Opinião

Análise a partir da ADI nº 1.842/RJ e do Estatuto da Metrópole

Autor

  • Douglas Estevam

    é advogado secretário-geral da Comissão de Saneamento e Recursos Hídricos da Subseção da Barra da Tijuca (OAB-RJ) assessor do Instituto Rio Metrópole (IRM) membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

30 de novembro de 2022, 15h17

O processo histórico de formação urbana após a revolução industrial está atrelado a fatores econômicos que reconfiguraram os modos de ocupação do espaço, cujas características essenciais se perpetuam até hoje. A urbanização a partir da crescente retirada do campo aos grandes centros — que então empregavam a mão de obra — assumiu características particulares de habitação e localização do mercado consumidor.

Desse modo, a oferta de trabalho, de bens e de serviços implicou uma subordinação entre centros urbanos mais complexos e aqueles de menor capacidade econômica, política e institucional. Essa atração que as grandes cidades exercem sobre aquelas menos importantes — do ponto de vista produtivo — delimita algumas áreas geográficas em que o fluxo populacional é evidente. Isso porque as pessoas precisam se deslocar de um centro urbano a outro para comprar roupa, comida, eletrodomésticos, trabalhar, estudar etc.

Essa relação de influência entre as cidades foi ainda mais acentuada com a variedade dos meios de transporte ao longo do tempo, cada vez mais cômodos, ágeis e baratos. Não só a facilidade de deslocamento foi perceptível, como também os meios de comunicação aboliram as limitações físicas que antes havia para o fluxo de informações e de serviços entre longas distâncias. Quer-se dizer, pois, que o avanço tecnológico foi um fator relevante para a integração das cidades, considerando a drástica redução dos custos de oportunidade que limitavam a ligação entre os centros urbanos.

Se se pensar, portanto, a partir da divisão político-territorial brasileira, há de se ver que alguns municípios, principalmente capitais, submetem as cidades vizinhas a uma relação de dependência, cujos munícipes são obrigados a ir ao grande centro para ter, exempli gratia, oferta de bens de consumo, mercado de trabalho ou acesso a bens culturais. Desde o fim do século passado [1], essa tem sido uma tendência irreversível nos arranjos populacionais do Brasil.

Assim, já alguns doutrinadores indicavam a emergência de novos polos administrativos afetando a federação brasileira [2], o que demandava uma releitura da distribuição de competências em nosso sistema constitucional, já que a república brasileira adota um federalismo de três níveis, cuja tensão entre interesse local e regional até hoje não foi suficientemente harmonizada à vista das novas demandas metropolitanas.

Nas últimas décadas, muitas tentativas estaduais de integração não lograram êxito, em razão do laconismo constitucional. Somente em 2013, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.842/RJ, a ordem constitucional brasileira passou a contar com diretrizes para o estabelecimento de regiões metropolitanas, cuja decisão do Supremo Tribunal Federal constituiu um marco para o direito metropolitano.

Nesse sentido, os efeitos de determinadas funções públicas muitas vezes podem extrapolar o limite municipal, cuja natureza jurídica passa a ser qualificada como de interesse comum no caso da instituição de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, nos termos do artigo 25, §3º, da CRFB. Dentre os comandos daquela decisão em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a última corte chancelou o caráter compulsório da integração federativa em unidades territoriais urbanas, vinculando a participação dos municípios [3], a fim de executar e planejar funções públicas de interesse comum.

Além disso, o STF também julgou ilícita a transferência da titularidade de tais competências ao Estado-membro, bem como a concentração do poder decisório nas mãos de um único ente federativo. Pelo contrário, as unidades territoriais urbanas devem adotar um modelo de cogestão [4], respeitando a divisão de responsabilidade entre os municípios e o Estado, ao passo que o poder concedente e a titularidade dos serviços públicos metropolitanos são atribuídos ao órgão colegiado formado por esses entes integrados.

Desde então, vicejam na federação brasileira algumas experiências, ainda incipientes, que vão dando forma administrativa — cada qual com suas características regionais — à organização, ao planejamento e à execução de funções públicas de interesse comum. Contudo, nem mesmo o Estatuto da Metrópole foi capaz de sanar os problemas institucionais relacionados à organização de unidades territoriais urbanas, visto que a Constituição de 1988 não deu muitas respostas sobre seu funcionamento. Um dos maiores entraves, por exemplo, é o autofinanciamento de suas políticas públicas [5], cuja ausência de orçamento obsta a consecução do interesse público.

Dessa forma, é importante ressaltar que as unidades territoriais urbanas não são instrumentos jurídicos que podem ser utilizados pelos entes estaduais a torto e a direito. Antes de tudo, elas são fenômenos geográficos que se configuram pela zona de influência que grandes centros urbanos exercem sobre aquelas cidades a seu redor, condicionando um fluxo expressivo de pessoas, bens e serviços. É por essa razão que o Estatuto da Metrópole define o termo metrópole como um "espaço urbano com continuidade territorial que, em razão de sua população e relevância política e socioeconômica, tem influência nacional ou sobre uma região que configure, no mínimo, a área de influência de uma capital regional, conforme os critérios adotados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)" [6].

Há, portanto, limites materiais (econômicos, geográficos, sociais etc.) para o reconhecimento até mesmo de uma microrregião, que não pode ser juridicamente reconhecida pela simples vontade de uma autoridade estatal em integrar competências constitucionais. Na verdade, a instituição jurídica da unidade territorial urbana existe para regular o conflito de interesses que há no municipalismo brasileiro diante das novas demandas sociais, mas não para desconfigurar a divisão político-administrativa da ordem constitucional de 1988. Em outras palavras, a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões depende de elementos que são anteriores ao Direito.

Infelizmente, desde a promulgação do novo Marco Legal do Saneamento Básico, uma miríade de unidades territoriais urbanas tem sido criada sem estudos necessários que fundamentem sua integração. Por esse motivo, paira não apenas o risco dessas estruturas interfederativas serem paralisadas pela falta de governança e compartilhamento de decisões — o que prejudicará as concessões regionalizadas — como também há o perigo muito maior dessas leis complementares e ordinárias, ao longo de arrastados anos, serem questionadas perante o Poder Judiciário, inviabilizando a universalização dos serviços públicos.


[1] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Arranjos populacionais e concentrações urbanas do Brasil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. p. 13. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=299700>. Acesso em 21 nov. 2022.

[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Novos pólos administrativos afetando a Federação Brasileira. In: BONAVIDES, Paulo et. al. As Tendências Atuais do Direito Público: Estudos em Homenagem ao Professor Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 88. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/19995UAst7BJ-lY0YQetg_kVCYBxt74qA/view?usp=sharing>. Acesso em 21 nov. 2022.

[3] ESTEVAM, Douglas. A titularidade das funções públicas de interesse comum. ConJur, 25 mar. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/douglas-estevam-titularidade-funcoes-interesse-comum>. Acesso em 21 nov. 2022.

[4] ALVES, Alaôr Caffé. Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Microrregiões: Novas Dimensões Constitucionais da Organização do Estado Brasileiro. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista/tes1.htm>. Acesso em 21 nov. 2022.

[5] SANTOS, Marcela de Oliveira. Interpretando o Estatuto da Metrópole: comentários sobre a Lei nº 13.089/2015. In: COSTA, Marco Aurélio; FAVARÃO, César Bruno; MARGUTI, Bárbara Oliveira (org.). Brasil metropolitano em foco: desafios à implementação do Estatuto da Metrópole. Brasília: IPEA, 2018. pp. 456-460. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8673>. Acesso em 21 nov. 2022.

[6] BRASIL. Estatuto da Metrópole: Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13089.htm>. Acesso em 21 nov. 2022.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado (OAB-RJ), assessor da Diretoria de Planejamento e Projetos do Instituto Rio Metrópole (IRM), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (Ujucarj).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!