Opinião

Quando os fatos sociais se tornam jurídicos

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6 de outubro de 2022, 20h33

Pensemos em um médico estudando o aparelho respiratório humano ou em um biólogo interessado no ciclo de vida de uma lagarta. Pois Émile Durkheim queria compreender melhor a sociedade e concluiu que seria fundamental observar os fatos sociais, tratando-os como coisas, tal e qual os cientistas das ciências médicas e biológicas faziam com os objetos de seus estudos.

Assim, na obra As regras do método sociológico, Durkheim apontou que o fato social possui três características: a generalidade, pois é sempre coletivo; a exterioridade, visto que existe fora do indivíduo; e a coercitividade, que é uma imposição ao indivíduo das crenças e valores de seu grupo social.

Desponta, então, uma questão, que é sobre a transformação do fato social em jurídico. Com efeito, nem todo fato social é jurídico. Para sê-lo, deve importar ao direito, de forma que ocorra a sua juridicização, que se dá com a sua inclusão na lei. O casamento, por exemplo, é um fato social que, por haver previsão legal, também é fato jurídico. Além da lei, esse — por assim dizer — upgrade do fato social pode acontecer também pelo pronunciamento dos tribunais, como será demonstrado com três exemplos.

O Supremo Tribunal Federal, em 1964, a respeito das uniões conjugais informais, editou a Súmula 380:

"Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum".

Antes desse marco, um sem número de pessoas seguia juridicamente desamparada, sem direito à partilha dos referidos bens e sem pensão alimentícia. Nesse quadro, as mais prejudicadas eram as mulheres, ainda mais naqueles idos em que a sua participação no mercado de trabalho era ainda mais modesta. Posteriormente à súmula, essa proteção foi ratificada e ampliada por leis e, inclusive, por dispositivo constitucional (artigo 226, § 3º, da Constituição da República de 1988).

Outro caso emblemático da Suprema Corte sobre direito não contemplado em lei aconteceu em 2011, quando, por unanimidade, julgou conjuntamente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, reconhecendo não haver distinção entre as relações estáveis heteroafetivas e as homoafetivas, ambas a merecer a aplicação isonômica da legislação que regula a união estável.

Um exemplo recente de atuação do Judiciário remodelando o ordenamento jurídico ocorreu em 2022, quando a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento a recurso do Ministério Público do Estado de São Paulo, decidindo que a Lei Maria da Penha (LMP) é aplicável à violência contra a mulher trans. O relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, considerou a distinção entre gênero e sexo biológico, tendo pontuado que muitas vezes os dois não coincidem e que a LMP visa proteger "a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo". Dessa maneira, mulher trans é mulher, aplicando-se em seu favor os dispositivos da lei mencionada.

Seguindo a antiga lição de Durkheim, observemos os fatos sociais para melhor compreendermos nossa sociedade, cientes de que novos fatos surgirão e novos direitos idem, a provocar a atuação de legisladores e de magistrados, que serão instados a responder, ainda que com atraso, às demandas de seu tempo.

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