Opinião

Papel do órgão jurídico na nova Lei de Licitações e a convergência de funções

Autor

28 de novembro de 2022, 9h11

Diante das atribuições conferidas pela nova Lei de Licitações em relação ao órgão consultivo, ou órgão de assessoramento jurídico, como assim preferiu denominar o novel diploma legal, há que se perquirir qual o seu papel, seu real alcance e sentido, de modo a harmonizar entre si as suas atribuições, e compatibilizá-las com o ordenamento jurídico.

A Lei 8.666/93, de forma sucinta, traz como atribuição do órgão de assessoria, a aprovação das minutas de editais, contratos, acordos ou convênios, bem como a elaboração de pareceres sobre a dispensa e inexigibilidade, nos termos do seu artigo 38.

Por sua vez, a nova Lei de Licitações estabelece que, ao final da fase preparatória, ou seja, antes da divulgação do edital de licitação, o processo seguirá para o órgão de assessoramento jurídico, "que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação" (artigo 52). Aqui, o parecer terá um papel notadamente saneador da instrução da fase preparatória.

Percebe-se que a intenção do legislador foi de expressamente afirmar o papel de controle de legalidade do órgão jurídico, e não apenas sobre o edital respectivo em si, mas também uma análise jurídica sobre toda a contratação, ampliando assim a os contornos da antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93), ainda que, na prática do âmbito federal, por exemplo, já houvesse uma verificação preliminar dos vários atos instrutórios vinculados ao edital, como, por exemplo, em razão da adoção de listas de verificação da AGU.

É patente, pois, a ampliação do papel do órgão de assessoramento na sua análise jurídica, que passa a ser de controle prévio de legalidade da contratação, e não mais de aprovação apenas das minutas de editais.

Todavia, há que se refletir sobre qual o real alcance desse papel de controle da advocacia pública, que fora encetado na nova lei de forma ampliativa, e não mais como mero órgão auxiliar ao controle [1].

Neste passo, impende perquirir inicialmente sobre os limites objetivos desse controle. Em que pese a sua abrangência envolver todo o respectivo processo, há que se ressalvar que ele (o controle) ocorre mediante análise jurídica da contratação, ou seja, deve-se limitar aos elementos jurídicos da contratação, na esteira do artigo 53, caput, combinado com o seu § 1º, inciso II, como advertem Guilherme Carvalho e Luiz Felipe Simões, quando asseveram: "todos os elementos indispensáveis, porém de conteúdo jurídico" [2].

Por tal razão, não se insere na atribuição do órgão jurídico, em regra, a análise do conteúdo técnico dos respectivos atos e documentos que instruem o processo licitatório, e cuja responsabilidade limita-se aos seus emissores. Nessa esteira, colhe-se o seguinte enunciado do Tribunal de Contas da União (TCU): "Não é da competência do parecerista jurídico a avaliação de aspectos técnicos para adoção do regime de contratação integrada (art. 9º da Lei 12.462/2011)" [3] .

O manual de boas práticas consultivas da AGU, na mesma toada, já orienta de modo a evitar o posicionamento sobre temas não jurídicos, tal como o técnico, através da sua orientação BPC nº 7 [4].

Por outro lado, tem-se por inarredável o controle de juridicidade, e não apenas de legalidade, ou seja, o controle fundamenta-se nas regras e princípios do ordenamento, e não mais somente na lei em si [5]. Destaque-se que a própria Lei 14.133/21 positivou expressamente vários princípios, dentre eles, economicidade, segregação de funções, planejamento.

Não obstante a reafirmação inovadora da sua natureza enquanto órgão de controle, como já aqui afirmado, deve-se atentar, para interpretação e aplicação dos citados dispositivos, que o papel da advocacia pública, órgão competente para o exercício desse assessoramento jurídico quando regularmente existente, tem por bússola inarredável o comando do artigo 131, da Constituição Federal, que lhe confere a função de consultoria e assessoramento jurídico [6].

Ou seja, o papel de controle da advocacia pública, e, portanto, do órgão de assessoramento jurídico na nova lei de licitações, deve ser visto por um viés propositivo, porquanto não lhe incumbe apenas apontar falhas e vícios, mas também propor alternativas e soluções, quando possível e desde que previstas no ordenamento, a fim de viabilizar as políticas públicas.

Tanto assim o é, que, segundo o paradigma de controle adotado pela nova lei, do Instituto de Auditores Internacional — Institute of Internal Auditors  (IIA) —, a segunda linha, onde consta a assessoria jurídica, teria a missão de "fornecer expertise complementar, apoio, monitoramento e questionamento quanto ao gerenciamento de riscos", "o que demonstra o compromisso daqueles que estão nessa linha com o planejamento e os objetivos estratégicos da organização", como bem destaca o professor Rafael Sergio Oliveira [7].

É que ao dispor sobre o controle das contratações, a Lei 14.133 estabelece as unidades de assessoramento jurídico como órgãos de segunda linha de defesa, ao lado do controle interno do próprio órgão. Neste ponto, cumpre esclarecer que o artigo 169 estabelece três linhas de defesa de controle, iniciando com os agentes públicos, como primeira linha, passando pela citada segunda linha, e indo até a terceira linha, que compreende o órgão central de controle interno e o tribunal de contas.

Registre-se que o § 3º do artigo 169 já estabelece as balizas de atuação dos citados órgãos de controle relacionados, nos quais se inclui o assessoramento jurídico, sem fazer distinção entre eles, dispondo, em suma, que diante de simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento, enquanto nos casos de dano à administração, efetuarão as providências necessárias para a apuração das infrações administrativas, inclusive com a remessa do caso ao ministério público competente para apuração dos respectivos ilícitos.

De outra banda, em alinhamento ao seu papel constitucional, há previsão, em vários dispositivos da novel lei, dessa função intrínseca de assessoramento jurídico do referido órgão, e que portanto reforçam esse viés propositivo, como no artigo 8º, §3º, da possibilidade de apoio à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos, ou a função de auxiliar a instituição de modelos de minutas de editais (artigo 19, IV), e ainda de auxiliar o fiscal do contrato, devendo, para tanto, "dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual" (artigo 168, parágrafo único).

Deste modo, revela-se ai o seu caráter hibrido, ou de "dupla dimensão", como denomina percucientemente Marçal Justen Filho [8], pelo qual se somam, num mesmo órgão, o papel de controle ao de assessoramento jurídico.

É que ao exercer a função de controle prévio do processo, ao final da fase preparatória, o parecerista deve ter em consideração também o seu viés propositivo, de apoio na construção da solução jurídica mais adequada, como aqui demonstrado. De outro giro, quando exerce seu papel típico de assessoramento, no apoio a diversos agentes, como, por exemplo, agente de contratação ou comissão de contratação, e em razão da incumbência de órgão de controle que lhe fora atribuída, a sua manifestação escrita não poderá olvidar de alertar sobre eventuais ilegalidades, desde que lhes sejam evidentes e tenham relação com o objeto da consulta sob sua análise, “não se limitando a meramente chancelar decisões administrativas”, mas sim "manifestando-se contrariamente à prática da injuridicidade, orientando-a a tomar atitude diversa da pretendida", como obtempera o professor Ronny Charles [9].

Destarte, ao contrário até do que se possa até imaginar, ante a uma eventual suposta antinomia entre as expressões terminológicas assessorar e controlar, percebe-se que o assessoramento e o controle na novel Lei de Licitações não se contrapõem, ou se excluem, mas, pelo contrário, devem se somar e convergir, sempre que possível, visando conferir segurança jurídica [10] à atuação administrativa e à realização das políticas públicas [11], conexas ao interesse público.

 


[1] No âmbito federal, já havia a previsão como tal, por força do art. 11, VI, "b", da LC 73/93, há expressamente a atribuição do exame prévio dos atos pelos quais se vá reconhecer a inexigibilidade, ou decidir a dispensa, de licitação.

[2] Parecer jurídico e a nova Lei de Licitações (parte 1). In https://www.conjur.com.br/2021-jun-11/licitacoes-contratos-parecer-juridico-lei-licitacoes.

[3] Informativo de licitações e contratos 417/2021. Acórdão 1492/2021.

[4] "A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento". Manual de boas práticas consultivas da AGU, 4ª edição, 2016, p. 32.

[5] Conferir a respeito, Diego de Figueiredo Moreira Neto, em Curso de Direito Administrativo, ed. Forense, 15ª edição, capítulo X.

[6] Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

[7] OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Belo Horizonte: Forum, 2022.

[8] Justen Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e contratações administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo. Thomson Reuters Brasil Revista dos Tribunais, 2021. P. 642.

[9] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Lei de Licitações públicas comentadas. 12 ed. Juspodivm. 2021.

[10] A Lei 14.133 expressamente refere-se a segurança jurídica necessária para as medidas a serem implementadas, visando a efetivação do controle das contratações, no § 1º, do seu art. 169, além de arrolá-lo dentre os princípios, no seu art. 5º.

[11] "O exercício da atividade jurídica de assessoramento e consultoria dá-se em razão de consulta apresentada pelo assessorado e se realiza mediante exteriorização de manifestação voltada a conferir segurança jurídica à atuação administrativa, visando à efetivação das políticas públicas" Manual de boas práticas consultivas da AGU, 4ª edição, 2016, p. 58.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!