Opinião

Constitucionalização, autodeterminação e dados: notas sobre poder

Autor

  • Matheus Martins

    é advogado em uma startup de tecnologia entusiasta das relações existentes entre Direito e tecnologia e coautor dos livros Lei Geral de Proteção de Dados – uma Análise Reflexiva e de Impactos Tecnológicos na Sociedade.

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21 de novembro de 2022, 7h04

O poder sempre foi tema central no Direito. Afinal, é a partir de sua ideia que engendramos todo o constructo teórico que permite que esta ciência possa, dentre outras coisas, ter efetividade. Além disso, é a partir da ideia de Poder — o Poder Constituinte Originário, por assim dizer — que se fundam as normas que criam um Estado.

Em outras palavras: a temática do poder é cara ao Direito.

Mas além deste estar intrinsicamente relacionado aos fundamentos das ciências jurídicas, é salutar lembrar que o Direito necessita — por sua vez — fazer uso desse instrumento cum grano salis, sob o risco de se tornar o seu exato oposto: o Direito necessita de poder, mas o poder em excesso destrói o Direito.

Nesse sentido, importante afirmar que o Direito não somente deve ojerizar o poderio excessivo — ou, em palavras outras, o abuso de poder — dentro de sua própria estrutura, visto que o desestruturaria — mas também deve combater o excesso de poder que, dentro das dinâmicas sociais, é exercido pelos diversos atores da sociedade.

É sob esta base que repousa a lógica da justiça: equanimidade entre os diversos fatores que compõe o palco de nossas vidas. Exemplos disso são os órgãos reguladores que tem por atribuição averiguar se fusões e aquisições de empresas geram um desequilíbrio de poder ou, também a título de exemplo, questões que são levadas ao judiciário para decidir se esta ou aquela empresa procedeu com concorrência desleal etc.

O próprio Direito Constitucional tem seus primórdios na ideia de que a Constituição nasce justamente como forma de limitar o poder dos governantes.

Na contemporaneidade, o Direito tem ainda mais um desafio: limitar o poder daqueles que — em razão de sua posição no tabuleiro social — tem sob sua batuta dados pessoais de terceiros, podendo influenciar diversas áreas da vida desses indivíduos — em especial a formação de suas próprias personalidades, lhe impondo, de maneira sorrateira, gostos e opiniões e angariando, assim, ainda mais poder.

Por isso é de suma importância a inserção do direito à proteção de dados no arcabouço constitucional. A partir dessa proteção, a autodeterminação informativa — fundamento da disciplina de proteção de dados — é alçada a importante ferramenta contra o excesso de poder, sendo — por fim — uma aliada na garantia que todos têm de formar suas próprias peculiaridades, opiniões ou, em outras palavras, sua própria persona.

Notas sobre personalidade e poder
Personalidade — em sua acepção psicológica — está intrinsecamente relacionada às características do indivíduo que formam o seu padrão comportamental. Podemos defini-la, segundo Lawrence A. Pervin e Oliver P. John (p.23, 2008), como:

"[…] a personalidade representa aquelas características da pessoa que explicam padrões constantes de sentimentos, pensamentos e comportamentos. Esta é uma definição bastante ampla, que permite que nos concentremos em muitos aspectos diferentes da pessoa. Ao mesmo tempo, ela sugere que prestemos atenção a padrões constantes de comportamentos e a qualidades internas à pessoa, que explicam essas regularidades — em oposição, por exemplo, a enfocar qualidades no ambiente que expliquem tais regularidades. As regularidades de interesse, para nós, envolvem os pensamentos, sentimentos e comportamentos explícitos (observáveis) das pessoas. De particular interesse para nós é a maneira como esses pensamentos, sentimentos e comportamentos se relacionam entre si para formar o indivíduo único e peculiar."

É inegável que alguns fatores externos — como, por exemplo, vídeos, textos e conteúdos persuasivos — podem influenciar nas atitudes e comportamentos de alguém, medida em que também podem modificá-los. E modificar uma peça nessa engrenagem pode ter o condão de alterá-la profundamente: engendrando no indivíduo um novo traço de personalidade. No documentário O Dilema das Redes (2020) — disponível no streaming da Netflix — percebemos o quanto as redes sociais podem servir como instrumento para esse fim.

A equação é muito simples: passamos — de uns dez anos para cá _ a consumir muito mais informações em nossas redes sociais, bem como a despender parcela considerável das horas do nosso dia nelas. Além disso, compartilhamos frações substanciais de nossas informações nessas redes. A somatória dessas duas variáveis — o binômio informação e atenção — constrói a maneira perfeita de nos influenciar: quem quer que domine as redes, sabe muito sobre nós e tem a nossa irrestrita atenção, nossa audiência.

Saber sobre nós é ter conhecimento sobre nossas inclinações. É poder ter o voto de minerva — mesmo que imperceptível — das nossas decisões. Se estamos inclinados a votar no partido Y, quem sabe muito sobre nós pode nos influenciar nos apresentando o detalhe que faltava para o fazermos. E nas redes, quem sabe esse detalhe também tem nossa total audiência para apresentá-lo.

E isso nos faz refletir sobre poder.

Segundo José Ricardo Costa de Mendonça e Sônia Maria Rodrigues Calado Dias, esclarecendo a visão de Robbins (2002, p. 342), poder é "a capacidade que A tem para influenciar o comportamento de B, de maneira que B aja de acordo com a vontade de A".

Podemos entender esse conceito em consonância com a diferenciação — também apresentada no mesmo artigo — que Worchel, Cooper e Goethels (1991) fazem entre poder e influência: sendo que esta de fato muda o comportamento; enquanto aquele é o potencial e a habilidade de realizar tal mudança.

Quando analisamos a confluência desses fatores e conceitos, concluímos que as redes sociais têm o poder inequívoco de nos influenciar. E essa influência, por sua vez, pode atingir tamanha profundidade que seria capaz de modificar nossos padrões comportamentais ou, em palavras outras, a nossa personalidade.

E tudo isso no silencioso, cotidiano e muitas vezes automático rolar de um feed.

Autodeterminação, constitucionalização da proteção de dados e personalidade
Em razão do que dissemos acima é que é tão importante a autodeterminação informativa. Essa, em apertada síntese, pode ser descrita como a capacidade que o titular de dados tem de determinar o que ocorre com suas informações, com os seus dados. É sob o manto da autodeterminação informativa, por exemplo, que podemos dizer não a este ou aquele tratamento de dados que discordamos.

Podemos afirmar com absoluta convicção que quando, em 10 de fevereiro de 2022, o presidente do Congresso promulgou a Emenda Constitucional nº 115, que elevava o direito a proteção de dados pessoais à garantia constitucional por meio da inclusão do inciso LXXIX no artigo 5º da Constituição da República, presenciamos uma grande evolução não somente na esfera prática e no trato cotidiano dos dados pessoais, mas também um enorme progresso na proteção da liberdade dos indivíduos de serem quem são.

Afinal, quando constitucionalizamos o direito à proteção de dados pessoais, também constitucionalizamos — por consequência — a autodeterminação informativa visto que essa, conforme artigo 2, inciso II, da Lei Geral de proteção de dados, é um dos fundamentos da disciplina da proteção de dados. Ou seja, está em seu alicerce.

Constitucionalizar o direito a proteção de dados é, além de tudo, constitucionalizar o direito dos indivíduos de determinar livremente o que se deve, ou não, ser feito com seus dados pessoais. É garantir-lhes a liberdade de traçar caminhos de como suas informações serão tratadas ou, simplesmente, negar-lhe o tratamento quando permitido pela lei. Isso representa um avanço ímpar, na medida em que privilegia a autodeterminação informativa e, consectário lógico, a própria formação da personalidade das pessoas — que, tendo poder sobre seus dados, tem poder para tirá-los das mãos de quem pretende influenciar, com o seu uso, as cosmovisões, opiniões, percepções sobre a vida e, por derradeiro, o padrão comportamental dos titulares.

Em outras palavras: esse movimento nos garante a capacidade de formarmos as nossas próprias peculiaridades, reforçando a nossa prerrogativa de determinar como serão tratadas as nossas informações — e, com isso, impedindo intromissões alheias e alocando o poder onde ele deve estar: nas mãos dos titulares.

Considerações finais
Como dissemos na introdução desse artigo, a temática do poder é cara ao Direito. Este deve tratá-la cum grano salis, procurando limitá-lo dentro de sua própria estrutura e nas dinâmicas sociais — pois somente assim se garante uma sociedade equânime, justa.

A constitucionalização da proteção de dados pessoais com a introdução do tema no artigo 5º da CF/88 representa um importante avanço em diversas discussões sobre o assunto e, dentre elas, aquela trazida a lume neste artigo.

A partir dessa inserção, não teremos tão somente uma mudança de paradigma nas diversas cortes, tribunais de norte a sul do Brasil, faculdades de Direito e escritórios de advocacia — onde a proteção de dados na Constituição servirá como argumento para peças e sentenças, trabalhos de conclusão de cursos e debates; teremos também a autodeterminação informativa e a proteção de dados, mesmo que silentes e sorrateiras, a invadir o cotidiano de pessoas comuns, a protegê-las dos abusos e intromissões que podem ser feitos com o uso de suas informações — e é a isso que podemos chamar do início de uma mudança de cultura.

Quiçá, mesmo que incipiente, a cultura de proteção de dados pessoais no Brasil.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República: Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. DF, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Lei Nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Presidência da República: Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. DF, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm

MENDONÇA, José Ricardo Costa de.; DIAS, Sônia Maria Rodrigues Calado. De French e Raven (1959) ao modelo poder/interação de influência interpessoal: uma discussão sobre poder e influência social. Cadernos Ebape, Rio de Janeiro, v. 4, nº 4, dez. 2006 apud ROBBINS, S.P. Comportamento Organizacional. 9ª ed. São Paulo: Prentice Hall, 2002; WORCHEL, S.; COOPER, J.; GPETJEÇS. G.R., Understanding social psychology. 5ª ed. California: Brooks/Cole, 1991.

PERVIN, A. Lawrence; OLIVER, John P. Personalidade: teoria e pesquisa. 8ª ed. São Paulo: Artmed Editográfica, 2008.

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  • é advogado em uma startup de tecnologia, entusiasta das relações existentes entre Direito e tecnologia e coautor dos livros Lei Geral de Proteção de Dados – uma Análise Reflexiva e de Impactos Tecnológicos na Sociedade.

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