Opinião

Conceito de "consciência multicultural" aplicado à advocacia

Autor

  • Laiana Carla Miranda Martins

    é advogada no Brasil e na Austrália formada em Direito pela Murdoch University (Austrália) especialista em Direito Comercial pelo Australian College of Law in house counsel do Departamento de Serviços Emergenciais do Estado de Western Australia (WA) e membro da Law Society of WA Women's Law Society (WA) e do Instituto Brasileiro de Direito Estrangeiro e Comparado.

29 de novembro de 2022, 19h43

Um assunto muito discutido, atualmente, nos legal boards (equivalente à OAB), law societies (associações de advogados), cursos de Direito e escolas de advocacia na Inglaterra e na Austrália é o conceito de "cross-cultural awareness" aplicado à advocacia. Em português, esse termo pode ser traduzido como "consciência multicultural" e, via de regra, significa compreender diferenças culturais para garantir uma melhor interação e comunicação entre pessoas de diferentes países. E um dos motivos é o fato de que esses dois países são destinos migratórios de um grande número de pessoas, que vão em busca de melhores oportunidades de trabalho e uma melhor condição de vida.

A consciência multicultural está tão em alta na Austrália, que faz parte do currículo obrigatório da escola da advocacia, na matéria de Lawyers' Professional Skills (que pode ser traduzido como "habilidades profissionais do advogado”) e na matéria de Legal Drafting (que seria o que chamados no Brasil de escrita jurídica). Entretanto, apesar de o Brasil não ser um destino migratório tão popular quanto a Inglaterra e a Austrália, a consciência multicultural na advocacia deve ser promovida e discutida por vários motivos. Um deles é o crescimento constante da globalização, intensificando as relações comerciais, econômicas e culturais entre países, o que resulta em um aumento não só da presença de empresas estrangeiras em território brasileiro, mas também da expansão de empresas brasileiras em território estrangeiro. Além disso, de acordo com informações do Observatório das Migrações Internacionais, o número de imigrantes no Brasil mais do que dobrou em dez anos, passando de 600 mil em 2010 para 1,3 milhão em 2020. Sendo assim, advogados brasileiros devem se preparar para atender essa crescente demanda de clientes estrangeiros e o crescimento do exercício da advocacia em âmbito internacional.

E ainda, não se pode negar que, para uma prestação de serviços advocatícios em âmbito internacional com excelência, entender os aspectos culturais é fundamental para o atendimento e para a satisfação de clientes estrangeiros, pois muitas dessas diferenças culturais podem interferir no exercício da advocacia em vários aspectos, como por exemplo:

  • A forma de tratamento a autoridades. Pessoas de diferentes culturas podem responder a um interrogatório policial de forma diferente, por exemplo.
  • Como um conflito é visto pela sociedade. Em algumas culturas, ser parte em uma ação judicial pode ser considerado algo negativo.
  • Formalidade. Enquanto em algumas culturas usa-se o primeiro nome para se referir a alguém no ambiente corporativo, em outras culturas usar o primeiro nome é considerado falta de respeito.
  • Diferenças com relação a hierarquia. Por exemplo, em algumas culturas, pessoas hierarquicamente inferiores podem considerar inadequado opinar sobre questões relevantes.
  • O valor do relacionamento. Em algumas culturas, conhecer a pessoa com quem se pretende firmar uma relação contratual pode ser mais importante do que o próprio contrato em si.
  • Envolvimento emocional. Em certas culturas, não se tem o costume de demonstrar e discutir emoções em público como em outras.
  • Comunicação. Enquanto em algumas culturas a comunicação é mais direta, em outras a comunicação é menos direta e mais contextualizada.
  • Linguagem corporal. Enquanto em algumas culturas o contato visual é indispensável, em outras, pode ser considerado invasivo.
  • Foco no indivíduo ou no grupo. Em algumas culturas, as necessidades do grupo prevalecem com relação às necessidades individuais, enquanto em outras ocorre o oposto.
  • Gerenciamento de risco. A tolerância para riscos também pode estar relacionada a aspectos culturais dos clientes.

Ou seja, nosso ponto de vista é único, e a forma como que vemos o mundo é baseada nas nossas próprias experiências de vida. E, desta forma, o que aceitamos como "norma" em nosso país pode ser diferente do que é aceito em outras culturas.

Além disso, é importante ressaltar que cross cultural awareness não pode ser confundido com estereótipos, preconceitos e generalizações, que muitas vezes não tem nenhuma fundamentação. Como por exemplo, "ingleses brancos não demonstram emoções" ou "os brasileiros estão sempre atrasados". Ao contrário de uma generalização preconceituosa, cross cultural awareness implica no respeito a diferentes culturas e ao entendimento de que esse tema envolve questões complexas. Diferente de preconceitos, a cross cultural awareness busca promover o respeito e a aceitação de outras culturas diferentes da nossa, ao invés da formação de um estereótipo resultado de um julgamento infundado.

O ponto central do conceito de cross cultural awareness é baseado na ideia de que pessoas de culturas diferentes podem ter uma visão com relação a sua própria cultura diferente daquela de pessoas que não pertencem a mesma cultura. Ou seja, o respeito a outras culturas implica no reconhecimento das diferenças individuais de cada cultura facilitando a interação e comunicação entre pessoas de origens diferentes. Enquanto por outro lado, generalizações e estereótipos dificultam as relações interpessoais e comerciais de pessoas de culturas diferentes.

Um exemplo de questões relacionadas a cross cultural awareness frequentemente discutidas na Austrália, país em que eu atuo como advogada, é a prestação de serviços da advocacia de família a casais de cultura muçulmana. Em algumas culturas, a mulher não pode permanecer sozinha em uma sala com um advogado, sendo necessário ser atendida por uma advogada caso queira se separar. Um outro exemplo é a prestação de serviços advocatícios a clientes asiáticos por advogados não asiáticos, considerando que estes tendem a dar mais credibilidade a profissionais de mesma origem. E ainda, a prestação de serviços advocatícios a clientes indígenas e as diferentes formas de resolução de conflitos disponíveis a estes clientes.

O autor Peter Alfandary, um dos maiores estudiosos sobre o tema, afirma que entender diferenças culturais é uma arte, uma ciência, e ainda, uma habilidade crucial a ser desenvolvida por advogados que pretendem trabalhar no contexto internacional. Em seu artigo para a edição de Outubro de 2017 da revista Globe Law and Business, Alfandary chama de "cultural inteligence" (CQ), que pode ser traduzido para o português como "inteligência cultural", a capacidade de compreender o impacto cultural em relações comerciais e prestação de serviços. E o motivo é simples, escritórios de advocacia podem captar ou perder clientes pelo fato de entender ou não a cultura dos países em que atuam ou dos clientes que atendem.

Consequentemente, estratégias para pôr em prática o conceito de cross-cultural awareness devem ser discutidas e implementadas por advogados que trabalham em âmbito internacional ou atendem clientes de culturas diferentes da sua. Abaixo, enumerei alguns dos principais "cultural hacks" que podem auxiliar advogados, operadores do direito e estudantes que pretendem seguir uma carreira internacional.

1. Entenda primeiro para ser entendido depois. Para pôr em prática esta premissa, Stephen R. Covey, no livro The 7 Habits os Highly Efective People (1989, pp. 240-241), propõe um exercício de escuta ativa em que a pessoa que está escutando deve focar toda a sua atenção de forma a entender com empatia o que está sendo dito, ao invés de apenas repetir palavras como: "sim", "correto" e "aham". E só então, focar nas formas de resolução do conflito.

2. Procure os indicadores de diferenças culturais. Desenvolva um instinto para identificar generalizações e estereótipos atribuídos a clientes de certas culturas para que você responda a essas diferenças culturais de forma adequada.

3. Aprenda sobre a cultura jurídica do país de seus clientes e especificamente da sua área de atuação. Por exemplo, se você irá prestar serviços na área de direito do trabalho para um cliente canadense, entre no website das cortes trabalhistas e dos tribunais de arbitragem e leia algumas decisões judiciais para você identificar semelhanças e diferenças entre as resoluções de conflitos na área trabalhista entre o Canadá e o seu país de atuação.

4. Identifique se o cliente prefere uma comunicação mais direta ou indireta. Em algumas culturas a comunicação é mais direta e o cliente prefere que o advogado apenas responda diretamente as suas dúvidas. Enquanto em outra, o cliente prefere uma resposta mais elaborada e uma fundamentação. E a melhor forma ter essa informação é perguntado ao cliente.

5. Identifique comportamentos apropriados e os que devem ser evitados. Evite generalização e estereótipos para não ofender o cliente acidentalmente.

6. Seja curioso e mente aberta. Tenha interesse em conhecer diferenças culturais, como as pessoas pensam e agem e os motivos por elas pensarem desta forma.

7. Pergunte ao cliente qual a melhor forma de comunicação. Ao invés de pedir o WhatsApp do cliente ou passar o seu número WhatsApp, pergunte ao cliente qual a sua forma preferida de comunicação.

8. Cuidados com as brincadeiras. Evite. Brincadeiras ou trocadilhos podem criarem conexão com algumas pessoas, porém, podem ser ofensivas e inadequadas para outras.

9. Dirija-se ao cliente formalmente. Algumas pessoas preferem ser chamadas pelo primeiro nome, porém, se você ainda não sabe como o cliente prefere ser chamado, utilize: "sr." (Mr.) ou "sra." (Mrs.) e o primeiro nome para se dirigir ao cliente pessoalmente, e o pronome de tratamento e o sobrenome para a comunicação escrita. Melhor pecar pelo excesso do que parecer mal-educado(a).

10. Ao cometer algum equívoco cultural, desculpe-se imediatamente. Muitas vezes um curto e simples "desculpe pelo equívoco" é a melhor formar de demonstrar ao cliente que você não conhecia uma determinada diferença cultural.

11. Se você irá se atrasar nem que seja cinco minutos, ligue para informar e se desculpe pelo atraso. Enquanto um atraso de cinco minutos é aceitável em algumas culturas, em outras, o mesmo atraso pode ser considerado um desrespeito.

12. Analise se os clientes daquela cultura tendem a tomar decisões de forma mais racional ou emocional. A partir desta análise, você poderá fornecer ao seu cliente as informações necessárias para ajudá-lo(a) no processo de tomada de decisões.

13. Eventos e network. A melhor forma de aprender sobre a cultura jurídica de um determinado local é se inserir naquele ambiente. Se possível, compareça a eventos, faça network ou utilize o LinkedIn e outras mídias sociais para conhecer advogados do local de origem de seus clientes.

14. Considere os aspectos culturais de seus clientes estrangeiros como "normais", enquanto os seus são os "diferentes". Esse simples gesto demonstra respeito as diferenças culturais e ajuda a construir confiança com o cliente. Por exemplo, você pode elaborar perguntas como: "No Brasil, muitos dos meus clientes gostam de conhecer as leis aplicadas aos seus casos, o que os clientes canadenses acham sobre essas informações? Necessárias ou dispensáveis?"

15. Sempre acuse o recebimento de qualquer e-mail ou mensagem. Mesmo quando você não irá ler e responder um e-mail ou mensagem naquele momento, informe que você os recebeu e que irá tratar o assunto com prioridade.

16. Ao responder um e-mail ou uma mensagem com uma perguntar de um cliente, responda primeiro e depois fundamente. Não são todos os clientes ou advogados que querem ler a fundamentação jurídica. Alguns querem uma resposta rápida, e se tiverem tempo irão todo o conteúdo. Não deixe a resposta para o final.

Cross-cultural awareness no exercício da advocacia no Brasil deve ser promovida e aprimorada, especialmente por advogados que trabalham em âmbito internacional. O estudo da inteligência multicultural já faz parte do currículo dos maiores escritórios de advocacia que atuam em âmbito internacional. Entretanto, esse conceito não é relevante somente para os maiores escritórios internacionais, devendo ser aprimorado por qualquer advogado que trabalhe internacionalmente. Pois essa habilidade não é opcional, mas essencial para o sucesso da advocacia internacional.

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  • é advogada no Brasil e na Austrália, formada em Direito pela Murdoch University (Austrália), especialista em Direito Comercial pelo Australian College of Law, in house counsel do Departamento de Serviços Emergenciais do Estado de Western Australia (WA) e membro da Law Society of WA, Women's Law Society (WA) e do Instituto Brasileiro de Direito Estrangeiro e Comparado.

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