Opinião

Embaraço à fiscalização e o emprego da Lei Anticorrupção

Autor

  • David Rechulski

    é advogado fundador e sócio titular do escritório David Rechulski Advogados especializado em Direito Penal Empresarial e Público.

22 de novembro de 2022, 6h03

Ao introduzir no ordenamento brasileiro a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) o ideário do legislador foi claramente a responsabilização objetiva administrativa e civil da pessoa jurídica por atos de corrupção. A análise dos antecedentes e das motivações que ensejaram a criação da norma (interpretação histórica) evidenciou que sua gênese e alcance guardam específica correlação com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção, não se desdobrando, portanto, para condutas outras alheias a essa temática.

E não haveria como ser diferente. Na medida em que as leis são pensadas para organizar a sociedade de seu tempo, estabelecendo direitos, obrigações, proibições e punições, não há como dissociar sua interpretação do contexto em que emana a vontade do legislador. O mais antigo código de leis, o Código de Hamurabi, surgido em 1.800 a.C. na Babilônia, possuía 282 artigos e, muito embora buscasse equalizar valores e equilibrar ações e consequências, a parte das leis criminais permaneceu baseada no princípio do Talião (sinônimo de retaliação), mais conhecido como a lei do "olho por olho, dente por dente", fazendo com que a pena de morte fosse largamente aplicada. Hamurabi era um grande guerreiro, conquistador de povos, sendo natural que sua vocação se refletisse nas leis que promulgou, daí porque se diz que a lei está no espírito do legislador. A título de exemplo e distinção, esse código previa que "Se uma casa mal construída causa a morte de um filho do dono da casa, então o filho do construtor da casa será condenado à morte" (seção 230), enquanto que o Torah, provavelmente escrito no século XII, que deriva da palavra em hebraico yãrãh — instrua, dirija, mostre —, previa que "Pais não devem ser condenados à morte por conta dos filhos, e os filhos não devem ser condenados à morte por conta dos pais" (Deut. 23:15).

Portanto, desde os primórdios, as leis refletem o momento, a cultura e as necessidades de determinada sociedade, fatores que norteiam o espírito do legislador em sua concepção, daí ser regra indelével de hermenêutica do âmbito da correta aplicabilidade de qualquer lei, que eventuais dúvidas ou contradições sejam dissipadas utilizando-se, prima facie, da interpretação histórica, não podendo ser diferente com a Lei 12.846/13, justamente chamada de Lei Anticorrupção.

Mas qual a questão aqui? Começou a ocorrer um claro e sistemático desvirtuamento na aplicação do inciso V, do seu artigo 5º, que prevê o embaraço à fiscalização. Diversos órgãos de controle, fazendo mais valia de uma interpretação meramente gramatical deste ponto da norma, vem sustentando cuidar a lei de quaisquer atos potencialmente lesivos à administração pública, mesmo que SEM atos de corrupção ou o envolvimento de agentes públicos.

Isso é uma impropriedade que não pode prevalecer e tornar-se regra geral! A partir da interpretação sistemática dos artigos da Lei Anticorrupção, é necessário se conciliar cada parte, cada fração, com o todo normativo, verificando-se que basicamente são duas as espécies de atos lesivos autônomos tipificados no seu artigo 5º: a corrupção em sentido estrito, caracterizada pela promessa, oferecimento ou dação de vantagem indevida a agente público (inciso I), e as fraudes em licitações e contratos administrativos (inciso IV). Já os demais incisos do artigo 5º preveem condutas dependentes dessas anteriores, e que, portanto, não existem delas desvinculadas. Logo, o ato lesivo de dificultar atividade de fiscalização ou investigação previsto no inciso V não pode ser interpretado isoladamente, sem conexão com o todo logicamente articulado na Lei Anticorrupção, e que, pois, atrela o embaraço à prática da corrupção ou à apuração de fraude nas licitações e nos contratos administrativos.

À luz de uma interpretação sociológica, as relações sociais contemporâneas que ensejaram a idealização da Lei Anticorrupção, tem-se que sua finalidade foi incrementar, por meio de regras inovadoras de responsabilização, o combate à corrupção empresarial no seio da sociedade brasileira — em que o jeitinho se afigura quase como axioma cultural —, percepção essa corroborada pelas operações policiais contra corrupção nos anos que se seguiram à sua promulgação.

Assim, sustentar que a Lei 12.846/2013 encamparia no inciso V de seu artigo 5º qualquer agir que trouxesse óbice à fiscalização ou à investigação de agentes públicos fora de um cenário envolvendo corrupção, carece de sentido lógico.

Considerando que o objetivo da Lei Anticorrupção não foi criar norma geral de combate a quaisquer atos ilícitos contra a administração pública, mas sim daqueles que envolvem particularmente a corrupção de agentes públicos por intermédio de empresas, é um tanto claro, evidente mesmo, que não tem guarida a interpretação elástica de que o tipo de embaraço à fiscalização abrange, por exemplo, a de natureza tributária ou de trânsito, exceto, claro, se se almejar obstaculizá-las mediante o oferecimento de vantagem indevida ao agente fiscalizador. A mera não apresentação de documento a uma agência reguladora, causando embaraço fiscalizatório, justificaria punição pela Lei Anticorrupção?

Portanto, a pretensão de alguns órgãos de controle de responsabilizar PJs via Lei Anticorrupção, submetendo-lhes às graves penas nesta previstas, em casos SEM corrupção, evidentemente resulta de uma interpretação deturpada da norma e contrária aos métodos hermenêuticos consagrados.

Admitida essa interpretação, estar-se-á em muitos casos punindo-se duas vezes o mesmo fato pela mesma conduta, o que não só implica em preterição ao princípio da especialidade, como viola a proibição do bis in idem.

Logo, é preciso racionalizar o emprego da Lei Anticorrupção sob pena de uma aplicação desvirtuada e descontextualizada culminar em sua deslegitimação.

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