Opinião

Emendas do relator-geral: inovação inconstitucional no orçamento brasileiro

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19 de outubro de 2022, 18h12

1. Um dos temas mais relevantes do Direito Constitucional e das relações políticas é o orçamento público. Ao limitar juridicamente o poder financeiro, a lei orçamentária, se democraticamente elaborada e devidamente executada, materializa o resultado das disputas para estabelecer quais demandas serão consideradas prioridades alocativas. Desse modo, estando pautada em bases legítimas e realistas, a chamada "lei de meios" indica o perfil e aponta os rumos que cada governo pretende adotar.

No Brasil, a proposta do orçamento anual cabe ao Poder Executivo (CF, artigo 165) e, como qualquer projeto de lei, submete-se a deliberação do Poder Legislativo (CF, artigo 48, II). Uma vez apresentada, está sujeita a alterações por parte de deputados e senadores. Tal possibilidade garante aos parlamentares participar da construção do gasto público. Em outras palavras, os legisladores têm mais atribuições do que meramente aprovar ou rejeitar, como um todo, a proposta do governo. Assim, podem corrigir erros, sanar omissões e propor aperfeiçoamentos relativos a dispositivos do projeto (CF, artigo 166, § 3º, III)

Nesse sentido, emendar o orçamento está entre as competências do Legislativo e é "prerrogativa de ordem político-jurídica" de seus membros, segundo o Supremo Tribunal Federal (ADI nº 1.050 MC). Em um sistema presidencialista, essa participação ganha ainda mais relevância diante do protagonismo do Executivo na elaboração orçamentária.

A matéria, portanto, deve ser analisada com atenção, visto que essa prerrogativa está sujeita a limites constitucionais e envolve controvérsias jurídicas e políticas. Atualmente, assim como no início dos anos 1990, as emendas do relator-geral estão no centro do debate nacional. Para contextualizar e colocar a questão em termos juridicamente adequados, devem ser respondidas as seguintes perguntas: quais são as normas que regulam o poder de emenda à lei orçamentária? Essas normas estão previstas apenas no texto constitucional ou podem ser veiculadas por lei ordinária? Quais são os limites para emendar o orçamento? Uma vez aprovadas, as emendas são de execução obrigatória?

A seguir, o texto abordará três pontos. Primeiro, os limites e o alcance das emendas parlamentares ao orçamento. Segundo, o caráter vinculante das emendas individuais e de bancada. Terceiro, e este será o ponto mais detalhado, os fundamentos e as características das emendas do relator-geral, conforme o desenho adotado no orçamento federal a partir de 2019.

2. Os limites das emendas parlamentares. Em países que adotam o presidencialismo como sistema de governo, as funções executivas (de estado, de governo e de administração) e as funções legislativas são segregadas de mais forte. Nesse contexto, cabe ao presidente elaborar e apresentar a proposta de orçamento público (CF, artigo 84, XXIII), a qual deverá refletir, a princípio, o plano de governo aprovado nas urnas.

A junção, de um lado, da iniciativa privativa com, de outro, a elaboração do plano de governo reforça o protagonismo do Executivo e restringe a participação do Legislativo. Em outras palavras, não pode o Parlamento alterar a proposta de orçamento a ponto de transformar ou descaracterizar sua essência. Em realidade, essa hipótese seria um contrassenso, pois o Executivo estaria submetido a um plano de gastos elaborado por um poder (o Legislativo), cujos membros não foram eleitos para governar. Em uma situação extrema, haveria uma cláusula de isenção ou imunidade, pois o chefe do Executivo não poderia ser responsabilizado pelos resultados ruins de escolhas que não foram suas.

Portanto, o texto constitucional, ao mesmo tempo que assegura ao Congresso Nacional o poder emendar o orçamento, estabelece restrições formais e materiais a essa prerrogativa. Dessa forma, para serem válidas, as emendas apresentadas à comissão mista permanente (CF, artigo 166, § 2º): 1) deverão ser compatíveis com o plano plurianual (PPA) e com a lei de diretrizes orçamentárias (LDO); 2) não poderão aumentar a despesa originalmente prevista e deverão indicar os recursos necessários por meio da anulação de outras despesas; 3) deverão estar relacionadas com os dispositivos da proposta; 4) deverão tratar apenas da correção de omissões ou de erros detectados na proposta e 5) não poderão anular as dotações para pessoal (e seus encargos), as despesas com o serviço da dívida e as transferências tributárias constitucionais para os entes subnacionais (CF, artigo 166, § 3º). Essas últimas vedações (relativas a despesas que não podem ser anuladas) configuram as chamadas "cláusulas pétreas orçamentárias".

Em suma, o poder de emenda é restrito, sujeitando-se a limites constitucionais. Desse modo, serão inconstitucionais as alterações da proposta orçamentária que violarem requisitos formais e materiais do artigo 163, § 3º, da Constituição Federal.

3. A obrigatoriedade da execução das emendas individuais e de bancada. Para um parlamentar, não é tarefa fácil aprovar uma emenda ao orçamento. Vê-la concretizada é tarefa igualmente difícil. Além de cumprir os requisitos constitucionais, são exigidos muito diálogo, negociações, compromissos e acordos entre deputados e senadores, tanto na comissão mista quanto no plenário. Após a deliberação legislativa, deve-se contar com a sanção presidencial para que as alterações passem efetivamente a constar na lei orçamentária.

No entanto, mesmo cumprido todo esse caminho, não havia, até há alguns anos, qualquer garantia de que as emendas inseridas na lei orçamentária seriam executadas e materializadas em bens e serviços no mundo real. O Executivo, sob o fundamento de que o orçamento é autorizativo, não se via obrigado ao cumprimento dos pleitos parlamentares. Note-se que esse modelo reforçava o poder de agenda do presidente da República frente ao Congresso Nacional. Principalmente, em casos de votação de matérias de interesse do governo.

No entanto, a partir de 2015, iniciou-se um movimento de flexibilização desse poder presidencial. Com a Emenda Constitucional (EC) nº 86, de 15/3/2015, as emendas individuais: 1) passaram a contar com a garantia de um valor anual (1,2% da receita corrente líquida [1]) (CF, artigo 166, § 9º e § 11) e 2) passaram ser vinculantes (CF, artigo 166, § 11). Entretanto, foram criadas ressalvas, de modo que as emendas: 1) quando destinadas aos entes subnacionais, não podem custear gastos com pessoal e nem o serviço da dívida (CF, artigo 166-A, § 1º); 2) deixam de ser vinculantes em casos de impedimentos de ordem técnica (CF, artigo 166, § 13) e 3) podem ter o valor reduzido para o cumprimento da meta de resultado fiscal (CF, artigo 166, § 18).

Quatro anos depois, a EC nº 100, de 26/6/2019, estendeu as garantias às emendas de bancada. Estas passaram também a contar com o valor de 1% da receita corrente líquida [2] e sua execução se tornou igualmente obrigatória (CF, artigo 166, § 12).

De acordo com sua configuração, as emendas (vinculantes) individuais e de bancada têm uma importante característica comum: ambas devem ser executadas de modo equitativo, tendo caráter igualitário entre parlamentares e bancadas. Ou seja, de acordo com critérios previstos em lei complementar (CF, artigo 165, § 9º, III): "Considera-se equitativa a execução das programações de caráter obrigatório que observe critérios objetivos e imparciais e que atenda de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria" (CF, artigo 166, § 19). Em outras palavras, independentemente de ser alinhado ao governo ou fazer oposição, tornou-se obrigatório o cumprimento das emendas propostas por todos os parlamentares até o limite constitucionalmente estabelecido.

Não há dúvida de que, sem prejuízo de distorções que devem ser corrigidas, como é o caso das transferências especiais (CF, artigo 166-A, § 2º) e da desconsideração de eventual inadimplência do ente federativo beneficiado com as emendas (CF, artigo 166, § 16), tais mudanças trouxeram mais autonomia ao Legislativo e reforçou a atuação das minorias parlamentares. Como consequência, em um primeiro momento, contribuíram para reduzir o poder de agenda do presidente da República frente o Congresso Nacional.

4. As emendas do relator-geral. Com o advento das emendas vinculantes (criadas em 2015 e em 2019), parecia que os termos da relação orçamentária entre Executivo e Legislativo passariam a ter novas bases. Apontava-se para um novo paradigma, que levaria a um rearranjo de forças entre os poderes. Contudo, não foi o que se observou a partir do final de 2019, quando, por força das leis de diretrizes orçamentárias, as emendas do relator-geral do orçamento passaram a ser marcadas com indicador específico para apuração do resultado primário (RP).

Conhecidas como "RP 9", tais emendas restabeleceram o modo de relacionamento entre Executivo e Legislativo que vigorava antes de 2015. No caso, o convencimento de parlamentares, via liberação de emendas orçamentárias, para formar a coalizão presidencial ou para aprovação pontual de projetos. Para ilustrar a dimensão do poder do relator-geral, a LDO para 2023 (Lei nº 14.436, de 09.08.2022) prevê à sua disposição um montante equivalente ao somatório das emendas individuais (RP 6) e de bancada (RP 7) (artigo 13, § 5º, III). Registre-se que, ao longo do exercício 2021, o valor das emendas RP 9 superou o total das RP 6 e das RP 7, segundo apontou o TCU ao analisar as contas presidenciais de 2021 [3].

Entretanto, as emendas do relator-geral, nessa nova configuração: 1) carecem de fundamentação constitucional; 2) violam regras de planejamento e de avaliação de políticas públicas; 3) comprometem a transparência e 4) acarretam desequilíbrios de natureza eleitoral.

Ao contrário das individuais e de bancada, as emendas RP 9 não possuem previsão no texto da Constituição. Seu fundamento está em lei ordinária temporária, a que estabelece as diretrizes orçamentárias. Se é verdade que a LDO "orientará a elaboração da lei orçamentária anual" (CF, artigo 165, § 2º), também é verdadeiro que dá para inferir uma autorização para criar nova espécie de emenda parlamentar dotada de tanta amplitude. Não há, entre os dispositivos constitucionais relativos à LDO, regra que dê respaldo ao alcance dado às emendas RP 9. Tal configuração é incompatível com a Constituição.

Por outro lado, mesmo que se admitisse que a LDO pudesse inovar quanto às emendas parlamentares, a extensão atribuída ao poder do relator-geral viola a Constituição. Isso porque o poder de emendar a proposta orçamentária é reduzido. Aos parlamentares cabe apenas realizar alterações pontuais para corrigir erros, omissões ou aperfeiçoar dispositivos do projeto apresentado pelo Executivo. E isso deveria valer de modo igual para o relator-geral. No entanto, as emendas RP 9 avançam e, em descumprimento das regras constitucionais, e criam programações novas no orçamento.

E mais: em razão do volume de dinheiro à disposição do relator-geral (superior ao total das emendas individuais e de bancada em 2021), na prática, as emendas RP 9 (cujas execuções não são obrigatórias) neutralizam os benefícios trazidos à relação entre Legislativo e Executivo pelo caráter vinculante atribuído às emendas individuais (RP 6) e de bancada (RP 7). Nesse ponto, tanto os dispositivos da LDO, que tratam das emendas do relator-geral, quanto a Resolução do Congresso Nacional nº 02, de 2/12/2021 [4], ao possibilitarem tamanho poder de inovação orçamentária, são incompatíveis com a Constituição.

Como se não bastasse, esse elevado montante compromete políticas públicas essenciais. Isso porque, como os recursos são escassos, devem ser realizadas limitações de empenho para a realocação de dinheiro às emendas RP 9. A consequência é o comprometimento de programas elaborados a partir de planejamento participativo, cujos recursos passarão a ser alocados para custear as indicações dos parlamentares beneficiados com as emendas do relator-geral.

Tal situação se agrava ainda mais quando o tema é seguridade social, que foi o conjunto com mais emendas RP 9 pagas em 2021. O agravamento se dá porque essas despesas submetem-se, em geral, a comandos constitucionais e de leis complementares que determinam planejamento, participação de conselhos, pactuação e a adoção de critérios objetivos para a alocação de recursos (CF, artigo 198, § 3º e artigo 204). São políticas públicas que devem ser construídas coletivamente. E tudo isso é incompatível com o modo (individual, por assim dizer) como as escolhas pelo relator-geral do orçamento podem ser feitas. Desse modo, ao desconsiderar as regras de alocação de recursos na seguridade social, as emendas RP 9 prejudicam o planejamento, comprometem a impessoalidade e possibilitam benefícios políticos desiguais. A análise das contas presidenciais de 2021, feita pelo TCU, reforça tais conclusões [5].

Além disso, as emendas RP 9 minam a transparência pública. Isso porque, pela sua dinâmica, basta ao relator-geral incluir a programação no orçamento e comunicar ao Executivo. Conforme o TCU, essa prática impede o acesso aos detalhes das solicitações e das indicações, que deveriam estar registradas "em sistema eletrônico centralizado da União que garanta amplo acesso público aos dados (abertos), de forma a facilitar a rastreabilidade e a comparabilidade das informações, conforme assegurado pelo art. 163-A da Constituição da República" [6]. Por essa razão é que tais emendas ficaram conhecidas como "orçamento secreto". E esse ponto foi o principal fundamento adotado pelo STF para a suspender sua execução em 2021 (APDF nº 854).

Por fim, é intuitiva a constatação do desequilíbrio gerado pelas emendas do relator-geral nas disputas eleitorais. Isso porque, em razão do montante e da forma como são executadas, tais emendas beneficiam o parlamentar contemplado frente a seus concorrentes nas eleições. Estes largam na frente e, em regra, chegam na frente na corrida contra seus adversários.

5. Conclusão. Entre todas as possibilidades de emendas parlamentares à lei orçamentária anual, as do relator-geral (RP 9) são as mais polêmicas e as que mais causam distorções no sistema de orçamento brasileiro. Isso porque: (1) não possuem respaldo constitucional; (2) violam os limites constitucionais ao poder de emendar o orçamento; (3) movimentam valores muito elevados, maiores até que a soma das emendas individuais (RP 6) e de bancada (RP 7), as quais têm assento constitucional; (4) prejudicam o planejamento e a execução das políticas públicas relevantes, principalmente as relativas à seguridade social; (5) descumprem os deveres de transparência; (6) comprometem a impessoalidade na alocação dos recursos e (7) impactam o processo eleitoral, pois sua dinâmica tende a favorecer os responsáveis pela indicação das programações.

 


[1] Na verdade, na vigência do "teto de gastos" ("Novo Regime Fiscal"), implantado pela Emenda Constitucional nº 95, de 15/12/2016, o limite para as emendas individuais corresponde ao montante executado em 2017, atualizado pela inflação (IPCA), nos termos do art. 111, do ADCT, da Constituição Federal.

[2] A partir do exercício de 2023 e enquanto durar o "teto de gastos", o limite das emendas de bancada obedecerá ao disposto no art. 3º, da Emenda Constitucional nº 100, de 26/6/2019: "A partir do 3º (terceiro) ano posterior à promulgação desta Emenda Constitucional até o último exercício de vigência do regime previsto na Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, a execução prevista no § 12 do art. 166 da Constituição Federal corresponderá ao montante de execução obrigatória para o exercício anterior, corrigido na forma estabelecida no inciso II do § 1º do art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias".

[3] "As emendas de relator-geral do PLOA (RP 9) não possuem assento constitucional, não obstante, em 2020 e em 2021 o montante de recursos empenhados em tais emendas superou a soma dos valores empenhados nas emendas individuais e de bancada." Disponível em: https://sites.tcu.gov.br/contas-do-presidente/documentos/parecer-completo-contas-do-presidente.pdf (p. 358). Acesso em: 8/10/2022.

[4] Tal resolução acrescenta o inciso IV, ao art. 53, da Res. CN nº 01/2006, de modo a "autorizar o relator-geral a apresentar emendas que tenham por objetivo a inclusão de programação ou o acréscimo de valores em programações constantes do projeto, devendo nesse caso especificar seu limite financeiro total, assim como o rol de políticas públicas passível de ser objeto de emendas". Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2021/resolucao-2-1-dezembro-2021-792036-publicacaooriginal-164022-pl.html. Acesso em: 8/10/2022.

[5] "A partir da sistemática adotada para as emendas RP 9, em 2020, tem-se aumentado o risco de incompatibilidade do planejamento governamental, especialmente em razão da insuficiência de programações orçamentárias em valores necessários e suficientes para a União honrar suas obrigações, tendo em vista a legislação que norteia as políticas públicas aprovadas pelo próprio Congresso Nacional." Disponível em: https://sites.tcu.gov.br/contas-do-presidente/documentos/parecer-completo-contas-do-presidente.pdf (p. 359). Acesso em: 8/10/2022.

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