Opinião

Neoimperialismo no século 21: a expansão territorial russa

Autor

  • Thiago Ferreira Almeida

    é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Geneva (Unige) doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG pesquisador associado no Centro de Excelência Jean Monnet (Erasmus+ & UFMG) professor e coordenador no Centro de Direito Internacional (Cedin).

12 de outubro de 2022, 7h08

O conflito na Ucrânia, decorrente da invasão russa desde 24 de fevereiro de 2022 apresenta-se em novo contexto no Direito Internacional. A Rússia realizou quatro referendos nas áreas dominadas de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhya, tendo sido formalmente anexadas ao território russo [1]Esse procedimento foi utilizado anteriormente na Crimeia, em 2014, anexada desde então pelo governo russo.

Agência Tass
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A incorporação dessas quatro regiões, ainda submetidas a conflito armado direto entre soldados russos e ucranianos, amplia a violação dos princípios basilares da Carta das Nações Unidas de 1945 na região, sustentado pelo Direito Internacional Público.

O parágrafo 4º do Artigo 2º da Carta de 1945 dispõe que todos os Estados-membros da Organização das Nações Unidas deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos dessa organização [2].

Frente a essa situação, os Estados Unidos e a Albânia apresentaram proposta de resolução no Conselho de Segurança da ONU considerando a anexação como violadora do Direito Internacional. A resolução teve dez votos favoráveis, o veto da Rússia e a abstenção de três importantes nações emergentes: Brasil, Índia e China. Além deles, o Gabão também se absteve [3].

Em uma primeira análise, observa-se que o Brasil procurou manter a sua neutralidade no conflito, assim como outros países emergentes de grande vulto, como a Índia e a China. A neutralidade é expressa pela ausência de aplicação de sanções econômicas à Rússia desde o início do conflito, bem como pela continuidade do comércio bilateral com o governo russo, com destaque para a importação de fertilizantes, como o potássio, nitrogênio e fósforo para o agronegócio.

Do total de fertilizantes consumidos no Brasil, 85% provém de importação e, desse percentual, 23% é originário da Rússia. Acrescenta-se que o Brasil importa também 3% do total de fertilizantes do Belarus, Estado este aliado russo no conflito ucraniano [4].

À exceção dos países desenvolvidos, nenhum país emergente ou em desenvolvimento aplicou sanções econômicas à Rússia, uma vez que, no presente cenário de instabilidade global, apresentam economias mais frágeis, em delicada situação fiscal de retomada do crescimento econômico. Por outro lado, os países que aplicaram sanções econômicas representam, em termos percentuais, 70% do PIB global [5].

Nesse sentido, a recusa em votar favoravelmente à resolução condenando a Rússia no Conselho de Segurança da ONU, bem como o afastamento na aplicação de sanções econômicas, fundamentam-se em uma posição pragmática dos países emergentes em garantir posição no comércio internacional [6].

Todavia, apesar do veto russo, a anexação de quatro novas regiões ucranianas, bem como da Crimeia, configura violação do princípio da integridade territorial dos Estados. Situação semelhante ocorreu na invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, sem o respaldo de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU [7].

A Carta de 1945 é expressa em permitir somente duas hipóteses de utilização da força: 1) por aprovação de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, sem nenhum veto dos cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China), conforme Artigo 42 e seguintes; e 2) no caso de legítima defesa do território invadido por ataque externo, conforme Artigo 51.

Outro caso importante a analisar é a Resolução 1973/2011 [8], do referido conselho, que aprovou intervenção militar na Líbia, visando a proteger os civis no território, tendo tal operação convergido na retirada do ditador Gaddafi do governo líbio.

À época, a resolução foi aprovada pelos Estados Unidos, França e Reino Unido, enquanto membros permanentes, além de outros sete não-permanentes, inclusive a África do Sul. Pela abstenção, votaram a Rússia e a China, membros permanentes, além do Brasil, Alemanha e Índia, não-permanentes [9]. Os países que se abstiveram do voto entenderam que houve uma vontade de retirar o então ditador, ultrapassando as competências aprovadas na ONU que se restringiam à proteção de civis.

Em 21 de setembro de 2011, o Brasil, na gestão da Dilma Rousseff, discursou na reunião ordinária da Assembleia Geral da ONU que a responsabilidade dos Estados de proteger (Responsibility to Protect  R2P) deveria atentar-se à responsabilidade ao proteger (Responsibility while Protect — RWP), a fim de assegurar a legitimidade da atuação das Nações Unidas. Em síntese, o Brasil à época criticava a intervenção autorizada pela ONU que, no lugar de proteger os civis locais, gerou consequências graves como o agravamento do conflito e o aumento da violência [10].

No território líbio, até a presente data, coexistem dois governos que se consideram como legítimos, estando em constante conflito armado. A ONU, os Estados Unidos, Itália, Qatar e Turquia reconhecem o Governo do Acordo Nacional, sediado em Trípoli, no oeste líbio. Já as forças armadas árabes líbias, governadas por Haftar no leste e sul, possuem o apoio da França, Rússia, Egito e Emirados Árabes Unidos. Portanto, observa-se o agravamento e a instabilidade do território líbio após as intervenções em 2011 [11].

Como observado no relatório de junho de 2022, a Conferência das Nações Unidas para o comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development  UNCTAD) [12], a situação econômica internacional encontra-se em fragilidade devido aos efeitos acumulados da pandemia do Covid-19 e da guerra na Ucrânia que se estende por mais de 6 meses, sem um horizonte definido de cessação das hostilidades. Com a aproximação do inverno no continente europeu, complexifica-se a situação da população direta e indiretamente atingida pelo conflito.

Com a anexação dos territórios ucranianos pela Rússia, esta entende pela extensão das suas fronteiras e, portanto, um ataque em tais regiões configuraria um ataque ao próprio território russo e não mais em território ucraniano. Por sua vez, como se trata de anexação em premente violação ao Direito Internacional, essa posição defendida pela Rússia não é compartilhada por outros Estados-membros.

Pode-se inferir que a expansão do território russo, considerando as intervenções na Geórgia em 2008 [13], a anexação da Crimeia em 2014 e a atual guerra no território ucraniano, um retorno do modelo ultrapassado de expansão imperialista que perdurou até a 1ª Guerra Mundial. Pode-se, destarte, inferir a recorrência de um neoimperialismo no século XXI. O Direito Internacional pós-2ª Guerra Mundial (1945), e mesmo pós-Guerra Fria (1991), não suporta em sua evolução jurídica a violação e a intervenção territorial dos Estados soberanos.

Lado outro, deve-se considerar o contexto da política internacional contemporânea, em que há um domínio militar global das potências nucleares, sejam por aquelas que se enquadram como membros permaneces do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China), sejam pelas demais (Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte, em menor medida). Contudo, a atuação dos Estados no plano global não consiste no exercício de uma carte blanche de tais nações em prejuízo das demais. Os Estados se estruturam em diferentes relações entre si, em questões econômicas, culturais, políticas e militares, pautando-se pela legitimidade e juridicidade dos atos configurados no princípio da pacta sunt servanda e das normas imperativas de Direito Internacional geral (jus cogens), conforme expresso nos artigos 26 e 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 [14].

Por fim, acrescenta-se que os Estados se organizam em questões de paz e segurança internacionais conforme a Carta de São Francisco de 1945, garantindo à ONU a competência de atuar em tais questões via discussão dos Estados-membros no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral. Tais instâncias se constituem, nesse sentido, como os fóruns legítimos para a resolução pacifica de conflitos no mundo, sendo proscrita a utilização unilateral da força não autorizada pela referida Carta.

 


[1] AL JAZEERA. Putin announces Russian annexation of four Ukrainian regions. September 30th, 2022. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2022/9/30/putin-announces-russian-annexation-of-four-ukrainian-regions>. Acesso em: 4 out. 2022.

[2] BRASIL. Decreto Federal nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 4 out. 2022.

[3] UNITED NATIONS. Russia vetoes Security Council resolution condemning attempted annexation of Ukraine regions. September 30th, 2022. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2022/09/1129102>. Acesso em: 4 out. 2022.

[4] CARRANÇA, Thais. Guerra na Ucrânia: por que o Brasil depende tanto dos fertilizantes da Rússia? BBC. 3 de março de 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60596334>. Acesso em: 4 out. 2022; AGÊNCIA BRASIL. Em guerra, Rússia promete manter comércio de fertilizantes com Brasil. 27 de junho de 2022. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2022-06/em-guerra-russia-promete-manter-comercio-de-fertilizantes-com-brasil>. Acesso em: 4 out. 2022.

[5] GREEN, Mark. Countries That Have Sanctioned Russia. May, 22th, 2022. Disponível em: <https://www.wilsoncenter.org/blog-post/countries-have-sanctioned-russia>. Acesos em: 9 set. 2022.

[6] FOLHA DE S. PAULO. Brasil se abstém na ONU de condenar anexação de parte da Ucrânia à ssia. 30 set. 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/09/brasil-se-abstem-de-condenar-anexacao-de-parte-da-ucrania-a-russia.shtml>. Acesso em: 4 out. 2022.

[7] MACASKILL, E.; BORGER, J. Iraq war was illegal and breached UN charter, says Annan. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2004/sep/16/iraq.iraq>. Acesso em: 4 out. 2022.

[8] UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Resolution 1973 (2011). Adopted by the Security Council at its 6498th meeting, on 17 March 2011. Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/268/39/PDF/N1126839.pdf?OpenElement>. Acesso em: 4 out. 2022.

[9] THE GUARDIAN. Libya resolution: UN security council air strikes vote —  as it happened. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2011/mar/17/libya-united-nations-air-strikes-live>. Acesso em: 4 out. 2022.

[10] MARCON, João P. F. O conceito de "Responsabilidade ao Proteger", na política externa brasileira contemporânea. Conjuntura Global, Curitiba, Vol. 1, n.2, out./dez., 2012.

[11] AFRICANEWS. Who supports who in Libya's complex battlefield: Egypt, Russia, Turkey, Arab League. January 14th, 2022. Disponível em: <https://www.africanews.com/2020/01/14/who-supports-who-in-libya-s-complex-battlefield-egypt-us-russia-turkey-europe/>. Acesso em: 4 out. 2022; AL JAZEERA. Libya’s war: Who is supporting whom. January 9th, 2022. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2020/1/9/libyas-war-who-is-supporting-whom>. Acesso em: 4 out. 2022.

[12] UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT  UNCTAD. World Investment Report 2022. June 2022. Disponível em: <https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2022>. Acesso em: 22 jun. 2022.

[13] DICKINSON, Peter. The 2008 Russo-Georgian War: Putins green light. Atlantic Council. August 7th, 2021. Disponível em: <https://www.atlanticcouncil.org/blogs/ukrainealert/the-2008-russo-georgian-war-putins-green-light/>. Acesso em: 4 out. 2022.

[14] BRASIL. Decreto Federal nº. 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm>. Acesso em: 4 out. 2022.

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  • é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Geneva (Unige), doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG, professor e coordenador no Centro de Direito Internacional (Cedin)

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