Opinião

Reflexos do Decreto 11.249 ao microssistema legal da transação tributária

Autor

  • Pedro Ludovico Teixeira

    é advogado da Bento Muniz Advocacia pesquisador do Grupo de Pesquisa de Direito Administrativo Sancionador do IDP graduado pelo IDP com graduação parcial pela Universidade Nova de Lisboa e pós-graduando em Direito Público pela PUC-RS.

28 de novembro de 2022, 15h14

O Decreto nº 11.249, publicado no último dia 11 de novembro, de autoria do presidente da República, regulamentou o "procedimento de oferta de créditos líquidos e certos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado" perante à União, conformando as disposições inscritas no artigo 100, §11º, da Constituição.

Embora o escopo do decreto abranja diferentes modalidades de utilização destes créditos, o presente artigo restringirá sua análise aos impactos da autorização da "quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa da União, inclusive em transação resolutiva de litígio", que, a princípio, motivará a edição de "ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional do Ministério da Economia disporá sobre a utilização dos créditos líquidos e certos de que trata este Decreto para quitação ou amortização de débitos inscritos em dívida ativa da União, inclusive em transação resolutiva de litígio", nos termos do artigo 2º, I e do artigo 6º deste ato normativo.

Feitas essas ressalvas, para que seja realizada uma análise devidamente fundamentada de quais impactos tal regulamentação surtirá no complexo de normas legais da transação tributária, hoje, existentes, é necessário rever e identificar as normas específicas e como dialogam para quitação de débitos com a utilização de créditos líquidos e certos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado.  

Lei nº 13.988/2020
A Lei nº 13.988/2020, fruto da conversão legal da Medida Provisória do Contribuinte Legal 899 de 2019, veio à tona como mudança paradigmática no sistema multiportas [1](multi-door courthouse) perante o fisco federal, dando voz à antiga redação do Código Tributário Nacional que prevê a transação tributária como um dos mecanismos de extinção do crédito tributário (artigo 156, III, da Lei nº 5.172/1966).

Em termos práticos, a transação tributária trata-se de "instrumento para extinção do crédito tributário, tendo caráter formal enquanto seu conteúdo correspondente às demais causas extintivas, veiculando remissão, anistia, compensação, anulação de parte do crédito e o compromisso de pagamento ou dação de pagamento", conforme bem afirma Leandro Paulsen [2].

Este procedimento consensual inovador, que permitiu o Fisco Federal "sentar na mesa" para negociar com os contribuintes, respeitado o "juízo de oportunidade e conveniência" da União (artigo 1º, §1º, da Lei federal nº 13.988/2020), vem produzindo resultados satisfatórios [3], tanto na conclusão de acordos que permitam encontrar solução a crise fiscal de contribuintes devedores, bem como à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional na recuperação de débitos tidos como irrecuperáveis ou de difícil recuperação.

Com a evolução e a efetivação prática desde procedimento negocial administrativo, a Lei federal nº 14.375 de 21 de junho de 2022 trouxe importantes novidades à transação tributária, com fundamento na autorização legal estabelecida pelo artigo 100, §11º, I, da CF, que possibilita a "quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio", com a utilização de créditos líquidos e certos decorrentes de decisão transitada em julgado.

O artigo 11, V, da Lei nº 13.988/2020, incluído pela Lei nº 14.375/2022, autorizou que a transação possibilite "o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros".

Com a previsão legal estabelecida em norma tributária específica, observados os ditames constitucionais relacionados ao tema, a ausência de regulamentação por parte da União reclamou que a Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional tornasse a norma efetiva no campo negocial das transações.

Portaria PGFN/ME nº 6.757, de 29 de julho de 2022
Dando concretude a legislação, foi editada a Portaria PGFN/ME Nº 6.757, de 29 de julho de 2022, revogando a Portaria PGFN nº 9.917, de 14 de abril de 2020, que já tratava da utilização de precatórios, delimitando em seus artigos 78 a 83 [4] o procedimento a ser seguido para utilização de precatórios e créditos líquidos e certos transitados em julgado nas transações tributárias.

Desde então, surgiu uma dúvida entre os juristas: Seria constitucional o estabelecimento de regras detalhadas e específicas por meio de edição de Portaria especificando a utilização de precatórios e créditos liquidados para fins de quitação de débitos tributários inscritos em dívida ativa?

Além disso, poderia uma portaria "regulamentar", na prática, o artigo 100, §11º, I, da Constituição?

O Decreto nº 11.249/2022 parece responder de forma objetiva a tais questionamentos, por meio da sua deferência ao microssistema legal específico da transação tributária.

No que se refere aos questionamentos da constitucionalidade dos artigos 78 a 83 da Portaria PGFN/ME Nº 6.757, de 29 de julho de 2022, inclusive feitos com extrema tecnicidade neste portal jurídico [5] por Ravi Peixoto e Antonio Carlos de Souza Jr., o decreto foi muito claro em seu artigo 6º ao estabelecer tão exclusivamente que "ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional  e do Ministério da Economia disporá sobre a utilização dos créditos líquidos e certos de que trata este Decreto para quitação ou amortização de débitos inscritos em dívida ativa da União, inclusive em transação resolutiva de litígio".

Quanto a legalidade da portaria "regulamentar", na prática, o artigo 100, §11º, I, da Constituição Federal, considerando que o decreto recém publicado dá autoridade ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional  para regulamentar a matéria, ainda que "a portaria seja ato administrativo geral com grau inferior aos decretos", conforme bem afirma Egon Bockmann Moreira [6],  inexiste ilegalidade ou inconstitucionalidade em razão da regulamentação já ter sido realizada.

Portanto, o decreto, claramente, é deferente a regulamentação que venha a ser realizada por parte do Procurador-Geral da Fazenda Nacional e do Ministério da Economia.

Como a Portaria PGFN/ME Nº 6.757, de 29 de julho de 2022 já especifica como deve ser realizada a utilização de créditos líquidos e certos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado para quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa da União, resta claro que o Decreto faz deferência ao microssistema legal de transação tributária, reafirmando a sua constitucionalidade.

 


[1] (…) "A aludida acepção, concebida por Frank Sander, Professor  Emérito da Harvard Law School, foi construída a partir de metáfora segundo a qual, no átrio de um fórum, haveria múltiplas portas, sendo que, a depender da questão litigiosa, seriam as partes encaminhadas à conciliação, à mediação, à arbitragem ou à justiça estatal". CAVALCANTI, Eduardo Muniz Machado. Processo Tributário. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2022, p. 490, , apud Cf. ANDERS, Frank. The Pound Conference: Perspectives on Justice in the Future. St Paul: West Pub., 1979.

[2] PAULSEN, Leandro. Comentários sobre transação tributária à luz da Lei 13.988/20. In: FILHO, Claudio Xavier Seefelder, et al. (coord.). Comentários sobre Transação Tributária. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 316.

[3]  (…) "De acordo com um estudo realizado por pesquisadores do Insper, até 1º de julho de 2022, incluídos os descontos, foram transacionados R$ 184,3 bilhões em débitos, gerando uma arrecadação de R$ 14,5 bilhões". https://www.sindifisco.org.br/noticias/mais-de-1-milhao-de-contribuintes-ja-optaram-pela-transacao-tributaria

[4] Artigo 78. O devedor poderá utilizar créditos líquidos e certos em desfavor da União, reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado, ou precatórios federais, próprios ou de terceiros, para amortizar ou liquidar saldo devedor transacionado, observado o disposto neste capítulo.

Artigo 79. Para utilização de créditos líquidos e certos em desfavor da União, reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado, ou de precatório federal próprio ou de terceiro, o devedor deverá:

I – ter formalizado a transação, por adesão ou individual, inclusive liquidando eventual entrada mínima nos casos em que exigida como condição para adesão;

II – ceder fiduciariamente o direito creditório à União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, através de Escritura Pública lavrada no Registro de Títulos e Documentos;

III – apresentar cópia da petição, devidamente protocolada no processo originário do crédito, informando sua cessão fiduciária à União mediante Escritura Pública, com pedido para que o juiz:

a) insira a União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, como beneficiária do ofício requisitório, caso ainda não elaborado pelo juízo da execução do crédito;

b) comunique a cessão ao tribunal para que, quando do depósito, coloque os valores à sua disposição, com o objetivo de liberar o crédito diretamente em favor da União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, caso já apresentado o ofício requisitório.

IV – apresentar cópia da decisão que deferiu os pedidos formulados nos termos do inciso anterior, bem como do ofício requisitório ou da comunicação ao tribunal, quando for o caso;

V – apresentar certidão atestando, no caso de precatórios de terceiros, que o devedor é o único beneficiário;

VI – concordar com o pagamento de eventual saldo devedor remanescente, quando o valor depositado de que trata o artigo 82 desta Portaria não for suficiente para liquidação integral do saldo devedor transacionado, corrigido até a data do efetivo pagamento.

§1º A Escritura Pública de cessão fiduciária deverá conter:

a) a identificação completa do cedente e do cessionário, sendo neste último caso a União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional;

b) o valor total do precatório federal ou do crédito líquido e certo em desfavor da União, reconhecido em decisão transitada em julgado, bem como os valores que serão utilizados para liquidação do saldo devedor transacionado;

c) a identificação completa do processo originário do crédito e das respectivas partes e beneficiários, bem como, quando for o caso, do precatório e do órgão judicial responsável por sua expedição;

d) declaração de que os valores poderão ser imediatamente utilizados, quando depositados, para amortizar ou liquidar débitos inscritos em dívida ativa da União.

e) cláusula de reversão da cessão quando remanescer saldo a ser devolvido ao devedor-cedente, nos termos do artigo 83.

§2º Tratando-se de precatório de terceiros cedidos ao devedor, a Escritura Pública deverá conter a identificação completa dos terceiros-beneficiários primários e intermediários, se houver.

§3º Em caso de precatório já depositado, ficam dispensadas as exigências dos incisos II a V do caput deste artigo, podendo o respectivo valor ser utilizado para amortização ou liquidação do saldo devedor transacionado.

Artigo 80. A cessão fiduciária de créditos líquidos e certos em desfavor da União, reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado, ou de precatório próprios ou de terceiros, poderá ocorrer total ou parcialmente, ainda que em valor superior aos débitos inscritos em dívida ativa da União e do FGTS.

Parágrafo único. Consideram-se créditos líquidos e certos em desfavor da União, reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado, o valor líquido devido ao beneficiário, descontados eventuais tributos incidentes na fonte.

Artigo 81. Cumpridas as formalidades de que tratam os artigos antecedentes, o valor dos créditos ou dos precatórios cedidos fiduciariamente à União serão associados aos acordos firmados pelo contribuinte, suspendendo-se os pagamentos quando o valor total dos créditos for suficiente para liquidação integral do saldo devedor transacionado.

§1º Quando o valor dos créditos ou dos precatórios cedidos fiduciariamente à União não for suficiente para a liquidação integral do saldo devedor transacionado, o contribuinte deverá continuar o pagamento das parcelas, recalculadas em função do saldo devedor remanescente.

§2º O procedimento descrito no caput não se aplica aos acordos firmados para liquidação de créditos do FGTS, oportunidade em que os valores somente serão aproveitados quando depositados e devidamente liberados pelo juízo requisitante do precatório para amortização do saldo devedor transacionado.

Artigo 82. Depositado o precatório em conta à disposição do juízo, nos termos do artigo 43 da Resolução CJF nº 405, de 9 de junho de 2016, a unidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional responsável deverá solicitar a liberação dos valores para liquidação do saldo transacionado, apresentando os documentos de arrecadação correspondentes.

Parágrafo único. Em qualquer caso, compete ao contribuinte liquidar eventual saldo devedor remanescente do procedimento de liquidação de que trata o caput deste artigo.

Artigo 83. Remanescendo saldo de precatório depositado, os valores poderão ser devolvidos ao devedor-cedente, desde que não existam outras inscrições ativas do devedor.

[6] "As portarias (…) estão num nível quaternário de hierarquia normativa (Constituição, leis, decretos e, depois, portarias). Sua nomenclatura técnica é disciplinada nos decretos 9.191/2017 (elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento de atos normativos ao Presidente da República pelos Ministros de Estado) e 10.139/2019 (revisão e consolidação dos atos normativos inferiores a decreto). Elas são atos normativos internos que servem a que os superiores hierárquicos deem ordens apenas a seus subordinados, com o intuito de uniformizar procedimentos ou estabelecer diretrizes para o exercício de competências". MOREIRA, Egon Bockmann. Acessar em: https://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2021/11/09.11.21-Duas-portarias-degeneradas-JOTA.pdf.

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  • é advogado da Bento Muniz Advocacia, pesquisador do Grupo de Pesquisa de Direito Administrativo Sancionador do IDP, graduado pelo IDP com graduação parcial pela Universidade Nova de Lisboa e pós-graduando em Direito Público pela PUC-RS.

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