Opinião

Quebra de sigilo de comunicação pessoal na Justiça do Trabalho

Autores

  • é juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região especialista em Ciências do Trabalho pela Faculdade Lions e autor de diversos artigos jurídicos e coautor do livro O Direito Autônomo à Proteção dos Dados Pessoais: uma Análise Constitucional-trabalhista.

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  • é juíza do Trabalho substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região especialista em inovações em Direito Civil e seus instrumentos de tutela pela Universidade Anhanguera autora de diversos artigos jurídicos e coautora do livro O Direito Autônomo à Proteção dos Dados Pessoais: uma Análise Constitucional-trabalhista e Sentença Trabalhista Descortinando a Teoria e Facilitando a Prática.

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20 de outubro de 2022, 18h18

Em uma de suas maiores obras, o livro do Desassossego, o poeta lusitano Fernando Pessoa enarrou em uma passagem: "porque eu não sou nada, eu posso imaginar-me a ser qualquer coisa" [1]. Essa frase permite ao leitor uma reflexão quanto ao conteúdo do direito à privacidade que abrange o respeito à proteção da vida privada, ao direito de estar só (the right to be let alone) [2], ao direito de não ser incomodado por terceiros, de regozijar-se desfrutando de paz e equilíbrio que a insulação voluntária promove, de imaginar-se fazendo o que lhe regala, ainda que seja irreal.

Entoa então artigo 5º, X, da CF que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Da leitura do texto constitucional pode se entrever que o constituinte optou por conferir proteção aos direitos elencados no dispositivo constitucional possibilitando a indenização por dano material e reparação por dano moral quando violados os direitos de (1) intimidade, (2) vida privada, (3) honra e (4) imagem das pessoas, todos esses como bens jurídicos autônomos.

Indubitavelmente a tutela de tais bens trazidos no inciso X do artigo 5º da CF visa a resguardar a integridade moral ou psíquica do indivíduo enquanto detentor de dignidade humana, de forma que a defesa da privacidade pretende a proteção do ser humano contra as intromissões a sua vida privada (familiar ou doméstica), a sua integridade mental, a sua honra (seja subjetiva ou objetiva), ao seu nome, a sua identidade, a sua imagem, aos seus dados fiscais, bancários, às suas correspondências (nos termos do mandamento constante no inciso XII do artigo 5º que complementa o direito à privacidade) e a seus dados pessoais (conforme mandamento constante no inciso LXXIX do artigo 5º que também complementa o direito à privacidade).

A vessada do direito à privacidade, ainda, não pode deixar de ser analisada sob enfoque do que se deseja excluir do conhecimento alheio, mormente em uma sociedade de espetáculo [3] como a hodierna, em que muitas vezes o próprio titular do direito é aquele que deliberadamente expõe sua privacidade a terceiros.

Mister o destaque que o direito à privacidade, como todo direito humano positivado (direito fundamental), não se reveste de absolutez e, por isso pode sofrer limitações/restrições, malgrado o elevado grau de proteção existente no ordenamento legal, tanto que há previsão expressa de reparação pertinente quando de sua violação.

Assim, para que se possa falar em violação do direito à vida privada deve-se, casuisticamente, observar se não se está perante uma restrição legal/constitucional (flagrante delito ou desastre, determinação judicial, etc.) ou ainda não ser o caso de colisão com outro direito fundamental de equivalente relevância jurídica (eficácia horizontal de direitos fundamentais).

Quanto à temática, recentemente, a Subseção Especializada em Dissídios Individuais (SDI-II) do Tribunal Superior do Trabalho limitou a quebra de sigilo do e-mail pessoal de um ex-empregado de uma empresa paulista aos chamados metadados das mensagens, como registros de data, horário, contas e endereços de IP, porquanto a corte assentou que "não é válida a ordem que autoriza o acesso ao conteúdo de todas as mensagens enviadas e recebidas de conta pessoal de e-mail utilizada por pessoa física, para fins de apuração de suposto ato ilícito" [4].

O caso sub judice, que tramita em segredo de justiça, conforme revelado pelo TST, originou-se de uma ação em que a empregadora requereu indenização em face do empregado solicitando ao portal web Yahoo o acesso aos e-mails trocados pelo empregado durante certo período. Conforme consta da notícia, o juízo de primeiro grau autorizou a medida e o empregado impetrou mandado de segurança, ocasião em que o tribunal local (TRT 15ª Região) deliberou no sentido que "diante do forte indício de violação de dados e informações confidenciais das empresas do grupo, não há que se falar em violação de direito líquido e certo ao sigilo de correspondência do empregado, num juízo de ponderação de valores fundamentais" [5].

Segundo a relatora do recurso no TST "o interesse público na apuração de infrações penais graves, puníveis com reclusão, pode permitir, em alguns casos, a relativização da inviolabilidade das comunicações. Contudo, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) não prevê a possibilidade de requisição judicial de 'conteúdo da comunicação privada' para formação de conjunto probatório em ação cível. 'O que se autoriza, no artigo 22 da lei, é o 'fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet" [6].

Nesse caminhar, o Código de Trabalho Português, embalado pelo dever de informação do empregador ao empregado, prevê em seu artigo 20, item 3, que: "o empregador informa o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados, devendo nomeadamente afixar nos locais sujeitos os seguintes dizeres, consoante os casos: 'Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão' ou 'Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som', seguido de símbolo identificativo".

Verifica-se que, ao contrário do que ocorre no ordenamento pátrio, a Codificação Lusitana deixou expresso ser falta grave vigiar o empregado sem que lhe tenha sido previamente informado, sem que a natureza da atividade justifique a vigilância e sem que conste uma indicação expressa que o local é sujeito a monitoramento (requisitos que são concomitantes).

Mais especificamente quanto à troca de mensagens em ambiente de trabalho, o silêncio do legislador celetista é soez ante o que preceitua o artigo 23, item 1, do CTP que gizou que "o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico".

À míngua de anterior guarida legal quanto ao direito do empregado, nesses casos, a jurisprudência era uníssona em solucionar a questão divisando o problema em e-mail ou troca de mensagens particulares e e-mail ou troca de mensagens corporativos. Diversas decisões do c. TST já deixaram certo que "monitorar e rastrear a atividade do empregado em e-mail corporativo não constitui ilegalidade por parte do empregador" [7], isso porque, para a Corte Trabalhista, o e-mail corporativo utilizado pelo empregado tem natureza jurídica de ferramenta de trabalho e, por isso, a empresa estaria autorizada a rastreá-lo, tanto do prisma formal (quantidade de e-mails, horários de envio e destinatários) quanto do prisma do conteúdo das mensagens.

Esse entendimento permitia a conclusão de que não havia violação aos direitos personalíssimos de intimidade, vida privada, honra e imagem, sigilo de correspondência, comunicação e dados, porquanto não afetos à esfera eminentemente íntima do trabalhador e sim relacionados ao contrato de trabalho.

Noutra vertente, o monitoramento de e-mail ou apps de troca de mensagens particulares do empregado, em regra, não se enquadra em nenhuma das hipóteses do artigos 7° ou 11 da LGPD, posto que o empregado consinta (artigo 9° da CLT), uma vez que haveria inarredável renuncia a direito fundamental, ao arrepio de garantias mínimas dentro de um Estado Democrático de Direito.

Quando do acesso aos dados pessoais e/ou sensíveis registrados nas ferramentas corporativas (e-mail ou apps de mensagens), o empregador deve tratá-los na forma dos artigos 7° e 11 da LGPD, sendo necessário o consentimento prévio para o tratamento, excetuadas as hipóteses descritas nos próprios dispositivos.

Dessa forma, pode o empregador monitorar o uso de e-mails e apps de mensagem do empregado, desde que tais ferramentas sejam corporativas, sem olvidar que o tratamento dos dados pessoais dos empregados contidos nesses instrumentos seja realizado na forma da legislação de proteção de dados vigente e do direito comparado, se for o caso (artigo 8° da CLT).

Ultimando essa ideia, vale dizer, ainda, que a garantia constitucional da inviolabilidade das comunicações abrange também as comunicações em meios eletrônicos (e-mails, direct message do Twitter, Instagram Direct, WhatsApp, Facebook, Telegram e etc).

Todavia, a recente decisão do TST encimada passou a admitir a quebra de sigilo de e-mail pessoal do empregado, mas somente quanto aos metadados das mensagens, i.e, registros de datas, horários, contas e endereços de IP, porquanto seria ilícito o acesso ao conteúdo dos e-mails por evidente violação do direito à privacidade.

O Marco Civil da Internet, mais precisamente em seu artigo 10, § 2º, prevê a possibilidade de ordem judicial para a disponibilização de conteúdo de comunicações privadas. Todavia, isso não quer significar dizer que possa o empregado ter seus dados e comunicações pessoais interceptados por seu empregador, mediante requerimento e deferimento judicial, pois nos termos do artigo 5º, XII, da CF, isso somente pode ocorrer mediante ordem judicial para prova em investigação criminal, além de outros requisitos legais.

O que se pode extrair, portanto, do recente posicionamento do TST é que existem marcantes diferenças entre a requisição dos registros das comunicações e seus conteúdos, pois a quebra de sigilo destes somente poderia se dar, via de regra, para fins de instrução de processo criminal ou quando em xeque a vida ou a integridade física de terceiros, sob pena de afronta ao direito fundamental à privacidade do trabalhador que não abre mão da sua intimidade, da sua privacidade ou da proteção aos seus dados pessoais pelo simples fato de se tornar um laborista em busca de meios de sua subsistência.

 


[1] PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. 2ª ed. Jandira, São Paulo: Príncipis, 2019, p.105.

[2] Nas palavras do juiz Thomas Cooley, em 1879.

[3] Expressão cunha pelo autor francês Guy Debord, no seu livro La société du spectacle publicado em 1967. Trata-se de uma crítica teórica sobre consumo, sociedade e capitalismo.

[5] Ibdem

[6] Ibdem

[7] Vide, por exemplo, RR-1347-42.2014.5.12.0059, DEJT 26/6/2020, RR-613/2000-013-10-00.7, DJ de 10/6/2005; AIRR-1542/2005-055-02-40, DJ de 6/6/2008;AIRR-1461-48. 2010.5.10.0003, DEJT 27/2/2015.

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  • é juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, especialista em Ciências do Trabalho pela Faculdade Lions e autor de diversos artigos jurídicos.

  • é juíza do Trabalho substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, especialista em inovações em Direito Civil e seus instrumentos de tutela pela Universidade Anhanguera, autora de diversos artigos jurídicos e coautora do livro O Direito Autônomo à Proteção dos Dados Pessoais: uma Análise Constitucional-trabalhista.

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