Opinião

Importância da vida associativa e o lugar da advocacia pública municipal

Autor

  • Gustavo Machado Tavares

    é procurador do município do Recife presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) e conselheiro dos Institutos dos Advogados de Pernambuco (IAP).

23 de novembro de 2022, 6h32

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie escreveu o livro O Perigo da uma História Única, fruto da adaptação de uma palestra que proferiu no TED Talk em julho de 2009.

Trata-se um livro pequeno, de poucas páginas, mas que traz profundas reflexões, ainda mais se o analisarmos e o lermos após a pandemia da Covid-19 e tudo que ela que nos trouxe e nos impactou: a fragilidade da vida, as perdas, as dores afetivas, os dramas familiares, dentre tantos outros.

Narra a escritora nigeriana Chimamanda que, quando criança, lia apenas livros estrangeiros que retratavam homens brancos de olhos azuis, que brincavam na neve e tomavam cerveja de gengibre.

Mais tarde, ainda criança, Chimamanda começara a escrever seus próprios textos nos quais reproduziam personagens brancos de olhos azuis, que brincavam na neve e que tomavam cerveja de gengibre, muito embora ela não soubesse o que era cerveja de gengibre e tampouco o sabor, e na Nigéria não tivesse neve e ela nunca tivesse saído do seu país.

Oportunamente e quando Chimamanda já estava um pouco mais velha, ela conheceu e teve acesso a livros escritos por autores nigerianos e que retratavam o seu povo, seus costumes e suas culturas. Isso fez com que a escritora fosse "salva" de ter uma única histórica sobre o que os livros são e representam.

Ainda Chimamanda, em seu livro, fala que na sua casa trabalhava um adolescente de nome Fide e que ele morava em um vilarejo rural próximo. A mãe da escritora nigeriana, ao falar sobre Fide, apenas o retratava como um filho de uma família muito pobre, sem adentrar em quaisquer detalhes.

Certo dia Chimamanda foi à casa de Fide, oportunidade na qual foi presenteada com um artesanato — um cesto de palha pintado com desenhos lindos — feito pelo irmão de Fide. Chimamanda ficou espantada, porque para ela a ideia de Fide e sua família se resumiam que eram muitos pobres, de tal sorte que era impossível para Chimamanda imaginá-los algo além de pobres.

Essas duas passagens, além de tantas outras narradas no livro, demonstram o quanto somos vulneráveis e impressionáveis a histórias e ao "perigo de uma história única": o perigo da construção de uma história definitiva, peremptória e única sobre um povo, sobre um agrupamento de pessoas.

Para Chimamanda: "É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma só coisa, sem parar, e é isso que esse povo se torna" [1].

E mais. Chimamanda ressalta a impossibilidade de ser falar em história única sem atrelar à relação de poder: "O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva" [2].

E isso, nas palavras da escritora, "A história única cria estereótipos, e o problema dos estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletas. Eles fazem com que uma história se torne a única história" [3].

Dito isso, pode-se indagar: mas qual a relação do Perigo de uma História Única e a importância da vida associativa? A vida associativa traz o equilíbrio de histórias, equilíbrio de versões, de maneira que se possa ter, tanto quanto possível, narrativas diferentes sobre um grupo de pessoas, sobre o seu papel, sobre a sua função, sobre o que proporcionam em termos de distribuição de serviços públicos, etc…

É nessa perspectiva que é importante destacar o papel da Associação Nacional dos Procuradores Municipais. Uma das missões da ANPM é fazer o contraponto, é trazer o equilíbrio de histórias, a fim de que uma versão sobre os procuradores e procuradoras municipais não seja contada de maneira distorcida por outrem e que essa narrativa não se torne única.

É isso que a ANPM faz há mais de 24 anos quando fala sobre nós, sobre a nossa carreira, sobre a instituição advocacia pública municipal, através de diversas maneiras: seja no diálogo e atuação junto à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, seja junto ao Poder Judiciário — notadamente no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça —, seja junto ao Poder Executivo. Ou ainda junto aos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público e Tribunal de Contas). E também perante instituições privadas e veículos de comunicação.

E o que somos advocacia pública? Somos uma função essencial à Justiça. Mas o que isso significa? Implica dizer que atuamos na implementação das políticas públicas, na concretização de direitos fundamentais e na preservação do Estado de Direito.

E somos, para além disso, advocacia pública municipal. Somos advogados e advogadas públicas onde a vida acontece, onde a vida pulsa, onde o interesse público é mais imediato e as necessidades coletivas e individuais se fazem mais presentes: nas cidades.

A procuradora e o procurador municipal, no exercício de suas atribuições constitucionais, são os agentes públicos quem entregam ao gestor ou à gestora municipal as soluções jurídicas adequadas e aptas à concretização das necessidades da população, por meio de atuações na assessoria e na consultoria jurídica, no contencioso administrativo e judicial ou ainda no controle de juridicidade dos atos administrativos.

É dizer, são as advogadas e advogados públicos quem fornecem os caminhos legais e viáveis para que o prefeito ou prefeita, dentro da legítima esfera de discricionariedade administrativa e a partir da plataforma política eleita pelo povo através do voto, efetive políticas públicas.

Nessa toada, uma das razões da advocacia pública municipal, se não a maior e mais importante, consiste em ser um instrumento de concretização de direitos fundamentais.

Exatamente por isso o Supremo Tribunal Federal já assentou: "Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito" (RE 663.696/MG, processado sob o regime de repercussão geral).

E, se o "fio condutor da Advocacia Pública é ser uma função indispensável de efetivação dos direitos fundamentais" [4], a nossa história tem e há de ser narrada por nós e sobre nós: função essencial à Justiça no lugar — municípios — onde as pessoas vivem e onde a Justiça deve ser fazer mais presente. É aqui, advocacia pública municipal, o nosso lugar no mundo.


[1] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.

[2] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.

[3] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.

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