Opinião

Descumprimento de ordem de retirada de conteúdo da internet e as astreintes

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8 de outubro de 2022, 17h08

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) dispõe no artigo 19 que "… o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente…".

Dessa forma, a responsabilidade civil do provedor de aplicação (v.g., Google, Facebook, Twitter, Youtube) somente surge com o descumprimento da ordem judicial de retirada do conteúdo da internet, pois antes disso inexiste responsabilidade civil do provedor de aplicação, mas apenas da pessoa que publicou o conteúdo.

A condenação ao pagamento de compensação por dano moral pode ser imposta ao provedor de aplicação que descumpra ordem judicial de retirada de conteúdo da internet, já que, a partir do momento em que tomou conhecimento da ordem judicial e não a cumpriu, tornou-se solidariamente responsável pelo dano, ao lado da pessoa que publicou o conteúdo.

Ocorre que, normalmente, as decisões judiciais que determinam ao provedor de aplicação a retirada de conteúdo da internet já cominam multa (astreintes) para a hipótese de descumprimento da ordem. Assim, já existe sanção/indenização pré-fixada, o que torna desnecessária e inadequada a condenação do provedor de aplicação ao pagamento de compensação por dano moral.

A cumulação do pagamento das astreintes com o pagamento de compensação por dano moral representa, nesse caso, bin in idem, além de caracterizar enriquecimento sem causa da vítima. Os dois valores monetários têm o mesmo fato gerador: o descumprimento da ordem judicial de retirada do conteúdo da internet. Ambos os valores têm como destinatária a vítima, ou seja, o autor da demanda (CPC, artigo 537, § 2º).

Caso o provedor de aplicação houvesse retirado o conteúdo quando da ordem judicial, não haveria condenação ao pagamento das astreintes nem de compensação por dano moral. Como não retirou, exsurge sua responsabilidade civil. Todavia, o Marco Civil da Internet não estipula que essa responsabilidade civil se concretiza por meio da condenação ao pagamento de compensação por dano moral.

Não se trata de impunidade ou de ausência de reparação do dano (rectius: compensação, no caso do dano moral), a multa tem dupla função: punitiva e reparatória. Se a finalidade da norma fosse apenas a punição, o valor da multa seria direcionado ao Estado e não à vítima.

Não se descura que as astreintes incidem independentemente da ocorrência de dano e podem ser cobradas sem prejuízo da indenização por perdas e danos, nos termos do artigo 500 do Código de Processo Civil. No entanto, há peculiaridade na situação sub examine, que a distingue da mens legis: o dano ocorre (passa a ter como causador o provedor de aplicação) com o descumprimento da decisão judicial, que já contém a cominação de multa, não tem ele existência autônoma ou dissociada do descumprimento da ordem judicial.

Quando o artigo 500 do Código de Processo Civil preceitua que "a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa fixada periodicamente para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação", significa que haverá cumulação com a multa se o descumprimento da ordem judicial causar danos que não sejam inerentes ao próprio descumprimento.

Dois exemplos comuns na prática judiciária bem elucidam a questão.

O primeiro é o do processo em que é emanada ordem judicial para o fornecedor retirar o nome do consumidor dos cadastros de proteção ao crédito, caso em que já existe o dano moral antes mesmo de o fornecedor cumprir ou descumprir a ordem judicial. Nesse caso é legítima a cumulação da compensação por dano moral com a multa pelo descumprimento da ordem judicial.

O segundo exemplo é o do processo em que há ordem judicial para o construtor consertar o telhado de imóvel em determinado prazo, caso em que incidirá a multa pelo descumprimento da ordem judicial quando escoado o prazo, independentemente de dano que, se ocorrer (v.g., chuva danifica armário), tornará legítima a cumulação da indenização por dano material com a multa pelo descumprimento da ordem judicial.

Os dois exemplos ilustram o âmbito de aplicação do artigo 500 do Código de Processo Civil, quando o dano não é inerente ao descumprimento da ordem judicial. No caso do provedor de aplicação que descumpre ordem judicial de retirada de conteúdo da internet, contudo, o dano moral causado pelo provedor de aplicação é inerente ao descumprimento da ordem judicial. O simples fato de descumprir a ordem de retirada do conteúdo da internet gera dano moral por parte do provedor.

Conclui-se, portanto, que, se existir decisão judicial fixando o valor da multa pela não retirada de conteúdo da internet, é descabida a condenação do provedor de aplicação também ao pagamento de compensação por dano moral. O valor da multa pode, inclusive, ser majorado se não se mostrar suficiente para compelir ao cumprimento da ordem judicial, nos termos do artigo 537, § 1º, do Código de Processo Civil.

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