Opinião

Direito à moradia da população de rua e seu Estado de Coisas Inconstitucional

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19 de novembro de 2022, 9h11

O Supremo Tribunal Federal, pelo ministro Alexandre de Moraes, convocou audiência pública no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) DF 976, para ouvir autoridades e membros da sociedade civil a respeito da situação da população de rua [1].

A fundamentação do despacho aponta para a "violação sistemática dos direitos e garantias fundamentais de pessoas em situação de rua, em um cenário que foi significativamente agravado após a pandemia de Covid-19", mencionando estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que concluiu que a quantidade de pessoas em situação de rua aumentou de 92.515 em setembro de 2021 para 221.869 em março de 2020.

Este estudo do Ipea foi feito antes mesmo da pandemia do coronavírus se alastrar pelo Brasil, havendo indícios de que a população de rua tenha crescido ainda mais em razão da crise econômica que decorreu da emergência sanitária. Na cidade de São Paulo, foi antecipado o Censo da população de rua, constatando que esta cresceu de 24.344 para 31.884 pessoas em 2022.

Na ADPF em trâmite no STF, a parte autora pretende a intervenção do Judiciário para sanar graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição perpetradas pelos entes federativos em relação às pessoas em situação de rua, em especial diante dos impactos da pandemia do coronavírus sobre estas pessoas. Os autores da ação requerem, assim, dentre outros pedidos, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), decorrente de omissões estruturais e relevantes dos Poderes Executivo e Legislativo, inclusive no que concerne à reserva de orçamento público suficiente.

Pretendo, em dois textos, aportar elementos para o reconhecimento da moradia como o problema central e imediato na situação de rua (parte 1); depois, apontar os avanços recentes do STF na tutela do direito à habitação e, por fim, sustentar a existência do Estado de Coisas Inconstitucional na questão da moradia da população de rua (parte 2).

Falta de moradia como característica imediata da população de rua
A população de rua deve ser definida como sendo aquelas pessoas que vivem em logradouros ou abrigos públicos em razão de não terem acesso à moradia. Este é o aspecto central, a característica mais imediata de privação destas pessoas: a falta de um teto sob o qual se abrigar. Diversas outras características desta população são mediadas pela falta de uma habitação.

Estas outras características aparecem, por exemplo, em definições mais extensas da população de rua, como a do Decreto Federal 7.053/2009, que a define como

"o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória" [2].

Tal definição abarca tanto as pessoas que se utilizam de albergues públicos, quanto as que dormem nas ruas e abrange características ("pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados") que podem ou não estar presentes na situação de rua, sempre mediadas pela falta de moradia.

Na seara internacional, o Conselho Econômico e Social (Ecosoc) da ONU, no Relatório "Habitação acessível e sistemas de proteção social para todos para enfrentar a situação de rua", explicitou que:

"a situação de rua não é apenas a falta física de uma habitação, mas muitas vezes está relacionado com a pobreza, desemprego, falta de acesso a infraestrutura, bem como outras questões sociais que podem incluir a perda da família, da comunidade e do sentimento de pertença e, dependendo no contexto nacional, pode ser descrita como uma condição em que uma pessoa ou agregado familiar carece de espaço habitável, o que pode comprometer a sua capacidade de desfrutar de relações sociais, e inclui pessoas que vivem nas ruas, em outros espaços abertos ou em edifícios não destinados à habitação humana, pessoas que vivem em alojamentos temporários ou abrigos para a população de rua e, de acordo com a legislação nacional, pode incluir, entre outros, pessoas que vivem em moradias precárias, sem garantia de posse e acesso a serviços básicos" [3].

O relatório parte da noção de "falta de moradia", que seria a base para se definir as pessoas em situação de rua — o que é mais óbvio no termo em inglês "homeless", literalmente "sem casa". Mas a definição do órgão internacional vai além, elencando as diversas características possíveis da população de rua, abrangendo inclusive as que vivem em abrigos. Neste caso, parte-se da obviedade linguística para uma mais detalhada definição. No Brasil, importa retornar à obviedade conceitual para corrigir equívocos das políticas públicas em andamento.

Enxergar a falta de moradia como elemento central na definição da população de rua não é mera questão vocabular ou retórica. Trata-se de uma forma de definir com implicações práticas da maior importância para as políticas públicas destinadas a estas pessoas.

Não se pode esquecer que diversas ações estatais foram e têm sido desenvolvidas para segregar, higienizar e expulsar pessoas em situação de rua, tratando a questão como caso de polícia. Parafraseando os criminólogos, as ações higienistas, como as serpentes, só picam os descalços. Tais ações estão fadadas a reproduzir a miséria social e a crueldade institucional e precisam ser superadas urgentemente.

Porém, focalizamos, neste momento, as diversas políticas públicas que foram desenvolvidas, de boa-fé, para aplacar os problemas desta população. Infelizmente, a maioria destas políticas se baseiam em assistência social e deixam de lado a questão da moradia.

Isto se reflete, por exemplo, nas divisões internas mais comuns no Poder Executivo: não raro encontramos "Secretarias de Assistência Social" voltadas a lidar com as questões da população de rua, fazendo-o por meio de acesso a benefícios sociais e a abrigos emergenciais, de inserção em programas de educação e emprego, etc; separadas daquelas, encontramos as "Secretarias de Habitação", ocupadas em produzir moradias de acordo com os critérios tradicionais de acesso (especialmente o financiamento imobiliário [4]).

Tal abordagem está sedimentada nos diversos níveis federativos e reflete um modelo de atendimento chamado de "etapista" [5], segundo o qual a moradia é uma meta a ser atingida em um processo de reorganização pessoal e "reinserção social" da pessoa em situação de rua. Em tal processo, ela deve aceitar a abordagem e o encaminhamento para abrigos emergenciais, aderir à disciplina destes abrigos, engajar-se nos tratamentos de comorbidades como uso de drogas ou transtornos mentais, bem como aproveitar os encaminhamentos para oportunidades de estudo, treinamento e trabalho. Tudo isto é organizado pela assistência social. A partir do ingresso nesta verdadeira "jornada da autonomia", as pessoas em situação de rua poderiam ter acesso a soluções habitacionais provisórias e, por fim, a moradias definitivas — estas sim sob a alçada das políticas de habitação.

Este modelo etapista tem sido fortemente criticado há décadas nos EUA, Canadá e Europa. Nicholas Pleace, por exemplo, afirma que já nos anos 80 era evidente que o modelo etapista nem sempre funcionava a contento:

"Alguns serviços tinham regimes estritos, exigindo o cumprimento do tratamento e proibindo álcool e outras drogas. Aqueles que não seguiam as regras não podiam progredir entre as etapas e poderiam ser mandados de volta para etapas anteriores ou desligados por quebrar as regras. Evidências abundavam no sentido de que as regras rígidas nos serviços faziam as pessoas ficarem 'presas' em etapas específicas, muitas vezes sendo desligadas ou optando por deixar os serviços" [6].

Esta é também a realidade brasileira, que acaba por aplicar o modelo etapista mesmo que a habitação definitiva seja uma realidade ainda mais distante de ser alcançada do que nos chamados países desenvolvidos.

A partir da crítica ao "etapismo" se desenvolveu nos países desenvolvidos o modelo "moradia primeiro" ("housing first"), segundo a qual as pessoas em situação de rua deveriam ter, antes de tudo, acesso a uma moradia, recebendo o devido suporte de assistência social a partir daquela base. Um dos principais desenvolvedores deste modelo foi o psicólogo Sam Tsemberis, que realizou diversos estudos que apontam que "o lugar mais eficaz para ensinar a uma pessoa as habilidades necessárias para um determinado ambiente é dentro desse cenário real" [7]. O "Moradia Primeiro" é destinado a pessoas em situação de rua crônica, ou seja, pessoas nesta situação há muito tempo (pode-se usar o padrão básico de 5 anos), com problemas de saúde física e/ou mental ou que fazem uso problemático de álcool ou outras drogas [8].

O modelo "moradia primeiro" aporta importantes paradigmas que devem informar as políticas públicas voltadas para a pessoa em situação de rua [9]: primeiramente, a moradia entendida como um direito humano básico, implicando o fornecimento imediato de habitação, que deve ser incondicional e permanente; atendimento prioritário aos mais necessitados e não aos mais "aptos" (atendimento não-meritocrático); escolha do usuário [10]; redução de danos [11]. Tais princípios devem nortear uma renovada política habitacional voltada às populações mais vulneráveis, com foco não apenas em financiamento habitacional, mas também em soluções diferenciadas como locação social [12].

Portanto, defende-se que, por mais complexos que sejam os problemas das pessoas em situação de rua, o enfrentamento de tais problemas começa pela questão da moradia.

Continua parte 2.


Referências
ABRAMOVICH, Victor, COURTIS, Christian. Los Derechos Sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002.

BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Rua: aprendendo a contar: pesquisa nacional sobre a população em situação de rua, 2009.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. In https://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural, consulta em 08 de outubro de 2022.

KOHARA, Luiz; COMARU, Francisco; FERRO, Maria Carolina Ferro. Pela retomada dos programas de locação social, disponível em https://observasp.wordpress.com/2015/04/22/pela-retomada-dos-programas-de-locacao-social/, consulta em 24 de março de 2016.

LIMA, Julia. Avaliação da Fase I da Implementação do Empreendimento Asdrúbal do Nascimento II: Projeto Piloto de Locação Social para a População em Situação de Rua no Município de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa Avançado em Gestão Pública como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Gestão Pública. Orientadora: Prof. Marina De Cuffa. São Paulo, 2020.

MELO, Tomás. "Da Rua pra Rua": novas configurações políticas a partir do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), in RUI, Taniele, MARTINEZ, Mariana, FELTRAN, Gabriel (orgs.), Novas Faces da Vida nas Ruas. São Carlos: Edufscar, 2016.

MENEZES, Rafael Lessa Vieira de Sá. O Caso Callahan v. Carey e o direito ao abrigo temporário como aspecto do direito à moradia. In Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Direitos das pessoas em situação de rua, n 3, 2017.

MENEZES, Rafael Lessa Vieira de Sá. Moradia Primeiro: Novos Paradigmas nas Políticas Públicas para a População de Rua. São Paulo: Dialética, 2022.

ONU, Conselho Econômico e Social, Resolução de 18 de junho de 2020, E/RES/2020/7, Habitação acessível e sistemas de proteção social para todos para enfrentar a situação de rua, item 7, p.4, tradução livre.

PADGETT, Deborah K.; GULCUR, Leyla; TSEMBERIS, Sam. Housing First Services for People Who Are Homeless With Co-Occurring Serious Mental Illness and Substance Abuse. Research on Social Work Practice, Vol. 16, No. 1, January 2006, 74-83.

RIDGEWAY, Priscila, ZIPPLE, Anthony M., The paradigm shift in residential services: From the linear continuum to supported housing approaches. Psychosocial Rehabilitation Journal, 1990, 13, 11-31, e P. J. Carling, Major mental illness, housing, and supports: The promise of community integration. American Psychologist, 1990, 45, 969-975.

PLEACE, Nicholas. The Ambiguities, Limits and Risks of Housing First from a European Perspective, European Journal of Homelessness, Volume 5, n 2, dezembro de 2011, pp. 113-127.

ROLNIK, Raquel et al. O Programa Minha Casa Minha Vida nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas: aspectos socioespaciais e segregação. Cadernos Metrópole. 2015, v. 17, n. 33, pp. 127-154.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas Anotações a Respeito do Conteúdo e Possível Eficácia do Direito à Moradia na Constituição de 1988, In Cadernos de Direito, v. 3, nº 5, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas sobre o direito à moradia como direito humano e fundamental e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, In AMARAL JR., Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra, O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

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[3] ONU, 2020, p.4.

[4] O modo mais conhecido e disseminado de acesso à moradia é o financiamento imobiliário: um banco empresta a quantia necessária à aquisição de um imóvel e a pessoa paga, normalmente por anos ou décadas, o empréstimo ao banco. O acesso ao crédito imobiliário, porém, depende de uma avaliação da renda da pessoa, o que em regra exclui as pessoas em situação de rua.

[5] Que pode ser comparado com os modelos "progressivos", de "tratamento primeiro", das escadarias ("staircase model"), ou de cuidados continuados ("continuum of care"). Vide, por todos, RIDGEWAY, Priscila, ZIPPLE, Anthony M., The paradigm shift in residential services: From the linear continuum to supported housing approaches. Psychosocial Rehabilitation Journal, 1990, 13, 11-31, e P. J. Carling, Major mental illness, housing, and supports: The promise of community integration. American Psychologist, 1990, 45, 969-975.

[6] N. PLEACE, The Ambiguities, Limits and Risks of Housing First from a European Perspective, EJH, 2011, p. 114.

[7] Vide, por exemplo, S. TSEMBERIS et. al., 2004, p. 651.

[8] D. PADGETT et. al., 2006.

[9] R. MENEZES, 2022.

[10] S. TSEMBERIS, 1999.

[11] S. TSEMBERIS et. al. 2004, p. 651.

[12] L. KOHARA et. al., 2016.

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