Opinião

Sanções penais atípicas na delação: STJ mantém abertas as portas do Tártaro

Autor

  • Rafael Ferreira de Albuquerque Costa

    é advogado especialista em Direito Criminal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rio de Janeiro.

    View all posts

13 de outubro de 2022, 20h33

No último dia 5 de outubro, aniversário de 34 anos da Constituição da República, o Superior Tribunal de Justiça, nos autos da Pet 13.974, deu provimento ao agravo interno interposto pelo Ministério Público Federal, concluindo que a previsão de sanções penais atípicas, isto é, não previstas em lei, não ensejariam a nulidade em abstrato do acordo.

Confesso que sofri um golpe ao tomar ciência de uma decisão não republicana em um dia tão caro à democracia e aos direitos fundamentais.

Segundo o noticiado aqui na ConJur (ver aqui), o caso versa sobre investigação de possíveis crimes praticados por autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função, para uma das quais o Ministério Público Federal ofertou benesses não previstas na Lei nº 12.850/13.

Ainda de acordo com o artigo, a proposta do parquet federal determinava o cumprimento da pena privativa de liberdade por 12 anos com critérios diferenciados, como o regime de prisão domiciliar e prazo inferior ao previsto na Lei de Execuções Penais para progressão de regime.

A relatora do processo, a ministra Nancy Andrighi, negou a homologação do acordo com fundamento legal no artigo 4º, §7º, II da Lei nº 12.850/13, incluído pela Lei nº 13.964/19, que prevê a nulidade das cláusulas "que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena" regulado pelo Código Penal, assim como "as regras de cada um dos regimes" previstos na legislação e "os requisitos de progressão de regime", desde que observada a ressalva da colaboração posterior à sentença condenatória.

Muito embora ainda não tenha sido lavrado o acórdão, é possível acompanhar a sessão de julgamento da Corte Especial (aqui, a partir do minuto 45min26). O ministro Og Fernandes trouxe seu voto-vista, inaugurando a divergência e entendendo, em síntese, que o princípio da legalidade obsta apenas a fixação de sanções mais gravosas do que as previstas em lei e que a dinâmica da moderna criminalidade exige incentivos para quebra do pacto de silêncio e para contorno à prática de destruição de provas.

Ademais, o ministro Og Fernandes consignou que é necessário superar o paradigma de que o processo penal, por tratar de direitos indisponíveis, estaria imune à autonomia privada das partes. Traz ainda como exemplo a doutrina processualista civil, que admite a celebração de negócios jurídicos processuais até mesmo em causas cujo objeto consiste em estado e capacidade das pessoas. A conclusão do voto-vista foi de que não haveria nulidade em tese na proposição de benefícios não previstos em lei, desde que não fossem violados a Constituição, o ordenamento jurídico, a moral e a ordem pública.

Apesar das esmeradas considerações e de algum debate no órgão especial do STJ, o tema ainda merece discussão, dada sua importância, sobretudo pelo curto tempo que teve sua apreciação e o apertado resultado do julgamento, que terminou em 6 a 5 pelo provimento do recurso ministerial, indicando que a matéria pende de amadurecimento tanto na Corte Cidadã quanto nas demais instâncias.

No geral, o julgamento foi conduzido no sentido da possibilidade de concessão de sanções penais atípicas em acordos de delação premiada, máxime sob o viés da eficiência, sublinhando o voto-vogal da ministra Laurita Vaz que registrou a imprescindibilidade do caráter vantajoso para o delator, sendo a colaboração o único meio apto ao combate à criminalidade organizada.

Sabemos que a justiça penal negocial chegou para ficar e que lutar contra ela ou por sua abolição provavelmente será um vão e hercúleo esforço, embora nobre. No entanto, é preciso que sejam definidos e analisados os aspectos da delação premiada como instituto penal e processual penal, além de debatê-lo com a devida atenção, visto que, mesmo com as inclusões e alterações promovidas pela Lei nº 13.964/19, ainda há muito que se aperfeiçoar no estatuto dos acordos de delação.

Já escrevi muito sobre isso, podendo minha crítica ser ilustrada pelo artigo publicado no boletim mensal do IBCC (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) [1], de que a colaboração premiada emerge justamente no contexto da criminalidade moderna, potencializada pelo sentimento de insegurança, a se revestir supostamente do único instrumento hábil a combatê-la. Nesse sentido, adota-se um viés eficientista que, não raro, se sobrepõe às garantias constitucionais e à própria lei.

Analisando a discussão travada no Superior Tribunal de Justiça, observa-se que prevaleceu a posição em prol da eficiência. No entanto, notável o comentário feito pela ministra Thereza de Assis Moura que votou pela subserviência à disposição legal, afastando o argumento de analogia in bonam partem, uma vez que não se tratava de matéria sem regulação, o que outrora se via, mas de expresso mandamento normativo no sentido da nulidade de sanções penais atípicas.

No meu ver, em consonância com a heurística proposta pela Crítica Hermenêutica do Direito, o entendimento da ministra Maria Thereza foi acertado. Ao julgador, é lícito o afastamento da lei em apenas seis hipóteses que, resumidamente, cingem-se à sua inconstitucionalidade e à aplicação dos critérios do conflito aparente de normas [2]. Dito de outro modo, a nulidade de cláusulas que excedam os benefícios previstos na Lei nº 12.850/13 só seria inaplicável se a) fosse inconstitucional, b) se houvesse lei posterior sobre a matéria, especial ou norma hierarquicamente superior que a contrariasse ou c) se houvesse um princípio que o recomendasse, não sendo o caso de nenhuma dessas três hipóteses.

E daí a beleza da Crítica Hermenêutica do Direito: ela propõe critérios. A Lei 12.850/13 também propôs um critério, ela concedeu a solução jurídica para determinada situação. Contudo, sob o pretexto da eficiência e da ponderação, o STJ resolveu permitir que elementos exógenos ao Direito interviessem, notadamente a política e moral, clássicos predadores do ordenamento jurídico. A pergunta que fica: se a política e a moral corrigem o Direito, pois é disso que se trata a posição vencedora na Pet. 13.974, quem corrigirá a política e a moral?

Em outras palavras, caso admitamos que as sanções penais atípicas devem ser avaliadas ad hoc sob a regência da ponderação entre a benesse, a gravidade do delito e a eficácia da delação, ou seja, que o Ministério Público pode propor o que bem entender e o delator igualmente, desde que compatíveis e razoáveis na visão do julgador (quais critérios?), então o Tribunal estaria revogando a disposição legal e adotando uma interpretação incabível aos sentidos do texto, em franco desrespeito ao Legislativo e à separação dos poderes.

Aliás, valiosa a pontuação de Lenio Streck de que "[a]o juiz não é dado o direito, muito menos o dever, de gostar ou não da lei. Não é (e nem deve ser) a vontade do juiz atribuir normatividade e validade jurídica a um preceito legal" [3].

E no que tange ao argumento utilitarista de que os acordos devem ser vantajosos para o delator e que a impossibilidade de o Ministério Público negociar benefícios não previstos em lei, deve-se ter em mente que o legislador estabeleceu um rol de vantagens ao réu-delator, cumprindo-lhe refletir sobre o seu custo-benefício e, se entender que não vale a pena, pois que prossiga com o processo penal. Não cabe ao Judiciário se arvorar na condição de elaborador de política criminal, papel que não lhe compete.

Devemos lembrar que, no auge da "lava jato", os tribunais, tanto das instâncias ordinárias quanto superiores, valiam-se da técnica da inadmissão dos recursos e das ações constitucionais no propósito de se furtarem à apreciação do mérito e, assim, não conhecerem das ilegalidades e dos excessos cometidos [4].

De outro lado, a ausência de um maior regramento sobre os acordos de delação premiada alavancou a concretização de inúmeras ilegalidades, a exemplo das cláusulas que previam a renúncia do delator ao direito de recorrer da decisão homologatória do acordo.

Essas breves considerações servem para atentarmos ao fato de que os abusos cometidos no curso da operação "lava jato" foram perpetrados com a chancela da jurisprudência, que não exerceu o devido controle sobre a atividade da força tarefa e dos órgãos jurisdicionais competentes. É papel dos poderes da República o reforço institucional para coibir novos desvios.

O resultado do julgamento em questão pelo retorno dos autos à relatoria para reanálise do acordo de colaboração a fim de que seja sopesada a extensão dos benefícios pactuados, ainda que atípicos, frente a gravidade do fato criminoso e a eficácia da delação, portanto, ignora a experiência prévia que a República obteve com o maior escândalo judicial de nossa história e demonstra uma posição totalmente ativista da Corte. Numa referência a José Saramago, o pior cego é aquele que não quer enxergar [5].

Perdeu o STJ a oportunidade de dar mais um passo importante para frear os excessos cometidos pelas instituições com atribuição atrelada à persecução penal e de conferir à delação contornos conforme a dogmática processual penal (para aos poucos abandonarmos esse ranço processual civil da teoria geral do processo que impregna uma disciplina regida por princípios, metodologia e regras próprios), mantendo abertas as portas para futuros abusos por parte do Ministério Público e das instâncias judicantes ordinárias.


[1] COSTA. Rafael Ferreira de Albuquerque. A delação premiada no contexto da eficiência processual: A mercantilização das virtudes e dos valores constitucionais. Boletim IBCCRIM. São Paulo, a. 29, nº 349, p. 26 a 28, dez. 2021.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Resposta adequada à Constituição (resposta correta). Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, p. 258-259.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito  Hermenêutica. São Paulo: Tirant do Brasil, 2019, p. 46.

[4] FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção: A verdadeira história da Lava Jato. 1ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2020.

[5] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Autores

  • é criminalista, pós-graduando em Direito Criminal Contemporâneo pela FGV-Rio. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Membro do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do IBCCrim em Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Subseção da OAB-RJ da Barra da Tijuca.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!