Opinião

Presença negra na advocacia pública ainda é assunto negligenciado

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27 de novembro de 2022, 13h15

Dados obtidos com base nas leis federal e estaduais de acesso à informação entre setembro e outubro de 2022 revelam que a presença negra nas instituições responsáveis pela advocacia pública [1] do país ainda é assunto negligenciado. A maioria das unidades federadas às quais foram endereçados pedidos de informação não dispunha de elementos numéricos acerca da cor/raça de advogadas e advogados públicos [2], e as que lograram levantá-los dão conta de que o número de pessoas pretas e pardas em seus quadros é diminuto [3], a despeito de elas corresponderem a 56% da população brasileira, segundo o IBGE.

No âmbito federal, a presença negra na Advocacia Geral da União é de 17,63%; na Procuradoria Geral do Banco Central, de 10,62%; na Procuradoria Geral Federal, de 15,38%; e na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, de 15,45%.

A Procuradoria Geral do Estado de Rio Grande do Sul é a que apresenta o menor percentual de procuradoras e procuradores negros (3,41%), seguida da de São Paulo (PGE-SP), instituição que merecerá aqui análise mais detida, seja porque é o órgão da advocacia pública que congrega o maior contingente de profissionais entre os 26 estados e o Distrito Federal, seja porque os dados fornecidos a pedido pelo Serviço de Informações ao Cidadão (SIC-SP) sobre a cor/raça e o número, inclusive de provimentos em confiança, das servidoras e servidores públicos em exercício em todas as secretarias, autarquias, fundações e universidades públicas do Estado permitem evidenciar, a partir de comparativos, a relevância do tema das políticas públicas de inclusão e equidade racial.

Em 1º de setembro de 2022, a PGE-SP somava 813 membros em atividade: 454 procuradores (33 deles negros) e 359 procuradoras (17 delas negras). Entre os que ocupavam cargos em comissão, 42 eram homens (dois deles negros) e 39, mulheres (uma delas negra); em funções de confiança, existiam 87 homens (quatro deles negros) e 57 mulheres (quatro delas negras). Ou seja, dos 813 procuradores e procuradoras, somente 50 eram negros e negras [4] (6,15%); e, dos 225 cargos e funções de confiança, apenas 11 eram providos por pessoas pretas e pardas (4,88%), o que denota, além da falta de diversidade e igualdade racial, que, quanto mais alto é o nível hierárquico e mais destacadas as atribuições, menor é a presença negra, diferentemente do que ocorre com pessoas autodeclaradas brancas, que compunham 87,57% da carreira (712 membros) e 90,22% dos cargos e funções de confiança (203 procuradoras e procuradores).

A propósito, cabe indagar, em rápida digressão: por qual razão as pessoas negras, mesmo quando exitosas em concursos públicos, não são dignas de "confiança" para ocupar posições comissionadas? Se o são, o que explica a sua quase ausência nos postos de direção, chefia e assessoramento [5]? Na PGE-SP, assim como em todos os órgãos da advocacia pública, os seus membros situam-se teoricamente em pé de igualdade funcional, pois, para o ingresso na carreira, é necessária a aprovação em concurso público de provas e títulos, e para a posse, entre outros requisitos objetivos, a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Logo, o que poderia representar uma barreira à ascensão funcional de pessoas negras — o desnível de escolaridade —, não se verifica na Advocacia Pública — muito pelo contrário, visto que, segundo o SIC-SP, 32 dos 50 procuradores negros são pós-graduados (22 especialistas, cinco mestres e xinco doutores [6]). Então, insista-se: a que se deve o escasso número de pessoas pretas e pardas em cargos e funções de confiança?

Os dados estatísticos da PGE-SP dissonam não apenas dos das outras instituições da advocacia pública nacional, mas também — e muito — da média do funcionalismo público paulista: dos 543.722 servidores estaduais em atividade em 1º de setembro de 2022, 25,76% eram negros; e, dos 17.823 cargos e funções de confiança, 23,25% eram ocupados por pessoas pretas e pardas.

Outrossim, diversamente da Defensoria Pública e do Ministério Público paulistas, a PGE-SP não adota cotas raciais [7]. A Deliberação CSDP nº 400, de 27 de maio de 2022 [8], do Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo, prevê, no artigo 1º, I a III, reserva de vagas nos concursos públicos de ingresso na carreira de defensor público para pessoas negras e indígenas (30%), para pessoas com deficiência (5%) e para pessoas trans (2%); e, no artigo 3º, prescreve que caberá à instituição "implementar, na medida do possível, medidas afirmativas na contratação de cargos comissionados e nos contratos de prestação de serviços contínuos". Por sua vez, a Resolução nº 676/2011-PGJ-CPJ, de 10 de janeiro de 2011, reserva aos candidatos negros 20% dos cargos abertos em concurso público de ingresso na carreira do Ministério Público (artigo 5º [9]).

E não poderia ser diferente. O Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem a cidadania e a dignidade da pessoa humana entre os seus fundamentos (artigo 1º, II e III); estabelece como objetivos fundamentais, a par de outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, I e IV); e repudia a desigualdade (artigos 3º, III, 5º, caput e I, 7º, XX, XXX e XXXIV, 14, caput, 39, § 3º, 43, caput, 150, II, 165, § 7º, 170, VII, 196, 206, I, 212-A, V, c, 226, § 5º), o racismo (artigos 4º, VIII, e 5º, XLII) e o tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, III).

Para além disso, o dever de implementação, promoção e proteção dos direitos e garantias de igualdade e diversidade racial pelas instituições que integram o sistema jurídico fundamenta-se, especialmente, conforme a dicção do artigo 5º, §§ 2º e 3º, do Texto Constitucional, em atos internacionais, como a recém-promulgada Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, aprovada com status de emenda constitucional, que preceitua: "Os Estados Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos. Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo" (artigo 5). E, no artigo 9, prescreve: "Os Estados Partes comprometem-se a garantir que seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população, de acordo com o alcance desta Convenção".

Refletir, como dito alhures [10], é reproduzir a imagem, espelhar. O sistema jurídico deve, por conseguinte, ser o retrato da sociedade brasileira, e à advocacia pública incumbe diversificar os seus quadros funcionais e o provimento de seus cargos e funções de confiança, atenta às cores/raças compositivas do tecido social brasileiro e ao imperativo de combate ao racismo, particularmente o institucional, que, nas palavras de Adilson José Moreira, encerra "ações, políticas ou ideologias que produzem desvantagens relativas para grupos raciais minoritários ou vantagens para grupos raciais majoritários quando comparadas", e que "podem englobar a intenção de excluir grupos minoritários de posições dentro de instituições, a aceitação de minorias nas instituições em posições subalternas, o impedimento que estas possam alcançar posições de comando, a preferência por pessoas brancas dos círculos de relacionamento pessoal e as exigências de qualificação não relacionadas com as funções do cargo, com o objetivo de excluir minorias" [11]. "No caso do racismo institucional — Silvio Almeida esclarece —, o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas — o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidade etc. — e instituições privadas — por exemplo, diretoria de empresas — depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos" [12].

Convertidas em mandamento constitucional [13], as ações afirmativas preordenam-se a assegurar o acesso de pessoas negras a cargos públicos efetivos e comissionados e a democratizar e dinamizar o sistema jurídico sob o prisma racial. Diante desse novel cenário jurídico-constitucional, não há mais como as instituições que integram o sistema de justiça nacional seguirem inconstitucionalmente omissas na adoção, implementação e efetivação de políticas públicas e de medidas legais e administrativas com as quais o País se comprometeu internacionalmente, voltadas ao combate ao racismo e à promoção da diversidade e igualdade racial, que não devem limitar-se à mera previsão de reserva de vagas para pessoas negras, mas ao seu efetivo preenchimento, a partir de imprescindíveis aperfeiçoamentos nas regras de concursos de ingresso, como a formação de bancas examinadoras com pessoas pretas e pardas e paridade de gênero, a vedação de nota de corte ou cláusula de barreira para candidato(a)s negro(a)s aprovado(a)s com nota mínima na prova objetiva seletiva, a instituição de comissões de heteroidentificação, para confirmar a condição de negro(a)s do(a)s candidato(a)s, e a inclusão do Direito Antidiscriminatório dentre as disciplinas obrigatórias [14].

Por fim, tem lugar e pertinência a exortação de Lívia Sant'Anna Vaz e Chiara Ramos: "Essa reflexão e esse compromisso precisam estar na pauta dos órgãos do sistema de justiça, incapazes de efetivamente garantir o direito à igualdade racial se, eles próprios, não olham para dentro, no sentido de reconhecer e enfrentar o racismo institucional que impede pessoas negras de acessarem seus quadros" [15] e, acrescente-se, progredirem nas respectivas carreiras.

 


[1] De acordo com os arts. 131 e 132 da Constituição da República, a advocacia pública é uma das instituições que integram as funções essenciais à justiça, responsável pela representação judicial e extrajudicial da União, dos estados e do Distrito Federal e pela consultoria e assessoramento jurídicos dos respectivos entes da federação.

[2] Alagoas, Amapá, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins.

[3] As três exceções foram as Procuradorias Gerais dos Estados do Acre (40,81%), Amazonas (90,9%) e Roraima (48,78%), que, no entanto, não acusaram a presença de preto(a)s em seus quadros. Nas demais, a presença negra variou entre 3,41% e 20,75%, cabendo esclarecer que, como o serviço de informações do Estado da Bahia ficou suspenso entre 1º de julho até o fim das eleições, em outubro de 2022, não foi possível obter dados da respectiva Procuradoria Geral.

[4] Sendo 1 preta (0,12%), 6 pretos (0,74%), 16 pardas (1,97%) e 27 pardos (3,32%).

[5] Em nota técnica sobre o perfil racial do serviço civil ativo do Executivo Federal (1999-2020), Tatiana Dias Silva e Felix Lopez afirmam que a sub-representação das pessoas negras é uma constante: "A participação de negros e negras no corpo burocrático do Executivo civil federal expande-se ao longo da série histórica, ainda que minoritários e sub-representados em praticamente todos os indicadores e recortes, quando se compara a participação desse grupo com o total da população e da força de trabalho. Quando se consideram as posições de maior remuneração, qualificação ou autoridade e poder, a presença de servidores negros é ainda mais reduzida, em particular, das mulheres negras" (https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10673/1/NT_49_Diest_PerfilRacial.pdf – acesso em 20 nov 2022).

[6] Comparativamente, o número de especialistas e doutores negros na PGE-SP é superior ao de não negros — 44% a 40%, no caso de especialistas, e 10% a 5,6%, no caso de doutores. Já quanto aos titulados mestres, o percentual é o mesmo (10%).

[7] No processo legislativo que resultou na promulgação da Lei Complementar Estadual nº 1.270, de 25 de agosto de 2015, que reorganiza a PGE-SP, define suas atribuições e as de seus órgãos e dispõe sobre o regime jurídico de integrantes da carreira, foi apresentada a emenda nº 794, que propunha a reserva "aos negros, no mínimo, [de] 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos para o provimento de cargos de Procurador do Estado". Referida proposição, no entanto, em que pese a histórica disparidade numérica entre pessoas pretas, pardas e brancas na carreira de Procurador do Estado, foi rejeitada pela Assembleia Legislativa.

[8] Precedentemente, o art. 4º, caput, da Deliberação CSDP nº 307, de 19 de novembro de 2014, estabelecia: "Pelo período de 10 (dez) anos serão reservadas aos candidatos negros e indígenas 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos para ingresso na carreira de Defensor Público".

[9] Referido dispositivo foi incluído pela Resolução nº 1.031/2017-CPJ, de 18 de maio de 2017.

[10] Quinto constitucional: diversidade e igualdade na OAB, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-21/opiniao-quinto-constitucional-diversidade-igualdade-oab, acesso em 20 nov 2022.

[11] Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 458 e 459. Sem grifos no original.

[12] Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020, p. 40 e 41.

[13] Vaz, Lívia Sant'Anna. Cotas raciais. São Paulo: Jandaíra, 2022, p. 120 a 143 e 163 a 175.

[14] Neste sentido, as Resoluções CNJ nºs 423, de 5 de outubro de 2021, e 457, de 27 de abril de 2022.

[15] A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021, p. 196.

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