Opinião

O piso salarial da enfermagem e a Doutrina da Legislação

Autor

  • Ian Fernandes de Castilhos

    é advogado especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi) e mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

4 de outubro de 2022, 17h09

A decisão cautelar do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso na ADI 7.222, referendada pelo Pleno no último dia 19 de setembro, gerou grande comoção nas redes sociais. A decisão citada suspendeu a Lei 14.434/2022, que estabelece o piso salarial para os profissionais de enfermagem. Dentre as razões da decisão é objeto de interesse da presente reflexão a falta de uma avaliação cuidadosa dos impactos da medida legislativa.

Aqui, não se pretende debater os seguintes pontos 1) fato de a decisão monocrática ter sido tomada em um domingo, logo antes da efetivação do pagamento com base no piso; 2) Os argumentos que não dizem respeito ao impacto legislativo; 3) a incoerência de uma decisão monocrática suspender os efeitos de uma legislação com apoio popular tão massivo; 4) a saturação dos argumentos sobre a qualidade da decisão legislativa por parte do ministro.

Muito embora uma Doutrina da Legislação (e consequentemente, da decisão legislativa) não esteja consolidada no Brasil, ela pode oferecer luzes ao debate. O fato é que um "processo legislativo ótimo", enquanto ideal regulativo, estabelece deveres substantivos de fundamentação do legislador. Tais deveres são exigências para a racionalidade da decisão, o respeito aos Direitos Fundamentais e o Estado democrático de Direito [1].

Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, Cristoph Gusy [2] sistematiza quais são os deveres de otimização (Optimierungspflichten) do legislador ao fundamentar a decisão legislativa, dentre os quais estão: a) o dever de estabelecer fatos; b) o dever de proporcionalidade; c) o dever de reavaliação; d) o dever de corrigir as legislações imperfeitas.

No que tange ao dever de estabelecer fatos, o mesmo se desdobra em duas questões relevantes. Primeiro, o legislador deve indicar quais fatos são relevantes para a decisão tomada. Em um segundo momento, deve determinar como esses fatos foram estabelecidos. Para tanto, deve-se recorrer ao debate com especialistas e técnicos da área para examinar o respectivo assunto sempre que necessário [3]. Os dados obtidos formulados devem ser levados em consideração. Neste aspecto é extremamente relevante os trabalhos preliminares em comissão temática, audiência públicas, etc.

Em relação ao dever de estabelecer fatos, é digna de nota a decisão do Tribunal Constitucional Alemão a respeito do Hartz IV onde a Corte entendeu que os cálculos dos benefícios deveriam ser amparados por critérios transparentes e de uma metodologia conclusiva [4]. Muito embora o Tribunal não possa estabelecer qual deve ser o método de cálculo, o legislador deve ser capaz de justificar os meios utilizados.

No caso em análise, o piso nacional para enfermeiros selecionado na proposta inicial foi de R$ 7.315. A lei aprovada previa como piso o valor de R$ 4.750. Entretanto, não fora demonstrado qual o critério econômico utilizado para que se chegue a esse valor em nenhum dos casos. Ocorre o estabelecimento de um piso salarial exige razões pragmáticas para que levem em consideração, por exemplo, a capacidade de pagamento dos hospitais públicos e privados.

Se por um lado, 450 câmaras municipais enviaram "moções" a favor da proposta, os representantes de hospitais privados se manifestaram pedindo maiores debates no âmbito das comissões temáticas [5]. A ampliação das discussões prévias seria uma condição razoável para a legitimação do piso salarial.

O ponto mais calamitoso se refere a inobservância do dever de prognose. Para Gusy [6], o este dever enseja algumas obrigações como, por exemplo, a avaliação o material técnico já existente e a documentação dos prognósticos de forma que possa ser verificado os potenciais efeitos da regulamentação. Seria relevante, por exemplo, a referências a laudos ou opiniões de especialistas nos processos. Os impactos previsíveis da legislação devem ser levados em consideração.

A Confederação das Santas Casas, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), por exemplo, formulou argumentos no sentido da falta de recursos financeiros para arcar com o aumento da despesa. Sustentou que desde o início da tabela SUS, que define a remuneração pelos serviços prestados pelas Santa Casas e hospitais filantrópicos para o sistema público, aumentou apenas 93,77%, enquanto o INPC foi 636,07% [7]. Deste modo, já fica estabelecido um potencial efeito danoso que enseja contra argumentos para a refutação ou a formulação propostas que tornem viável o pagamento do novo piso. Neste sentido, é bastante didático a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre a Mitbestimmungsergänzungsgesetz ao afirmar que o legislador deve esgotar as fontes de conhecimento disponíveis para poder avaliar os efeitos prováveis de sua regulamentação com a maior confiabilidade possível [8].

Porém, é necessário notar que tanto na doutrina quanto na jurisprudência o debate sobre a qualidade da deliberação é bastante recente. Algumas decisões notáveis do STF são 1) a ADI 5.127 que veda a inserção indevida de emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória de matérias com conteúdo estranho ao objeto originário (jabutis); 2) farta jurisprudência da possibilidade de controle de constitucionalidade no processo de emendas à Constituição, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico-constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso (Ag.Reg. MS 34.722/DF, por exemplo); 3) a ADI 4888 que entendei pela inconstitucionalidade formal no processo constituinte reformador quando eivada de vício a manifestação de vontade do parlamentar no curso do devido processo constituinte derivado, pela prática de ilícitos que infirmam a moralidade, a probidade administrativa e fragilizam a democracia representativa.

Existe, entretanto, decisões contrárias ao controle das razões do legislador como no caso da ADI 6968 em que o tribunal entendeu que não é possível o controle de constitucionalidade das razões concretas dadas para a urgência de uma medida provisória.

O que deve ser observado é que um debate tão sério e importante não pode ser realizado de forma leviana. A fundamentação deve ser específica, a partir de critérios objetivos e confiáveis. Audiências públicas e consulta a especialistas são necessárias. Inclusive, pode ser insuficiente o próprio piso de R$ 4.750 para enfermeiros, 70% desse valor para técnicos de enfermagem e 50% para auxiliares.

Os profissionais de enfermagem merecem a dignidade de garantias para condições de trabalho digna. Sem estes profissionais não seria possível falar de gestão de saúde pública. Ocorre que não basta decidir de forma arbitrária os benefícios, é necessário o embasamento empírico e pragmático para a definição do mesmo, de forma a acomodar todas as expectativas normativas envolvidas. Se a decisão for tomada no calor do momento e sem a reflexão sobre a sua manutenção, muito dificilmente ela será permanente. Neste sentido, não erra o ministro Barroso ao firmar que não basta que o legislador decida: é necessário que fundamente.


[1] WINTGENS, Luc. Legislation as an Object of Study of Legal Theory: Legisprudence in.

WINTGENS, Luc (org.). Legisprudence: A New Theoretical Approach to Legislation. Oxford: Hart Publishing, 2002., p. 32.

[2] GUSY, Christoph. Das Grundsetz als normative Gesetzgebungslehre? Das Grundgesetz als normative Gesetzgebungslehre? Zeitschrift für Rechtspolitik. nº 11, p. 291-299, 1985.

[3] GUSY, Christoph. Op. Cit., p.293.

[6] GUSY, Christoph. Op. Cit., p. 294.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi) e mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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