Opinião

Processos administrativos sancionadores do mercado financeiro

Autores

  • Eduardo Bruzzi

    é sócio de Payments Banking Fintech & Crypto no BBL (Becker Bruzzi Lameirão Advogados) mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio visiting scholar pelo Institute for Law & Finance da Goethe-Universität de Frankfurt membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ professor da pós-graduação em Direito Regulatório da Uerj e autor e coordenador do livro Banking 4.0: Desafios jurídicos e regulatórios do novo paradigma bancário e de pagamentos.

  • Aylton Gonçalves

    é associado sênior da área consultiva regulatória de payments banking fintech & crypto do BBL Advogados mestrando em Direito pelo IDP professor da Escola Superior da Advocacia do DF (ESA-DF) membro das Comissões de Direito Bancário e de Direito Digital Tecnologias Disruptivas e Startups da OAB-DF pesquisador do Grupo de Pesquisa em Regulação Econômica e Direito Regulatório do IDP (Gedir/IDP).

29 de novembro de 2022, 20h37

Em 2021, o Banco Central proferiu decisões em 638 processos administrativos sancionadores (PAS) [1]; aplicou multas em montante total de R$ 76,4 milhões, do qual R$ 8,5 milhões foram para pessoas naturais e R$ 7 milhões foram para bancos [2]; e impôs 761 penalidades, das quais 656 multas, 99 inabilitações, cinco advertências e uma proibição para atuar [3].

Os chamativos números da atividade sancionadora do BC relacionam-se, em primeiro lugar, aos comandos do artigo 10, inciso IX, da Lei nº 4.595/64, e do artigo 3º, § 1º, da Lei nº 6.385/76, os quais apontam à competência da autarquia para a fiscalização da atividade dos agentes econômicos atuantes no Sistema Financeiro Nacional (SFN).

Atualmente, o processo administrativo sancionador instaurado no âmbito do BC possui dois marcos normativos: a Lei nº 13.506/2017 e a Resolução BCB nº 131/2021. Conforme o artigo 3º, § 1º, da Resolução BCB nº 131/2021, os bens jurídicos tutelados pelo Bacen, via PAS, são: a estabilidade e a solidez do Sistema Financeiro Nacional, do Sistema de Consórcios e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB); o regular funcionamento das instituições supervisionadas pelo BC; o adequado relacionamento das instituições supervisionadas pelo Bacen com clientes e usuários de produtos e de serviços financeiros; e a prevenção da utilização do SFN, do Sistema de Consórcios e do SPB para a prática de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores e para o financiamento do terrorismo.

Nota-se, assim, que a atuação do BC em PAS é elemento indispensável ao bom funcionamento da economia brasileira, em seus aspectos microeconômico e macroeconômico. Sem embargo disso — e, principalmente, levando-se em consideração o relevo da atividade de supervisão — é necessário que o processo administrativo sancionador se atente à principiologia que o rege, que tem fundamento na Ordem Constitucional cunhada a partir da promulgação da Constituição de 1988.

Tendo isso em vista, o artigo 2º da Resolução BCB nº 131 estabelece que o PAS obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, da finalidade, da motivação, da razoabilidade, da proporcionalidade, da moralidade, da ampla defesa, do contraditório, da segurança jurídica, do interesse público e da eficiência. Aqui já reside o fio condutor deste texto: o PAS que, inobstante sua indispensável importância, deixar de observar algum desses princípios deve ser considerado nulo.

Um importante exemplo da necessária observância dos preceitos do PAS é o ato administrativo da citação. Como indicam os artigos 19, §2º, e 20, §1º, ambos da Lei nº 13.506/2017, a instauração do processo administrativo sancionador ocorrerá por meio de citação, a qual deve conter: (1) a identificação do acusado; (2) a indicação dos fatos imputados ao acusado; (3) a finalidade da citação; (4) o prazo para a apresentação de defesa; (5) a informação da continuidade do processo, independentemente de seu comparecimento; (6) a indicação de local e horário para vista dos autos do processo; e (7) a obrigação de manter atualizados no BC seu endereço, seu telefone e seu endereço eletrônico, e também os de seu procurador, quando houver, e acompanhar o andamento do processo.

Em outras palavras, a citação — ato destinado a cientificar as pessoas naturais e jurídicas acusadas das irregularidades a elas imputadas e a facultar-lhes o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa [4] — deve informar com clareza as antijuricidades supostamente cometidas. É, portanto, essencial que, no ato de citação, conste o liame causal entre a conduta omissiva ou comissiva que se imputa às pessoas acusadas e os ilícitos administrativos que justificam a instauração do processo [5], uma vez que este elemento de conexão delimita a controvérsia para que se possa apresentar contra-argumentos de defesa.

Nesse sentido, quando da descoberta de que está sendo posta no polo passivo de um processo administrativo sancionador, com severas consequências à fruição de suas atividades cotidianas [6] presentes e futuras, a pessoa natural ou jurídica acusada precisa conhecer ao menos três elementos imprescindíveis à regularidade do ato citatório, quais sejam (1) a conduta; (2) o ilícito e (3) a relação causal [7], os quais apontam a lide para duas conclusões possíveis: a absolvição ou a condenação.

Para que as pessoas acusadas sejam absolvidas, o BC deve levar em consideração tanto a existência de dúvida [8] quanto de elementos "contra-indiciários" [9]. De outro lado, para fins de condenação, o BCB precisa se certificar que o rito do PAS foi cumprido adequadamente, desde a instauração do processo, realizada por meio da citação.

Parece-nos bastante adequada a esse contexto passagem da obra Direito Sancionador: Sistema Financeiro Nacional, organizada por Fábio Medina Osório, na qual se esclarece que "a peça intimatória pode tornar-se inepta não apenas quando deixar de indicar as normas jurídicas violadas, que compõem o substrato do dever juridicamente exigível, mas também quando não descreve o comportamento proibido, optando pela acusação genérica e desprovida de lastro descritivo de natureza objetiva" [10].

Quando eivada de vício, a citação, ato que assegura o exercício do direito de defesa pelo administrado, deve ser considerada para fins da declaração de nulidade do PAS, uma vez que todos os procedimentos subsequentes do processo decorrem desse ato administrativo.

A nulidade por inobservância do devido processo legal em âmbito administrativo necessita de pronto acolhimento da autoridade de supervisão bancária, que deve imediatamente extinguir o processo, sem prejuízo de que, caso assim entenda, sempre observando os prazos prescricionais aplicáveis à espécie, realize adequadamente nova citação, contendo todos os elementos necessários à conformidade legal-regulatória.

Caso, entretanto, o BC deixe de reconhecer a nulidade da citação que não cumpre requisitos formais do contraditório e da ampla defesa, a pessoa acusada pode submeter a matéria à apreciação do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), via recurso com efeito devolutivo e suspensivo, no prazo de 30 dias corridos, contados da intimação da decisão condenatória [11].

Por final, se, por qualquer eventualidade, o CRSFN não reconhecer a nulidade, ou optar-se por não interpor recurso administrativo, é possível explorar a via judicial, por meio, por exemplo, do ajuizamento de ação anulatória endereçada à Justiça Federal. No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, destaca-se o teor do HC 94.601/CE, de relatoria do ministro Celso de Mello, no qual se consignou que: "o exame da cláusula referente ao 'due process of law' permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (…) (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação (…) (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica)" [12]. Especificamente quanto ao processo administrativo, as decisões atuais do Superior Tribunal de Justiça levam em consideração o entendimento firmado em sede do clássico julgamento do MS 645/DF, que contou com o ministro Vicente Cernicchiaro como relator, fixando-se que "a sanção administrativa deve ser precedida do contraditório e ampla defesa. Inteligência do artigo 5.°, LV, da CF/88".

Conclusivamente, é necessário indicar que a insubsistência dos termos da citação em processos administrativos sancionadores, quando não trouxer consigo a insuperável barreira da nulidade, apontará sem dúvidas à inconsistência das alegações de irregularidades administrativas, devendo a autoridade supervisora (BC) e a autoridade revisora (CRSFN) sopesarem a necessidade e a dosimetria de possível condenação.


[4] Nos termos do art. 11, caput, da Resolução BCB nº 131, de 20 de agosto de 2021.

[5] Neste ponto, é importante indicar que, nos termos do art. 3º, da Resolução BCB nº 131, de 20 de agosto de 2021, o Banco Central do Brasil considerará as seguintes diretrizes para deixar de instaurar processo administrativo sancionador: (i) baixa lesão ao bem jurídico tutelado; e (ii) efetividade e eficiência do instrumento ou da medida de supervisão alternativo utilizado tanto para o saneamento da irregularidade administrativa quanto para dissuasão da reincidência.

[6] Como explica Fábio Medina Osório: "consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo". Osório, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador (p. 118). Thomson Reuters Revista dos Tribunais. Edição do Kindle.

[7] Ao analisar a Apelação nº. 0036952-20.2004.4.01.3800, em 13/1/2016, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região apoiou-se no parecer elaborado pelo atual Ministro do STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva, quando exercia a função de Procurador da Fazenda Nacional junto ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, para afastar a condenação imposta em sede de sentença de mérito a BH DISTRIBUIDORA DE TÍTULOS E VALORES MOBILIÁRIOS LTDA. — BH DTVM, BUSINESS COMMODITIES CORRETORA MERCANTIAL LTDA., EMPRESA NACIONAL DE COMÉRCIO, RÉDITO E PARTICIPAÇÃO S/A — ENCORPAR, FERNANDO DE FARIA RESENDE e JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA.: Concluiu-se pela presença de fortes indícios, que, entretanto, não são suficientes para demonstrar a causalidade (atribuída a alguém, especificamente) dos alegados danos. Apropriada, aqui, a transcrição de parecer do então Procurador da Fazenda Nacional (hoje eminente ministro do STJ) Ricardo Villas Bôas Cuevas: "ora, o princípio da causalidade é a pedra de toque de todo o direito punitivo, penal ou administrativo, posto que delimita a punição do injusto às situações em que se possa individualizar uma conduta (causa) e precisar um dano ou um perigo a um bem jurídico (resultado), afastando assim as noções pré-modernas de universalidade do injusto e de indeterminação de seus resultados, mais afeitas a certas concepções de ética que às ordens democráticas de direito contemporâneas. Nestas, a determinação da responsabilidade pessoas só pode ocorrer quando se comprovar uma relação de causalidade baseada na certeza e necessidade".

[8] Nos termos do art. 52 da Portaria MF nº 68, de 26 de fevereiro de 2016, é possível a aplicação do artigo 386, VI, do Código de Processo Penal ("existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou mesmo de houver fundada dúvida sobre sua existência"). Entre 27.5.2015 e 26.7.2016, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), analisando os recursos nº. 13.286 e 13.982, admitiu a aplicação do instituto para absolver os recorrentes, em função da presença de dúvidas razoáveis sobre a materialidade e autoria. No mesmo sentido, vale citar o Parecer PGFN nº. 18/2017, emitido nos autos do Recurso nº 13.518 (Banco Indusval e outros versus BACEN, julgado pelo CRSFN em 7.2.2017: (…) "Porém, a sessão de julgamento projetou uma sombra de dúvida sobre essa convicção da Procuradoria – e não custa recordar que a incerteza aproveita aos acusados. Deveras, a tenacidade da sustentação oral feita pelos acusados despertou a PGFN para novas perspectivas sobre a decisão. Em que pese o curto intervalo durante o qual ocorrem os trabalhos de julgamento, foi possível reconsiderar a questão concernente aos fatos anteriormente tidos como caracterizadores de simulação".

[9] "Contra-indícios são os fatos indicadores dos quais se obtém uma interferência contrária àquela fornecida por outros indícios. Quando coexistem indícios e 'contra-indícios' relativamente ao fato desconhecido que se investiga, sem que seja possível desprezar-se razoavelmente uns ou outros, em virtude de sua qualidade intrínseca, a conclusão não é firme nem clara, razão pela qual não pode levar ao pleno convencimento da certeza do fato. É que se rompe a conexão e a unidade do conjunto, desaparecendo sua concordância, e, consequentemente, as inferências que deles se obtém logicamente deixam de convergir ao mesmo resultado". MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, A Prova Por Indícios no Processo Penal, Editora Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2009 pgs. 100-101.

[10] MEDINA OSÓRIO, Fábio (coord.). Direito sancionador: sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 24.

[11] Nos termos do art. 29 da Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017.

[12] No mesmo sentido: ACO 2661 MC-Ref, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 13/5/2015, processo eletrônico DJe 9/6/2015; MS 32.375, rel. min. Cármen Lúcia, 2.a T., j. 30/9/2014, processo eletrônico DJe 20/10/2014; MS 23.550, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ acórdão: min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 4/4/2001, DJ 31/10/2001.

Autores

  • é sócio do BBL Advogados e head da área consultiva regulatória de Payments, Banking, Fintech & Crypto, mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio, visiting scholar pelo Institute for Law & Finance da Goethe-Universität de Frankfurt, membro da Comissão de Direito Público da OAB-RJ, professor da pós-graduação em Direito Regulatório da Uerj, autor e coordenador do livro Banking 4.0: Desafios jurídicos e regulatórios do novo paradigma bancário e de pagamentos.

  • é associado sênior da área consultiva regulatória de Payments, Banking, Fintech & Crypto do BBL Advogados, mestrando em Direito pelo IDP, pós-graduado em Direito Societário (Ebradi), Direito Processual Civil (IDP) e Direito Digital e Proteção de Dados (Ebradi) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Regulação Econômica e Direito Regulatório do IDP (Gedir/IDP).

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