Opinião

Cessão de créditos nos processos recuperacionais: oportunidade e solução

Autor

  • Silvia Bessa Ribeiro

    é advogada do Banco do Brasil S/A em São Paulo-SP com atuação no contencioso na área de Recuperação Judicial e Falências e assessoria à área interna de Recuperação de Crédito especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Recuperação de Empresa e Falência pela Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp-SP) e mestranda em Direito dos Negócios pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

22 de outubro de 2022, 13h21

A Lei 14.112/2020, que alterou a Lei de Recuperação Judicial e Falências, Lei nº 11.101/2005, incorporou ao texto legal entendimentos consolidados dos tribunais sobre a matéria e soluções negociais alternativas buscando dar maior celeridade e eficiência aos processos de recuperação judicial e falência. Dentre as modificações, destaca-se a alteração na disciplina da cessão de crédito dentro do microssistema da recuperação judicial e extrajudicial. Em sua versão original a lei admitia a cessão de crédito não exigindo qualquer anuência da recuperanda, contudo, dispunha que "os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários" (artigo 83, §4º). A novel legislação revogou o citado §4º incluiu o §5º para consignar que "os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação". Além disso, a Lei inseriu o §7º no artigo 39 que dispõe: "A cessão ou a promessa de cessão do crédito habilitado deverá ser imediatamente comunicada ao juízo da recuperação judicial". Tais previsões movimentam de forma positiva os processos recuperacionais permitindo que a cessão de crédito seja utilizada como solução negocial para aprovação do plano de recuperação, além de irrigar o mercado de crédito com novas oportunidades de negócios.

Ao manter a natureza e a classificação do crédito original em caso de cessão, a lei torna os processos recuperacionais um campo de oportunidade e interesse para possíveis investidores do mercado de créditos não performados (NPLs Non-Performing Loan), por meio de Fundos de Investimento em direitos creditórios, "FIDCs". Além disso, faz a ocasião para os credores de modo geral, onerados pelo custo processual, e que não desejam aguardar o recebimento pelas condições do plano, muitas vezes com extensa carência e altíssimo deságio. A ocasião surge inclusive para os credores financeiros. Para esses credores, players invariavelmente presentes nas recuperações judiciais, a negociação é ainda mais longa e dispendiosa do que para outros credores, pois envolve necessariamente comitês de crédito, alçadas jurídicas, amarras regulatórias e de governança, entraves que dificultam tratativas negociais mais amplas com a recuperanda.

Ademais, como os bancos estão sujeitos às normas regulatórias de contingenciamento de capital, fixadas pelo risco de sua carteira, a cessão de parte desses créditos inadimplidos implica em menor comprometimento financeiro e mais recursos para investimento, o que pode se tornar mais atraente e eficiente do que a sua manutenção em carteira. Nesse contexto, a cessão dos créditos mostra-se uma via legal alternativa de solução negocial de aprovação do plano de negócios, a partir do voto do cessionário, quando não há deliberação favorável à sua aprovação pelas casas bancárias.

Do lado do investidor, o mercado de créditos não performados é promissor. Citando Euler Barbosa [1], sócio e fundador da ITN Capital, em 2020 o volume de créditos inadimplidos atingiu a marca de 84 bilhões de reais, sendo que 20% desse montante é crédito corporativo, ou seja, há um valioso nicho de mercado a ser explorado. Além disso, os investidores profissionais contam com capital, expertise e capacidade operacional para recuperação do crédito de forma mais eficiente, e têm menos amarras para negociar com a empresa em recuperação judicial. Portanto, comprar crédito nesse cenário pode significar alta lucratividade para os investidores com apetite a risco.

Pelo lado da recuperanda, em primeiro lugar está a possibilidade de maior amplitude da negociação do plano com os investidores do mercado secundário, mais dispostos a riscos, do que com os credores originais, e com isso obter o almejado quórum de aprovação do plano e concessão da recuperação judicial ou extrajudicial. Na hipótese de cessão de um crédito financeiro, há ainda a vantagem da quitação do crédito perante o banco, o que pode implicar inclusive na liberação dos coobrigados fiadores ou avalistas, normalmente os sócios da devedora, cuja dívida perante o banco, em regra, não é abrangida pela novação recuperacional.

Não é demais ressaltar, contudo, que a cessão de crédito, permitida e ampliada nos processos recuperacionais, não pode servir como um embuste para realização de negócio simulado, com objetivo de manipulação do quórum de aprovação dos planos. E para isso há que se dar a devida importância à imperativa previsão de sua imediata comunicação ao Juízo, na forma do artigo 39, §7º, da LRF. Nesse contexto, cabe ao juiz, ao administrador judicial, ao Ministério Público, bem como à comunidade de credores, atentar para aquelas negociações pactuadas fora do propósito negocial de realização do direito de crédito dos respectivos cessionários, com único objetivo de manipular o quórum de votação.

Frise-se que é imprescindível que o Poder Judiciário apure e extirpe com precisão e rigor o negócio simulado, com vistas a preservar o instituto da cessão de crédito dentro do microssistema recuperacional, sob pena de cair em irreversível descrédito e deslustrar todos os benefícios decorrentes do seu uso de boa-fé.


[1] Painel "O mercado secundário de dívidas  Oportunidade e Desafios", apresentado no XIII Congresso TMA Brasil de Reestruturação e Recuperação de Empresas, em 15/10/2021. Disponível em: https://tmaconecta.com.br/transmissao/live/32

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  • é advogada do Banco do Brasil S/A em São Paulo-SP com atuação no contencioso na área de Recuperação Judicial e Falências e assessoria à área interna de Recuperação de Crédito, especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Recuperação de Empresa e Falência pela Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp-SP) e mestranda em Direito dos Negócios pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

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