'Formato atual da carreira de magistrado é um absurdo', afirma presidente da AMB
18 de outubro de 2022, 19h06
Primeira mulher a presidir a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a juíza criminal Renata Gil tem se mostrado muito atuante na defesa das prerrogativas da magistratura. Uma de suas batalhas é pela reestruturação da carreira, assunto que ela considera da maior importância. Para Renata, os subsídios recebidos pelos juízes brasileiros estão defasados e é preciso modernizar o sistema de ascensão profissional dentro do Judiciário.
Renata Gil falou à revista eletrônica Consultor Jurídico sobre esse tema e também sobre sua confiança na democracia do Brasil e o trabalho que a entidade que comanda tem feito em benefício da concretização dos direitos humanos e da equidade de gênero.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Os ataques sofridos recentemente por ministros do Supremo Tribunal Federal, em especial da parte do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, são um sinal de que a democracia brasileira está em perigo?
Renata Gil — A democracia brasileira é forte porque tem instituições fortes, compostas por mulheres e homens de brio e coragem. Ouvimos muitas bravatas e fizemos questão de respondê-las para garantir que não evoluam para gestos concretos, ainda que inócuos. A democracia é um valor arraigado na população brasileira. Nossos cidadãos, ao longo da história, conheceram regimes autoritários, e essa triste memória ainda habita entre nós. Defender o Estado democrático de Direito e a independência e a harmonia entre os poderes é um dever incondicional de todos aqueles que exercem a função pública. E jamais nos furtaremos de cumpri-lo.
ConJur — Em um momento de forte polarização política no Brasil, como a AMB deve se posicionar para defender os interesses da magistratura?
Renata Gil — O mais importante, e que todos devemos compreender com clareza, é que a AMB não tem ideologia, nem serve a interesses partidários. O nosso principal intuito é defender as prerrogativas da magistratura, que são, na verdade, garantias da cidadania. Então, mantemos um diálogo de alto nível com todas as autoridades da República porque sabemos que, nessa missão, o que nos guia é o interesse público. Essa capacidade de diálogo, sem armas ou preconceitos, sem vinculações políticas, abre portas e faz com que as pautas da magistratura sejam efetivamente colocadas na ordem do dia. Independentemente dos mandatários de turno, a AMB, uma instituição sexagenária, permanecerá, e eu tenho compromisso tanto com a história que começou a ser escrita antes de mim quanto com as gerações futuras, que se aproveitarão do nosso trabalho para avançar ainda mais.
ConJur — A senhora defende a reestruturação da carreira da magistratura, com reajuste dos subsídios. Por que essa pauta é importante para os magistrados brasileiros?
Renata Gil — Em decorrência das dificuldades econômicas e sociais que o Brasil enfrenta, faz-se necessária uma nova estruturação da carreira, a começar pela correção dos subsídios, uma determinação constitucional, que deve ocorrer anualmente. Todavia, a realidade é que não há qualquer ajuste desde 2018, o que acarreta uma perda inflacionária superior a 40%. Mais do que um direito de todo trabalhador, a justa remuneração, no caso da magistratura, concorre para a preservação da independência judicial e para a imunidade do juiz diante das pressões alheias. Além disso, é urgente a reestruturação da carreira porque o formato atual é um absurdo, na medida em que não há diferenças entre o juiz ingressante e aquele que já dedicou anos de sua vida ao serviço público. A progressão salarial e de benefícios, conforme o avanço da carreira, existe por um motivo simples: ela favorece a produtividade e a geração de resultados. Não há qualquer justificativa para o Judiciário não implementar uma gestão mais eficiente de seus recursos.
ConJur — A senhora costuma dizer que a magistratura brasileira é a que mais julga processos e a mais preparada do mundo. Mesmo assim, o acervo de processos à espera de julgamento é gigantesco. Como resolver esse problema?
Renata Gil — O grande volume de processos é consequência natural da nossa condição de país subdesenvolvido. Quanto mais conflitos sociais, derivados muitas vezes da desigualdade, mais atuante será o Judiciário para resolver pendências que os cidadãos não podem dirimir sozinhos. Com o progressivo desenvolvimento da nação, aguarda-se um natural descongestionamento do Judiciário, mas já tivemos resultados expressivos nos últimos anos, com um aumento da produtividade que veio acompanhado da diminuição do acervo de processos, fruto da adoção de inovações tecnológicas como o processo judicial eletrônico, a Justiça 4.0 e o Balcão Virtual. A formação contínua de magistrados e servidores e o investimento em tecnologias da comunicação e informação é o caminho mais promissor, e seguiremos colhendo bons resultados nos próximos anos.
ConJur — A senhora esteve recentemente no encontro anual da União Internacional dos Magistrados (UIM). Neste momento, quais são os problemas que mais inquietam os juízes mundo afora?
Renata Gil — Há anos o mundo está enfrentando intensas conturbações políticas, econômicas e ambientais, a começar pela crise financeira de 2008, passando pela pandemia da Covid-19 e chegando até o contexto atual, de guerra. A independência judicial, que é um dos fundamentos do Estado de Direito, encontra-se em risco em diversas partes do globo. Magistrados têm sido pressionados não apenas na esfera do processo, mas também se deparam com situações de ameaça e agressão. Tivemos o exemplo recente das juízas do Afeganistão que tiveram de fugir do país depois da tomada do poder pelo Talibã, para não serem mortas. Na Ucrânia, o mesmo quadro de insegurança se repetiu. E o prejuízo maior, sempre, é do cidadão, que carece de um Judiciário autônomo e que opere com excelência.
ConJur — Qual o papel da AMB nesse cenário?
Renata Gil — A AMB é a maior entidade representativa da magistratura no mundo (14 mil juízes associados) e, naturalmente, desempenha um papel de relevância dentro da UIM. Temos um estreito relacionamento com a Organização dos Estados Americanos e com as missões brasileiras no exterior. Eu estive pessoalmente com autoridades como a presidente do Senado da Itália, Maria Elisabetta Alberti Casellati, e a chefe do Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca, Rosie Hidalgo. Também participamos de debates no Atlantic Council e em outros fóruns internacionais. A consequência mais importante desse trabalho foi o plano de acolhida das juízas afegãs ameaçadas pelo Talibã, que pude coordenar com o apoio de diversas organizações privadas e do governo brasileiro.
ConJur — Como foi o processo de resgate dessas juízas?
Renata Gil — Nós resgatamos sete juízas afegãs, que vieram junto com familiares. Elas corriam risco de vida porque são mulheres e trabalham, o que é proibido pelo grupo fundamentalista, e porque durante o exercício da magistratura condenaram membros do Talibã. Nós não podíamos ficar de braços cruzados diante da possibilidade de testemunhar a morte de mulheres somente porque cumpriram o seu dever legal. O primeiro passo foi a obtenção do visto humanitário; depois, organizamos a recepção delas no país, e agora estamos trabalhando para que elas possam seguir uma vida normal, com segurança e proteção.
ConJur — A AMB também tem se empenhado bastante na defesa da equidade de gênero, inclusive com a campanha Sinal Vermelho. Por que essa pauta é importante para a entidade?
Renata Gil — Eu sou a primeira e única mulher a presidir a AMB em seus mais de 70 anos de história. Considero que, mais do que um feito para as colegas magistradas, a minha chegada a esse posto de comando dentro da magistratura precisa impactar positivamente todas as mulheres, a despeito de idade, classe social, profissão ou formação educacional. Caso contrário, não terei cumprido a minha missão. E a violência doméstica é um problema de todas nós, indistintamente. Quando tomei conhecimento de que na pandemia cresceram os índices de ameaças, agressões e de feminicídio, percebi que era hora de agir com mais intensidade e energia. Então, criamos esse mecanismo silencioso de denúncia, o X vermelho na palma da mão, que já salvou inúmeras vidas.
ConJur — A campanha, inclusive, tornou-se lei…
Renata Gil — A Lei 14.188/2021, conhecida como Lei do Sinal Vermelho, tornou a campanha um programa de cooperação, que também está previsto nas legislações de 18 Estados, do Distrito Federal e de diversos municípios. Esse diploma legal, que também criminalizou a violência psicológica contra a mulher, foi aprovado em um tempo recorde no Congresso Nacional, graças a um grande esforço de diálogo e convencimento que travamos com deputados e senadores. Depois, conseguimos a sanção da norma pelo presidente da República. Agora, a nossa expectativa é de, por meio da UIM, expandir essa prática para outras nações, de modo a tornar o Sinal Vermelho um símbolo universal, que socorra toda mulher, qualquer que seja o seu idioma.
ConJur — A AMB obteve recentemente o selo ONU do Pacto Global. Qual a importância desse certificado?
Renata Gil — A AMB é uma associação que se engaja efetivamente na construção do mundo que queremos para nossos filhos e netos. Todas as atividades que desempenhamos, do resgate das juízas afegãs à campanha Sinal Vermelho, têm esse mesmo propósito. Nós somos conscientes da responsabilidade que temos com o futuro. O reconhecimento da ONU não apenas fortalece esse esforço como impõe metas a perseguir. Agora, oficializamos os compromissos que já tínhamos com a defesa dos direitos humanos, do trabalho decente, da proteção do meio ambiente e do combate à corrupção.
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