Opinião

Franquia carioca da "lava jato" e os limites da pessoalidade da pena

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19 de novembro de 2022, 17h16

Em desdobramento da franquia da "lava jato" no Rio de Janeiro, no âmbito da apelidada unfair play, restou determinado o bloqueio da integralidade de um imóvel registrado em nome da pessoa jurídica da qual determinado acusado era sócio. No entanto, o empresário investigado detinha apenas 14% do fundo de investimentos em participação (FIP) responsável pelo controle da empresa, que contava com outros 16 acionistas não envolvidos na investigação.

O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, entendeu que havia evidente desproporcionalidade na medida constritiva, determinando então que o bloqueio de bens deve ser proporcional às cotas do acusado em fundo de investimento [1].

De acordo com a decisão, o fundo de investimento, condomínio de natureza especial destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza (artigo 1.368, CC) não pode responder integralmente por delitos imputados a um agente que detém apenas 14% das cotas do fundo, prejudicando os 16 demais cotistas que não fazem parte da relação processual.

Para o Superior Tribunal, a constrição demonstrou-se irrazoável e desproporcional, uma vez que a maior parte do patrimônio afetado pertence a pessoas que não têm qualquer relação processual com a acusação e, a fim de afastar o evidente excesso cautelar, ordenou a redução do bloqueio sobre o imóvel para o limite da cota do FIP pertencente ao empresário, recobrando, assim, os requisitos da proporcionalidade e adequação da medida cautelar patrimonial.

Considerando que o fato delituoso que figura como objeto de conhecimento do processo penal e da sentença condenatória existe no ordenamento jurídico como espécie do gênero dos atos ilícitos (artigo 186, CC), reconhece-se a incidência simultânea de dispositivos de natureza penal e de natureza civil, de modo que a prática do crime, comumente ensejará responsabilização criminal e civil cumulativas.

Enquanto as consequências de natureza penal do fato delituoso estão descritas no Código Penal e na legislação extravagante, as consequências cíveis da prática do ato ilícito são regidas pelo Código Civil. Dentre elas, a principal é a obrigação de reparar o dano, prevista no artigo 927 do CC.

Assim como o princípio da intranscendência impede que a pena ultrapasse a pessoa do condenado, a aplicação de normas do Direito Civil para reparação do dano encontra limites.

Apesar do devedor responder com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de obrigações (artigo 789 do CPC) e para a reparação integral do dano causado (artigo 942 do CC), a solidariedade não se presume. Ela somente decorre de expressa previsão legal ou da vontade das partes.

É impositivo que tanto para repressão de crimes quanto para o devido respeito aos direitos fundamentais, se observe o uso adequado e os limites das medidas assecuratórias no âmbito criminal — a limitação ao quantum patrimonial que poderá ser alcançado pelas cautelares não pode ultrapassar os limites personalíssimos da pena.

No âmbito penal, as medidas assecuratórias devem atender aos princípios da razoabilidade, presunção de inocência e intranscendência da pena, a fim de evitar o desvirtuamento em uma espécie de asfixia financeira do investigado e de todos aqueles que possuem algum vínculo com ele, especialmente de quem não contribuiu, não se beneficiou e não participou de qualquer ilícito.

O estado de inocência comporta a proibição de que as medidas assecuratórias sejam utilizadas como "castigos", isto é, que, além de sua finalidade de asseguramento do escopo processual, sejam utilizadas para atingir o acusado, antecipadamente, com eventuais efeitos da condenação. E, se não podem atingir o acusado, quiçá aqueles que são seus sócios.

Em outros termos, não será constitucionalmente legítima qualquer medida que tenha por finalidade antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da condenação penal, ditada por razões de ordem substancial e que pressupõe o reconhecimento da culpabilidade, ainda que em caráter provisório.

O louvável precedente do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a obrigação de reparar o dano ou a adoção das medidas assecuratórias devem ser adotadas com proporcionalidade e na medida da responsabilidade do causador do ilícito, inexistindo solidariedade onde a lei assim não determinou. Como se viu, no que diz respeito aos efeitos patrimoniais da condenação penal, não se pode presumir a solidariedade passiva quanto ao bloqueio ou ao perdimento de bens.


[1] STJ, AgRg no RMS 58.018/RJ, rel. min. Olindo Menezes (des. convocado do TRF-1), DJe 26/8/2022.

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