Opinião

Processo administrativo de consumo e os princípios constitucionais penais

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30 de novembro de 2022, 12h12

O processo administrativo sancionador de competência das entidades e órgãos de proteção e defesa do consumidor encontra-se disciplinado, em linhas gerais, pelo Capítulo VII do Código de Defesa do Consumidor ("Das Sanções Administrativas"), cujas disposições foram regulamentadas pelo Decreto Federal nº 2.181, de 20 de março de 1997, ao qual coube também a organização e estabelecimento de diretrizes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

A par da mencionada base legal, a função processante e sancionadora dos integrantes do SNDC, enquanto expressão do dever-poder administrativo de polícia (polícia administrativa), extrai seu fundamento de validade da própria Constituição da República de 1988, que, a um só tempo e de forma até então inédita na nossa história constitucional, consagrou a defesa do consumidor como direito fundamental e dever de proteção a cargo do Estado brasileiro, além de princípio conformador da ordem econômica (artigo 5º, inciso XXXII e artigo 170, inciso V).

Considerado, então, como instrumento jurídico para imposição de sanções nas hipóteses de infração às normas de defesa do consumidor, pode-se afirmar que o processo administrativo de consumo assume nítida feição persecutória e punitiva, inserindo-se no âmbito do denominado "Direito Administrativo Sancionador" (DAS), cujos fundamentos e principiologia aproximam-se, em boa medida, daqueles tradicionalmente relacionados ao direito penal e ao processo penal.

Não à toa, defende-se que o direito administrativo sancionador "deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal" [1], um verdadeiro subsistema penal, cuja incidência recai sobre comportamentos que caracterizem violações de deveres legais, almejando a tutela administrativa de interesses e bens jurídicos caros à sociedade, como a defesa do consumidor e a ordem econômica, dentre outros.

Oportuno destacar que, apesar de serem tidas como uma reação estatal intermediária, situando-se entre as sanções penais e a responsabilidade civil (terceira via), as penalidades administrativas destacam-se pela sua multifuncionalidade, assumindo uma importante função de prevenção (geral e especial), sem prejuízo de sua função eminentemente retributiva, ou seja, de mera punição diante de uma conduta infracional.

No que diz respeito propriamente à proteção administrativa do consumidor, a comunicação entre as normas penais e aquelas que estruturam o processo sancionador no âmbito do SNDC revela-se evidente, se considerarmos a adoção de institutos e conceitos jurídicos semelhantes ou até mesmo comuns, a exemplo da reincidência prevista nos artigos 63 e 64 do Código Penal e no artigo 27 do Decreto Federal nº 2.181/97 [2], das circunstâncias atenuantes e agravantes elencadas nos artigos 61 e 63 do Código Penal e nos artigos 25 e 26 do Decreto, além da continuidade delitiva constante do artigo 71 do Código Penal e incorporada recentemente pelo Decreto Federal nº 2.181/97 no artigo 40-B (artigo 40-B. Na hipótese de haver conexão temática entre os processos administrativos e as infrações terem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar similares, a autoridade processante poderá proceder à juntada de processos administrativos diferentes com vistas à racionalização dos recursos), bem como da insignificância [3], princípio largamente aplicado no âmbito penal e adotado, de forma explícita, pelo artigo 33, §4º, também do Decreto (Artigo 33 §4º Na hipótese de ser indicada a baixa lesão ao bem jurídico tutelado, inclusive em relação aos custos de persecução, a autoridade administrativa, mediante ato motivado, poderá deixar de instaurar processo administrativo sancionador).

Com efeito, impõe-se que as garantias penais estruturantes consagradas de forma explícita ou implícita pela nossa Constituição, tais como os princípios do devido processo legal (5º, inciso LIV, CRFB/88  "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"), do contraditório e da ampla defesa (5º, inciso LV, CRFB/88  "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"), da não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII, CRFB/88  "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória") e da vedação à dupla punição ou ne bis in idem, irradiem efeitos também para os processos persecutórios a cargo das entidades e órgãos de proteção e defesa do consumidor, conformando a sua atuação sancionadora e a produção do ato administrativo condenatório.

O princípio do devido processo legal e os corolários do contraditório e da ampla defesa encerram verdadeiras normas protetivas de direitos fundamentais, de caráter informador e conformador do poder do Estado, que orientam os processos, inclusive aqueles de natureza administrativa, à produção de decisões jurídicas justas, equitativas, adequadas e tempestivas. Nas palavras do professor Fredie Didier Jr., "o devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder" [4].

Logo, para que se possa falar em devido processo administrativo no âmbito do SNDC, é preciso que os órgãos e entidades dotados de função sancionadora atuem de forma a conferir máxima eficácia aos direitos fundamentais dos fornecedores, permitindo a manifestação sobre os fatos que lhes foram imputados, a participação na produção de todas as provas úteis à sua defesa, a apresentação de recursos contra eventuais condenações etc.

Quanto à presunção de inocência ou de não culpabilidade, preconiza-se a sua aplicação como regra de valoração das provas, isto é, na dimensão do in dubio pro reo, devendo a decisão administrativa que imponha algumas das sanções fixadas pelo artigo 56 do CDC basear-se em elementos probatórios suficientes e seguros que atestem, para além de qualquer dúvida razoável, a responsabilidade do fornecedor infrator.

Ao lado da noção de regra probatória, o princípio da não culpabilidade deve ser encarado como regra de tratamento do fornecedor ao longo de todo o trâmite administrativo, não podendo as autoridades julgadoras do SNDC tratá-lo como se fosse responsável pela infração que pende de apuração. Evidentemente, essa prerrogativa em favor do fornecedor não impede que contra ele sejam adotadas medidas de natureza cautelar diante da excepcional necessidade de se garantir a efetividade do processo administrativo.

Já o princípio ne bis in idem ou da vedação à dupla punição, derivado dos princípios da proporcionalidade e legalidade, impede que o fornecedor seja processado ou sancionado mais de uma vez por uma mesma infração ou fato punível, tendo como justificativa a violação das normas de defesa do consumidor. Segundo o professor Paulo Queiroz, "não é possível punir-se, mais de uma vez, uma mesma conduta (ação ou omissão) por um mesmo fundamento jurídico, sob pena de violação ao princípio ne bis in idem, que tem tríplice dimensão: penal, processual e executória, a impedir que o réu ou indiciado possa ser investigado, processado, condenado ou punido pelo mesmo fato" [5].

Salienta-se que a preocupação com a dupla punição dos fornecedores parece ter sido incorporada pelas normas que disciplinam o processo administrativo de consumo, tendo o Decreto Federal nº 2.181/97, em seus artigos 5º, parágrafo único [6], 15 [7] e 16 [8], previsto alguns mecanismos para mitigar ou evitar a instauração e prosseguimento de processos administrativos instaurados contra o mesmo fornecedor pelos mesmos fundamentos fáticos e jurídicos.

Portanto, diante desse inegável contexto de aproximação, mostra-se fundamental que as autoridades do SNDC zelem, na maior medida possível, pela observância dos direitos e garantias fundamentais penais também nos processos destinados à aplicação das sanções administrativas constantes do CDC, pois, em última análise, expressam o poder punitivo do Estado em face dos cidadãos fornecedores.

 


[1] STF, Rcl 41557, relator: Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, DJe 10/03/2021.

[2] Artigo 27. Considera-se reincidência a repetição de prática infrativa, de qualquer natureza, às normas de defesa do consumidor, punida por decisão administrativa irrecorrível.

Parágrafo único. Para efeito de reincidência, não prevalece a sanção anterior, se entre a data da decisão administrativa definitiva e aquela da prática posterior houver decorrido período de tempo superior a cinco anos.

[3] A respeito do princípio da insignificância, ensina o prof. Luiz Regis Prado (in Curso de direito penal brasileiro, parte geral: artigos 1º a 20  8ª ed. Ver., atual. e ampl.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 146): "A irrelevante lesão do bem jurídico protegido não justifica a imposição de uma pena, devendo excluir-se a tipicidade da conduta em caso de danos de pouca importância".

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento  17. ed., Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 63.

[5] QUEIROZ, Paulo. Ne bis idem. Site: Paulo Queiroz, 2022. Disponível em <https://www.pauloqueiroz.net/ne-bis-in-idem/>. Acesso em: 18/10/2022.

[6] Artigo 5º. […] Parágrafo único. Se instaurado mais de um processo administrativo por pessoas jurídicas de direito público distintas, para apuração de infração decorrente de um mesmo fato imputado ao mesmo fornecedor, eventual conflito de competência será dirimido pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que poderá ouvir o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, considerada a competência federativa para legislar sobre a respectiva atividade econômica.

[7] Artigo 15. O processo referente ao fornecedor de produtos ou de serviços que tenha sido acionado em mais de um Estado pelo mesmo fato gerador de prática infrativa poderá ser remetido ao órgão coordenador do SNDC pela autoridade máxima do sistema estadual.

§1º O órgão coordenador do SNDC apurará o fato e aplicará as sanções cabíveis, ouvido o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.

§2º Na hipótese de a autoridade máxima do sistema estadual optar por não encaminhar o processo, o fato deverá ser comunicado ao órgão coordenador do SNDC.

[8] Artigo 16. Nos casos de processos administrativos em trâmite em mais de um Estado, que envolvam interesses difusos ou coletivos, a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá avocá-los, ouvido o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, e as autoridades máximas dos sistemas estaduais.

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