Opinião

ICMS monofásico dos combustíveis é tributo de competência plurifederativa?

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21 de novembro de 2022, 15h06

O que significa afirmar que dado ente da federação tem competência para instituição de determinado tributo? A competência tributária, prevista nos artigos 24, I, e 153 a 156 da Constituição desta República (CRFB) e 6º a 8º do Código Tributário Nacional (CTN), é o instrumento deflagratório do exercício da função de instituir lei para tributar.

Para o ICMS, o artigo 155, II, da CRFB nos deixa claro que se trata de imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal. Isso significa dizer que referidas unidades da federação (UFs) são portadoras, cada uma delas, do poder de legislar e instituir seu ICMS.

Esse poder das UFs para instituir e regulamentar o ICMS, como nos revelam — em rol não exaustivo — os artigos 24, 146 e 155, §2º, XII, da CRFB, deve observar algumas limitações contidas em leis nacionais. Exemplos concretos dessas normas gerais nacionais que enquadram a normatização do ICMS pelas UFs, seriam a Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional (CTN), lastreado no artigo 146, III, da CRFB), as Leis Complementares nº 24/75 (artigo 155, §2º, XII, g, CRFB), 87/96 (artigo 155, §2º, XII, CRFB), 190/22 (artigo 155, §2º, VII e VIII, g, CRFB), 192/22 (artigo 155, §2º, XII, h, e §§4º e 5º, CRFB) e 194/22 (artigo 155, §2º, XII, CRFB) e a Resolução do Senado nº 22/89 (artigo 155, §2º, IV, CRFB).

É portanto verdade que toda UF precisa seguir, especialmente quando da tributação de operações interestaduais, muitas normas além daquelas produzidas unilateralmente por ela mesma. Essa situação, em si, não é tão diferente do que se verifica para os municípios no exercício da competência para o ISSQN (artigo 156, III c/c §3º, CRFB): trata-se de regulamentação, em nível nacional, do mínimo necessário para permitir que cada UF exerça sua própria competência no que diz com esses impostos, na tentativa de evitar que haja geração de conflitos federativos (ou minimizar sua escala).

Ocorre que, mesmo com essas limitações nacionais e gerais, cada UF continua a ter o poder de editar suas próprias normas e regulamentar o seu próprio ICMS (aqui entendido o clássico, isto é, o plurifásico e não cumulativo), fixando alíquotas, bases de cálculo, pormenores acerca da sujeição passiva (prevendo ou não uma substituição tributária, por exemplo, na forma dos artigos 170 da CRFB e 128 do CTN) etc. Então, no cenário atual (em que não há — nem pode haver, sob pena de tensão excessiva no tecido federativo causada por guerra fiscal — competência unilateral plena) entendemos que mesmo as restrições não impedem afirmarmos que cada UF tem a sua competência para estabelecer o seu ICMS.

Reforça a ideia de que existe essa competência individual a noção de que, quando um Convênio Confaz é aprovado prevendo um dado benefício ou uma dinâmica de substituição tributária (artigo 4º, LC 24/75, é jurisprudência consolidada das cortes superiores a necessidade de que cada UF precisa internalizar as normas do referido convênio por meio da edição de lei ordinária local [1].

É dizer: a norma de um Convênio Confaz que trate legitimamente (sem atentar contra lei nacional ou regramento constitucional) de elemento fundamental da norma matriz de incidência fiscal só se aperfeiçoa para aplicação plena em dada UF caso esta exerça sua própria competência internamente. Assim é, portanto, o exercício da competência para instituição do ICMS previsto no artigo 155, II, CRFB: trata-se deveras de um tributo estadual/distrital.

Mas e o ICMS monofásico a que alude o artigo 155, II c/c §2º, XII, h, e §§4º e 5º, CRFB, com viabilidade instituída pela Emenda Constitucional nº 33/2001 (EC 33)? Será esse apenas um corte, uma espécie do mesmo ICMS de competência de cada estado/DF? Parece-nos negativa a resposta, e abrir essa porta nos levaria necessariamente a outros desafios.

Do começo: o artigo 2º da EC 33 estabeleceu a viabilidade de, em relação ao ICMS e por lei complementar (havia previsão, no artigo 4º da EC 33, de competência subsidiária das próprias UFs, em conjunto e por Convênio), serem definidos os "combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez", hipótese em que o ICMS:

1. caberá à UF de destino no caso de operações interestaduais com derivados de petróleo;
2. no caso de não derivados de petróleo, poderá ser dividida entre origem e destino (quando destinadas a contribuintes de ICMS) ou ficar todo para a origem (quando destinadas a não contribuintes de ICMS); e
3. terão alíquotas uniformes (específicas — ad rem ou percentuais — ad valorem), que poderão ser reduzidas e restabelecidas sem a necessidade de observar a regra da anterioridade anual.

Em nosso ver, a monofasia ("incidirá uma única vez") só se mostra verdadeira caso seja definitiva e não haja diferença de carga a depender da origem ou do destino dessa mercadoria e se não for permitida a manipulação unilateral de dada UF na concessão de descontos ou de benefícios fiscais. As discussões sobre o tema são profundas, mas podemos começar por algumas sugestões:

1. a monofasia para combustíveis é permitida pela CRFB/88 e em nada obsta a devida repartição de receitas entre as UFs envolvidas — sendo certo que, no caso de derivados de petróleo, é estabelecida a sujeição ativa exclusiva da UF onde ocorre o consumo;
2. não há inconstitucionalidade na fixação de uma alíquota única e ad rem (específica; um valor fixo por unidade de medida do produto) por Convênio do Confaz, já que este seria um ato conjunto de todas as UFs;
3. no caso do ICMS, um alinhamento de carga fiscal pelas UFs só é possível quando há similares alíquota e base de cálculo. Seria inútil promover o alinhamento apenas de alíquotas ad valorem (percentual) entre as UFs, caso as deixemos totalmente livres para estabelecerem múltiplas bases de cálculo presumidas (como é hoje, no sistema da substituição para frente); e
4. eliminar a possibilidade de concessão unilateral de benefícios fiscais não atenta contra a autonomia federativa. Muito pelo contrário, obedece à lógica constitucional vigente e impede a guerra fiscal. Ademais, existem outras formas de fomento público à atividade econômica pelas UFs, como incentivos de ordem financeira.

Os elementos básicos para instituição desse ICMS monofásico, além da lei complementar nacional que já surgiu (LC 192), dependem de definição pelas UFs por meio de convênio a ser firmado no âmbito do Confaz. E aqui se evidencia que apenas a LC 192 não foi (nem poderia ser) suficiente senão para cumprimento do que seria uma primeira fase na instituição de um ICMS monofásico e uniforme para combustíveis: resta portanto uma competência ainda a ser exercida.

Mas essa é uma competência — e não encontramos par disso na CRFB — que só pode ser exercida por todas as UFs juntas, ao mesmo tempo e por meio de Convênio Confaz: a instituição do ICMS monofásico depende inexoravelmente de um acordo de todas as UFs quanto a todos os elementos fundamentais para sua cobrança e de sua aplicação em momento único por produto. Nenhuma delas pode institui-lo sozinho e qualquer uma delas pode impedir sua instituição por todas.

A regra matriz de incidência do ICMS-monofásico, caso este de fato seja instituído, deverá ser completamente estabelecida por um ato normativo interestadual (Confaz), que não poderá (nem precisará) ser complementado, internalizado ou alterado unilateralmente por qualquer uma das UFs.

É dizer: o ICMS monofásico de combustíveis só funciona, na forma da CRFB, se todas as UFs a aprovarem ao mesmo tempo e modo. A nenhuma UF é dada competência para unilateralmente o estabelecer, definir seu marco inicial ou mesmo disciplinar seus elementos nucleares.

Não estamos a defender que cada UF não possa estabelecer pormenores acerca de metodologia de fiscalização ou outros elementos acidentais; estamos apenas a sustentar que — em um modelo de tributação uniforme com definição exaustiva de aspectos quantitativos e qualitativos pelo Convênio Confaz — já não será necessária a edição de lei estadual para internalização do referido Convênio; sua eficácia será plena e sua aplicação, observada anterioridade constitucional, imediata.

Após a edição da LC 192, as UFs vêm apresentando grande resistência à ideia de uma alíquota uniforme por combustível. No Convênio Confaz 16/22 (primeira tentativa de disciplinar, para óleo diesel, o ICMS monofásico), especialmente em suas cláusulas quarta (fator de equalização por UF — tributação consoante o congelamento operado pelo §3º da cláusula décima do Convênio Confaz nº 110/2007) e quinta (responsabilização a terceiros e necessidade de complemento ou ressarcimento) [2], houve uma tentativa de manter cargas diferentes em cada UF.

Essa tentativa foi debelada por liminar concedida na ADI 7.164/DF e, não obstante a revogação do Convênio Confaz 16/22 pelo 80/22, há uma dificuldade no alcance de denominador comum entre os envolvidos [3], já que a própria LC 192 é alvo da ADI 7.191/DF, ajuizada por governadores de UFs.

A LC 192 determina, e os contribuintes anseiam, que se crie um cenário de tributação de combustíveis definitiva, concentrada em apenas um elo da cadeia, com receita ora compartilhável entre UFs de destino e origem (combustíveis não derivados de petróleo) ora exclusiva da UF de destino (combustíveis derivados de petróleo) e com alíquota específica e uniforme (a mesma carga de tributo, independentemente de origem ou destino das operações).

Não se objeta que haja um fator de equalização em algum nível das tratativas, mas é preciso que ocorra não em um nível tributário (na relação do fisco com o contribuinte), mas em um momento posterior àquele da tributação (quadrante apenas financeiro, de divisão de receitas). É dizer: a tributação para todos os contribuintes, em todas as UFs, deverá ser efetivamente monofásica e uniforme, aplicada uma única e nova alíquota (e que reflita não um teto, mas a efetiva média ponderada).

Capturada essa receita por um fundo específico de gestão via Confaz e adotadas todas as regras necessárias para devido compartilhamento, que se lhe dê a devida destinação a cada UF na forma predeterminada, cumprindo assim o pretendido por cada uma delas, mas agora sem a decepção de que se institua uma paradoxal monofasia não monofásica.

Endereçando o argumento de que esse caminho não seria possível por falta de previsão constitucional de repartição "horizontal" de receitas, empregamos o elemento que construímos neste texto: quando entendemos que se trata de um tributo de competência pluriestadual, não seria o caso de falarmos sobre transferência horizontal de receitas entre entes igualmente competentes, mas de repartição das receitas, entre todas essas UFs, pelo único ente dotado de competência para o ICMS-monofásico — no caso, o Confaz.

Sugerimos aqui, dessarte, que o ICMS monofásico sobre combustíveis não é um imposto estadual; trata-se verdadeiramente de um imposto de competência pluriestadual, com regras claras sobre toda a matriz de incidência, incluindo a capacidade tributária ativa (qual UF pode cobrar o imposto a depender da operação e do combustível envolvido).

 


[2] "Cláusula quarta Os Estados e o Distrito Federal poderão estabelecer fator de equalização de carga tributária máximo, por litro de combustível, aplicável às saídas com óleo diesel A, ainda que misturado, destinadas a seus respectivos territórios, conforme estabelecido no Anexo II.

Parágrafo único. O fator de equalização de carga tributária previsto no "caput" vigorará pelo período mínimo de 12 (doze) meses contados da publicação deste convênio e não poderá ser superior ao valor da diferença apurada entre a alíquota 'ad rem' fixada neste Convênio e a carga tributária efetiva vigente em cada Estado e no Distrito Federal na data da publicação deste convênio.

Cláusula quinta Para aplicação do disposto na cláusula quarta, será considerado o fator de equalização de carga tributária da unidade federada em que se localizar o destinatário do combustível.

Parágrafo único. Nas operações interestaduais subsequentes, com fundamento no inciso II do § 1º do art. 6º da Lei Complementar nº 192/22, deverá o estabelecimento remetente do combustível, caso o fator de equalização de carga tributária da unidade federada de destino referida no 'caput' seja:

I – inferior ao fator de equalização de carga tributária da unidade federada de origem, efetuar o recolhimento da diferença, na forma e no prazo que dispuser a legislação da unidade federada de destino;

II – superior ao fator de equalização de carga tributária da unidade federada de origem, ser ressarcido pelo seu fornecedor, nos termos previstos na legislação da unidade federada de origem."

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