Opinião

O dever de renegociar na recuperação judicial

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6 de outubro de 2022, 16h14

Quando um contrato é firmado, em regra, a expectativa das partes é a de que ele será cumprido nos termos negociados. Entretanto, é possível que as condições existentes no momento no qual foi realizado se alterem ao longo do tempo.

Assim, é possível resolver desequilíbrios de acordo com previsões contratuais preexistentes. No entanto, apenas contratos complexos preveem esse tipo de disposição.

Surge ainda a possibilidade de se requerer judicialmente a resolução do contrato por onerosidade excessiva ou a sua adequação, conforme previsão dos artigos 478 a 480 do Código Civil. Todavia, essa alternativa acaba por vezes condenando a relação contratual e frequentemente o fornecedor termina sendo o maior prejudicado pela quebra desse relacionamento, que pode lhe ser fatal. Assim, essa opção costuma ser utilizada somente em casos extremos.

Dessa forma, na maioria dos casos é provável que em havendo um desequilíbrio relevante para uma das partes, esta venha a formalizar ao outro contratante o problema, buscando uma negociação para ajustar os termos contratados.

As regras de experiência indicam que nesses casos há grande dificuldade em negociar, especialmente se o fornecimento for de fácil substituição, tendo em vista que a parte em vantagem entende que tal ato não é uma obrigação, mas uma faculdade.

Contudo tal avaliação é incorreta, pois não se trata de uma faculdade, mas uma obrigação contratual. O dever de renegociar está amparado nos deveres de consideração ou anexos do contrato, baseados na boa fé objetiva consagrada no artigo 422 do Código Civil, que impõe aos contratantes o dever de respeito e consideração à outra parte, devendo o favorecido pelo desequilíbrio honestamente analisar o pleito formulado, respondê-lo em tempo hábil e de fundamentadamente.

O dever de renegociar não implica necessidade de aceitação ou submissão ao pedido do outro, nem necessidade de chegar a um consenso sobre o tema, mas dever de meio de buscar uma solução em conjunto a fim de dar cumprimento ao contrato.

Essa regra de conduta consubstanciada no dever de renegociar poderia também, a nosso ver, ser estendida para as negociações realizadas no campo da recuperação judicial, esse grande processo de renegociação entre credores e empresa ou grupo de empresas que se encontram momentaneamente em crise financeira.

Para os não familiarizados com a recuperação judicial, após 60 dias do deferimento de seu processamento, as recuperandas, ou seja, as empresas em crise, devem apresentar um Plano de Recuperação Judicial (PRJ) que contemplará as condições de pagamento aos credores, que usualmente envolvem descontos e parcelamento.

Os credores têm oportunidade de se manifestar sobre o PRJ via objeção, mas tais manifestações são apenas uma formalidade que visam a realização da Assembleia Geral de Credores (AGC), pois caso não apresentada objeção, o PRJ pode ser homologado e a recuperação concedida na sequência.

Raras são as manifestações não padronizadas e que busquem de fato uma alteração razoável na forma de pagamento prevista no PRJ. Não é incomum que credores que sequer se manifestaram ao longo do processo compareçam à AGC e votem contrariamente ao plano sem requerer qualquer ajuste, o que inclusive seria contra seus próprios interesses, uma vez que a falência, quase sempre, é mais gravosa ao credor do que a recuperação judicial, eis que na falência — consequência imediata da não aprovação do PRJ — grande parte dos credores não recebe valor algum.

Assim, apesar de o processo de recuperação judicial ser mediado pelo Estado e haver regras estabelecidas na Lei 11.101/2005 (LRF), ele é na verdade uma ampla renegociação e, por essa razão, entendemos que os deveres anexos de consideração, devem ser observados pelos envolvidos.

Portanto, apesar do direito de reprovar o PRJ, o credor não deve fazê-lo arbitrariamente, ou, como acontece com frequência, sem sequer ter adentrado em negociação para a alteração das condições apresentadas no PRJ, o que torna ainda mais gravoso esse comportamento, que pode caracterizar abuso de direito, de acordo com o artigo 187 do Código Civil, tornando nulo o voto.

No bojo da reforma da LRF de 2020 foi trazida disposição específica acerca do abuso do direito de voto, introduzida no §6º do artigo 39, onde ficou estabelecido que: "O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem".

Entendemos que a disposição não conflita com o anteriormente exposto, pois o conceito de conveniência não poderia significar comportamento ilícito. A conveniência, a nosso ver, pode se caracterizar, por exemplo, num maior valor a ser recebido pelo credor na falência, ao invés de receber nos termos do PRJ, caso comum de instituições financeiras, o que justificaria o voto desfavorável, ainda que decisivo para a quebra.

Em conclusão, opinamos que o dever de renegociar também deve ser observado no âmbito da recuperação judicial, devendo as partes — credores e devedores — negociarem de boa fé as novas condições propostas e passíveis de atendimento, em prol do objetivo comum de cumprirem suas obrigações contratuais, ainda que de forma diferente das que inicialmente ajustadas.

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