Opinião

Aplicação do CDC à resolução de contratos com alienação fiduciária

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21 de outubro de 2022, 17h03

O Superior Tribunal de Justiça, por meio de sistemática denominada de julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, definirá tese sobre a prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor para os contratos de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia (Recurso Especial nº 1891498/SP  Tema 1.095). O entendimento do STJ será de aplicação imediata e observância obrigatória pelos demais tribunais aos casos que versem sobre a controvérsia. A depender da decisão, o mercado de financiamento imobiliário poderá ter seu futuro totalmente comprometido.

Na oportunidade, o STJ definirá como será a forma de devolução dos valores quitados pelos adquirentes dos imóveis em caso de resolução dos negócios, se obedecerá ao disposto no artigo 53, do CDC ("Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado") ou as disposições contidas nos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

O julgamento reveste-se de grande relevância tanto para o mercado imobiliário nacional, quanto para a economia como um todo. Isso porque a decisão tem o potencial de impactar de maneira significativa a atividade, funcionamento e planejamento financeiro das incorporadoras e loteadoras que realizam esse tipo de negociação. 

Em razão da complexidade da vida moderna, as negociações de imóveis não se satisfaziam mais com os instrumentos de garantia tradicionais, como a hipoteca, por exemplo, sendo necessário introduzir novas ferramentas que trouxessem maior segurança jurídica. Foi nesse contexto, então, que foi inserida a alienação fiduciária em garantia.

O instituto ingressou no ordenamento brasileiro através da Lei nº 4.728/1965, incorporada ao texto da Lei de Mercado de Capitais. Posteriormente, a garantia foi estendida para a compra e venda de bens imóveis, sendo regulamentada pela Lei nº 9.514/97, que tratou do Sistema Financeiro Imobiliário.

A criação da Lei n° 9.514/97 constituiu um verdadeiro e evidente avanço para as transações de unidades imobiliárias, visto que, além de facilitar a aquisição de moradia, reduzindo o déficit habitacional e movimentando a economia, ainda trouxe maior eficiência, segurança e efetividade na recuperação do crédito pelas incorporadoras e loteadoras, como na consecução de suas atividades.

A adoção de tese para autorizar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à resolução de escrituras de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia provocaria enorme insegurança ao setor imobiliário, pois tornaria o instituto inútil e ineficaz.

Cumpre destacar que há uma certa confusão na aplicação do CDC na execução da garantia relacionada com a alienação fiduciária, pois se trata da cobrança de uma dívida decorrente da concessão do crédito. Não há "perda total das prestações pagas", mas sim a cobrança de valores decorrentes do crédito concedido e, havendo saldo remanescente após o pagamento da dívida e das despesas relacionadas com a execução da garantia, o saldo remanescente será entregue ao devedor. Em contrapartida, ele será exonerado da dívida e não está obrigado a fazer qualquer pagamento relacionado ao período no qual ocupou ou residiu no imóvel.

O regramento da alienação fiduciária é, portanto, claro e de fácil compreensão pelo mercado e pelos próprios consumidores. Determinar a devolução integral de valores pagos ou aplicar a "Lei do Distrato" é exonerar o devedor de qualquer consequência do inadimplemento, além de agraciá-lo com a moradia de forma gratuita durante todo o tempo que ele ocupou o imóvel.

Por outro lado, o enfraquecimento da garantia fiduciária resultaria, em verdade, no completo colapso das incorporadoras. Será relativamente fácil e barato, haja vista os inúmeros pedidos de gratuidade de justiça, solicitar o desfazimento de negócio jurídico perfeito e acabado, exigindo a devolução de valores pagos sem qualquer contrapartida, Eventuais decisões condenatórias acabariam por inviabilizar o funcionamento das empresas que, quando mais necessitavam dos aportes para novos empreendimentos, seriam compelidas a devolver em parcela única quase que a integralidade dos valores recebidos, os quais ainda seriam acrescidos de correção monetária, juros de mora, custas processuais e honorários advocatícios.

Ou seja, o montante a ser efetivamente pago superaria, e muito (!), o realmente pago pelos adquirentes, o que com certeza seria determinante para uma crise econômica generalizada das incorporadoras, com elevado risco de decretação em massa de falências e recuperações judiciais. Não há quem consiga sobreviver.

Além disso, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor implicaria em uma indevida equiparação entre um negócio jurídico definitivo, realizado por meio de escritura pública com alienação fiduciária devidamente levada a registro, com um simples contrato preliminar de promessa de compra e venda. 

As consequências práticas e jurídicas das decisões judiciais não podem ser ignoradas pelos julgadores, que devem levá-las em consideração no momento de deliberação. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor para regular a forma de devolução dos valores pagos pelos adquirentes nos casos de resolução das escrituras públicas de compra e venda de imóveis com alienação fiduciária em garantia representa considerável insegurança jurídica ao mercado imobiliário, impactando não somente nas atividades exercidas pelas incorporadoras, como também na própria economia, além de igualmente caracterizar inequívoco retrocesso jurisprudencial, trazendo inegável instabilidade e mais insegurança jurídica. 

O julgamento do RE nº 1891498/SP foi iniciado em 14/9/2022, mas não foi concluído em razão de pedido de vista do ministro Paulo de Tarso Sanseverino. A continuação do julgamento ainda não tem data prevista.

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