuntura de eventos nos faz lembrar, com grande pesar, das costumeiras advertências feitas pelo ministro Marco Aurélio de Mello a respeito dos efeitos perniciosos advindos da edição de leis flagrantemente inconstitucionais em face de uma esperançosa regulação incumbida ao Poder Judiciário. Assim afirmou Sua Excelência:

"O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas. (…) Sem a intermediação dos intérpretes, em especial, das cortes constitucionais, o Direito não consegue alcançar os fins próprios de preservar a liberdade, a justiça e a segurança. Atentem para o papel dos juristas, o efeito das decisões proferidas pelas cortes no que hão de efetivar a segurança jurídica". (disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/223331/o-direito-em-tempos-de-incertezas–por-marco-aurelio-mello)

Afinal, o zelo pela segurança jurídica é um dever de todos os intérpretes do Direito, independentemente da alocação nos poderes estatais. Não podemos insistir em relegar somente às Cortes Constitucionais o papel de destravar bloqueios institucionais e de solucionar desacordos morais e políticos presentes em outros canais da esfera pública.

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