Opinião

50 anos da Convenção da Unesco sobre Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade

Autor

  • Ivonei Souza Trindade

    é advogado e professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote Peru).

18 de novembro de 2022, 15h10

O ano de 1972 mostrou ao mundo obras artísticas que até hoje são comentadas pela crítica especializada e pelo público. No cinema, foi o ano de filmes como Laranja Mecânica, O Poderoso Chefão, Independência ou Morte e Quando o Carnaval Chegar. Na música, foi o momento de discos como Harvest de Neil Young, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars de David Bowie, Acabou Chorare dos Novos Baianos e Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges e mais artistas. Para parte da crítica especializada e para muitos apreciadores populares, as mencionadas obras são "patrimônios culturais" [1] que devem ser sempre exaltadas e exibidas para as futuras gerações.

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Corcovado é patrimônio da Unesco
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No dia 16 de novembro do mesmo ano das obras artísticas mencionadas no parágrafo anterior, o Direito Internacional viu, no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o nascimento de um tratado dedicado ao patrimônio cultural: a Convenção sobre o Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade, a chamada Convenção da Unesco de 1972. Este documento internacional estabeleceu aos estados obrigações na proteção e na salvaguarda de patrimônios culturais e naturais bem como criou um órgão chamado Comitê do Patrimônio Mundial (CPM). De 1972 até 2022, 194 países ratificaram essa convenção, sendo o Brasil um deles [2].

Membro do tratado desde 1977, o Brasil possui uma atuação frequente dentro da Unesco quando o assunto é patrimônio cultural e natural da Humanidade: o CPM já reconheceu 23 patrimônios brasileiros: 15 culturais, sete naturais e um misto. O Estado brasileiro já foi cinco vezes eleito membro do CPM e já recebeu desse órgão 50 vezes ajuda na preservação de seu patrimônio mundial [3]. Cataratas do Iguaçu, Brasília, Ruínas de São Miguel das Missões, Corcovado, Pantanal, Fernando de Noronha são alguns dos patrimônios brasileiros reconhecidos pelo CPM.

Em 50 anos de existência do tratado, há mais de mil patrimônios reconhecidos pelo CPM da Unesco [4], sendo 52 deles considerados em perigo (expostos na chamada Lista Vermelha do Patrimônio Mundial) no ano de 2022 [5]. De 1972 até atualmente, três patrimônios foram retirados oficialmente [6] da lista feita pelo CPM, quais sejam: Santuário do Órix da Arábia (2007); Vale do Rio Elba em Dresden (2009); e, por fim, a Cidade Mercantil Marítima de Liverpool (2021) [7].

Voltando à situação brasileira, mesmo com todo panorama exposto anteriormente, algum profissional do Direito poderia fazer a seguinte pergunta: qual a importância prática desse tratado aqui no Brasil, tendo em vista que a referida convenção é pouco abordada tanto nos principais manuais nacionais de Direito Internacional Público como nos tribunais superiores brasileiros? Destaco duas frentes para a resposta, em que pese existam outras: 1) possibilidade de ajuda do exterior na preservação dos lugares; 2) impactos no setor do turismo.

Acerca da primeira frente, entre os artigos 19 e 26 da Convenção da Unesco de 1972, há a possibilidade de um Estado solicitar ao CPM ajuda na proteção de seu patrimônio cultural. Segundo o artigo 25 desse tratado, parte dos gastos para essa ajuda, via de regra, é custeada pela comunidade internacional, fato que geraria uma economia aos cofres públicos brasileiros, caso seja necessário esse apoio externo.

É importante ressaltar que existe também a possibilidade de um Estado integrante da Convenção de 1972 utilizar o Fundo de Proteção do Patrimônio Mundial, de acordo com o que os artigos 15 a 18 do tratado estabelecem. O Fundo pode ser utilizado com autorização do CPM e recebe contribuições financeiras de Estados, de organizações internacionais, de entidades privadas e também de indivíduos. A última contribuição financeira do Brasil ao Fundo ocorreu em dezembro de 2021, segundo os dados oficiais da Unesco [8].

Sobre a segunda frente da resposta, preservar o patrimônio cultural é um passo importante para o fomento do turismo no local. Quando vemos grande fluxo de turistas em espaços como Corcovado, Cataratas do Iguaçu e Centro Histórico de Ouro Preto, é um indicativo de que houve um mínimo de preservação desses lugares para que estas cenas se repitam e gerem impactos financeiros no turismo. As obrigações estabelecidas pela Convenção da Unesco de 1972 cumprem um papel fundamental para isso.

Neste ano de 2022, alguns desafios estão postos na aplicação da Convenção da Unesco de 1972. Salvaguarda do patrimônio cultural em tempos de Covid-19 [9], o impacto de mudanças climáticas [10] em patrimônios naturais [11]e conflitos armados como os que ocorrem na Ucrânia e na região Armênia-Azerbaijão, por exemplo, são algumas dessas adversidades em destaque. Sobre estas duas situações bélicas, alguns fatos a seguir merecem atenção.

Desde o início da guerra na Ucrânia até a primeira semana de novembro de 2022, a Unesco constatou que 213 bens culturais ucranianos sofreram ataques, porém nenhum patrimônio cultural mundial nesse país foi danificado [12]. Em outubro desse ano, o presidente Zelensky oficializou perante a Unesco a candidatura da cidade de Odesa, local alvo de intensos bombardeios russos nos últimos meses, como patrimônio cultural da humanidade [13].

No conflito Armênia-Azerbaijão, há, perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), acusações [14] mútuas [15] de destruição de bens culturais, contudo os dois polos não utilizaram a Convenção da Unesco de 1972 nos seus memoriais iniciais. No dia 07 de dezembro de 2021, a CIJ, em sede de medidas provisórias, determinou, também sem se referir ao mencionado tratado, que o Azerbaijão deve evitar ataques a patrimônios culturais da Armênia [16].

Em março de 2022, o Parlamento Europeu criou uma resolução ordenando que o Azerbaijão cumpra a decisão da CIJ bem como receba a Unesco para que esta organização faça a devida avaliação dos danos ocorridos nos patrimônios culturais mundiais localizados na região do conflito [17]. Esta análise é fundamental para o CPM avaliar a inserção de patrimônios culturais na chamada Lista Vermelha dos Patrimônios Mundiais em Perigo. Até o presente momento, não foi encontrada informação se a Unesco conseguiu enviar uma missão à região.

As situações mencionadas anteriormente mostram que a proteção do patrimônio cultural é um assunto que segue merecendo atenção em conflitos armados bem como demonstram a diferença de atuação da Unesco nos dois casos. Proteger o patrimônio cultural em conflitos armados ou em regiões pacíficas é uma obrigação permanente dos Estados membros da Convenção da Unesco de 1972.

Este texto, portanto, chega à seguinte conclusão: 50 anos depois, a Convenção da Unesco de 1972 é um tratado vivo, com um panorama desafiador e interdisciplinar diferente do momento de sua elaboração. Economia, turismo, meio ambiente, políticas públicas em tempos de pandemia e conflitos armados são áreas que merecem atenção quando o assunto é proteção do patrimônio natural e cultural da humanidade neste ano de 2022 em diante.

Mesmo com a atuação brasileira de décadas no CPM, é uma pena abrir os principais manuais brasileiros de Direito Internacional Público e não ver um tópico dedicado ao Direito Internacional do Patrimônio Cultural. Estudantes de Direito precisam ter a noção da importância da Convenção da Unesco de 1972 e de como isso influencia no Brasil. Pelo menos, é o desejo de quem escreve e finaliza agora este texto.


[1] Como o foco do texto é voltado à Convenção da Unesco de 1972, é importante destacar a noção de patrimônio cultural do referido tratado. O motivo das aspas é porque a definição de patrimônio cultural da Convenção de 1972, expressa no seu primeiro artigo, tem como foco monumentos, conjuntos arquitetônicos e locais de interesse.

[3] Unesco. Brazil. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/statesparties/br. Acesso em 03/11/2022.

[4] Precisamente, 1154 lugares reconhecidos. Unesco. World Heritage List. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/list/. Acesso em 14/11/2022.

[5] Unesco. List of World Heritage in Danger. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/danger/. Acesso em 14/11/2022

[6] Importante lembrar do caso da Catedral de Bagrati, que alguns textos não mencionam. A remoção da Catedral de Bagrati, na Géorgia ocorreu em 2017. O reconhecimento desse local como patrimônio mundial foi através de candidatura conjunta com o Monastério Gelati, construção esta que segue na Lista de Patrimônio Mundial. Unesco. Gelati Monastery, Georgia removed from Unesco's List of World Heritage in Danger. 10 de julho de 2017. Disponível em: https://www.unesco.org/en/articles/gelati-monastery-georgia-removed-unescos-list-world-heritage-danger#:~:text=The%20new%20boundaries%20exclude%20Bagrati,site%20of%20outstanding%20universal%20value. Acesso em 14/11/2022.

[7] Unesco. Liverpool's historic waterfront removed from World Heritage List. 21 de julho de 2021. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2021/07/1096172. Acesso em 14/11/2022.

[8] De acordo com os dados oficiais, o Brasil contribuiu com o valor de 195.862 dólares americanos. Unesco. Statement of assessed compulsory and voluntary contributions as at 31 October 2022. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/world-heritage-fund/. Acesso em 15/11/2022

[9] Unesco. World Heritage in the face of Covid-19. Maio de 2021. P. 12. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000377667. Acesso em 15/11/2022.

[10] O material Case Studies on Climate Change and World Heritage expõe alguns casos que a Unesco analisa a relação entre mudanças climáticas e proteção do patrimônio cultural e natural. UNESCO. Case Studies on Climate Change and Cultural Heritage. 2007. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/activities/473/. Acesso em  16/11/2022

[11] Dentro da Unesco existe uma plataforma chamada World Heritage Canopy que está se dedicando a este assunto. Unesco. Unesco World Heritage Canopy. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/canopy/.Acesso em 15/11/2022.

[12] Unesco. Damaged cultural sites in Ukraine verified by Unesco. 08 de novembro de 2022. Disponível em : https://www.unesco.org/en/articles/damaged-cultural-sites-ukraine-verified-unesco. Acesso em 15/11/2022.

[13] Unesco. At Unesco, president Zelensky officially announces Odesa's candidacy to receive World Heritage status. 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.unesco.org/en/articles/unesco-president-zelensky-officially-announces-odesas-candidacy-receive-world-heritage-status. Acesso em 16/11/2022.

[14] ICJ. Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination (Azerbaijan v. Armenia). 23 de setembro de 2021. P. 70. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/181/181-20210923-APP-01-00-EN.pdf. Acesso em 16/11/2022.

[15] ICJ. Request for Provisional Measures and Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination (Armenia v. Azerbaijan). 16 de setembro de 2021. P.24. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/180/180-20210916-APP-01-00-EN.pdf. Acesso em 16/11/2022.

[16] ICJ. Order on Provisional Measures- Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination (Armenia v. Azerbaijan). 07 de dezembro de 2021. P. 29. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/180/180-20211207-ORD-01-00-EN.pdf. Acesso em 16/11/2022.

[17] European Parliament. European Parliament resolution of 10 March 2022 on the destruction of cultural heritage in Nagorno-Karabakh. Ponto 8. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0080_EN.html. Acesso em 16/11/2022.

Autores

  • é professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote, Peru), advogado inscrito na OAB/RS, membro associado da Société Québécoise de Droit International e autor de livros de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional do Patrimônio Cultural.

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