Opinião

Banco pode responder por fraude causada pelo titular que emitiu boleto falso?

Autor

  • Lindojon Gerônimo Bezerra dos Santos

    é professor de Direito advogado e product manager. Membro da Casa de Montezuma (IAB Nacional). Foi membro consultor no Conselho Federal da OAB um dos responsáveis pela Cartilha de Contratos Bancários e por diversas notas técnicas entre elas a que resultou na inclusão da Advocacia como parte integrante na plataforma governamental Consumidor.gov.br de solução de conflitos. Co-coordenador do livro "Direito do Consumidor na Sociedade da Informação" - editora Foco 2022 e co-autor dos livros "Direito do Consumidor Aplicado - Garantias de Consumo" - editora Foco 2023 e "“25 Anos do Código de Defesa do Consumidor: Trajetória e Perspectivas" - editora Revista dos Tribunais 2016. Especialista colaborador externo da TV Justiça e da Rádio Justiça. Com mestrado em andamento em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa. Especialista em Direito do Consumidor e em Ciências Criminais.

17 de novembro de 2022, 6h06

Primeiro, precisamos entender o que é o boleto bancário no Brasil. Segundo a Convenção de Cobrança[2], boleto é o instrumento que pode ser utilizado para: i) possibilitar o pagamento decorrente de eventual aceitação da oferta de produtos ou serviços e da proposta de contrato civil ou de associação; ii) cobrança e pagamentos de dívidas decorrente de obrigações de qualquer natureza; ou iii) depósito ou aporte de recursos em conta de depósito ou conta de pagamento pré-paga.

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E, hoje em dia, todos os boletos bancários devem ser registrados na Base Centralizada de Cobrança, onde somente podem emitir e receber pagamentos de boletos as instituições financeiras e de pagamento integrantes desta Base, por meio da Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP).

Ocorre que, grande confusão foi causada no mercado de consumo quando popularizou-se a forma de pagamento pelos meios de telecomunicação. É comum, atualmente, transações financeiras realizadas fora do estabelecimento bancário ou financeiro, o pagamento à distância, sendo o meio mais usado a internet.[3]

Todavia, é preciso dizer que, apesar desta grande difusão de pagamentos em ambiente externo bancário/financeiro, as pessoas ainda não demonstram conhecimento necessário para esse tipo de transação, o que tem levado algumas delas a se tornar vítimas de estelionatos e fraudes, especialmente com o pagamento por boleto.

A simples falta de conhecimento não é suficiente para afastar a responsabilidade pelo cuidado ao efetuar o pagamento, vez que a negligência, espécie de culpa, é excludente de ilicitude civil, tanto no âmbito do Código Civil (artigo 188), como do Código de Defesa do Consumidor (artigo 14, § 3º, II). Sendo assim, é dever do consumidor (padrão ou equiparado, na forma da lei) atenção e cuidado antes de efetivamente pagar um boleto.

Pois bem. Dito isto, passemos ao tema em si: a responsabilidade de quem emite o boleto, em caso de fraudes ou estelionatos praticados através desta espécie de pagamento.

A responsabilidade civil está relacionada à situação jurídica em que uma pessoa, seja ela natural[4] ou jurídica, é compelida a ressarcir outra pessoa quando causa um dano e esse dano foi resultado de um ato jurídico ilícito[5].

Na situação fática em que uma pessoa é vítima de uma fraude por ter pago algo através de um boleto falso, em uma primeira análise, poderia ser atribuída à instituição que emitiu o boleto, a responsabilidade civil solidária, com base na Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça[6], vez que, aparentemente, o emissor do boleto, seja um banco, seja uma instituição financeira ou de pagamento (algumas delas existentes apenas no mundo virtual), faria parte da cadeia de consumo, atraindo, para si, o conceito trazido pelo artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor – CDC.

O mesmo Tribunal da Cidadania, ao julgar o REsp 1.786.157, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no ano de 2020, estabeleceu que não há responsabilidade civil do emissor do boleto por fraude causada em face da não entrega efetiva do produto pago. Neste julgamento ficou claro que a responsabilidade objetiva não deixou de ser aplicada. É preciso rememorar os elementos da responsabilidade civil objetiva: i) dano; ii) ofensor; e iii) nexo de causalidade.

No caso da emissão do boleto, falta o elemento “nexo de causalidade”, pois o negócio jurídico eivado do vício de fraude não foi a emissão do boleto (inclusive a emissão do boleto foi eficaz, já que o boleto estava “pagável” e isso só é possível se houver o devido registro na CIP, mencionada acima) e sim uma relação jurídica de negócio, originada entre a vítima e o fraudador. Via de regra, quem modifica e altera as características originais do boleto é o fraudador ou alguém do elo criminoso, na maioria das vezes à revelia total da instituição emissora do boleto.

Desse modo, observa-se que o serviço prestado pelo emissor do boleto não se amolda aos defeitos estatuídos pelo artigo 14 do CDC[7], logo, não há que se falar em falha na prestação do serviço, que seria, em tese, o ato ilícito originador da responsabilidade civil.

A ministra relatora esclarece ainda, no âmbito do REsp 1786157, que o fortuito interno, consignado na Súmula 479, versa sobre “hipóteses como assaltos no interior das agências, inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito, desvio de recursos em conta-corrente e clonagem ou falsificação de cartões magnéticos”[8]. Logo, a simples emissão do boleto não entraria no rol de fortuito interno, apto a atrair a responsabilização civil.

Mais recentemente, em outubro deste ano de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) publicou enunciado que reforça esse pensamento, nos seguintes termos: "Enunciado nº 12 – Nas hipóteses de fraude mediante pagamento de boleto falso com pagamento a destinatário distinto do legítimo beneficiário, o ressarcimento só é cabível mediante prova do direcionamento do lesado ao fraudador por preposto ou pelos canais de atendimento bancários, ou seja, quando gerado por fortuito interno, devendo ser aferida a eventual caracterização do dano moral em cada caso concreto."[9]

Nesse sentido, se a instituição emissora do boleto, por algum de seus canais, faz o endosso da transação em si, por exemplo, confirmando que é legítimo o boleto para aquela finalidade descrita na negociação entre o titular da conta e o consumidor, essa conduta pode colocar a instituição no mesmo patamar de fornecedora, na relação de consumo, conforme explicado acima, trazendo pra si a responsabilidade civil solidária.

De outra banda, de forma geral, verifica-se a ausência de responsabilidade civil solidária, automática, da instituição que emite o boleto, pela fraude ou golpe perpetrado pelo titular da conta, devendo, pois, ser demonstrado o nexo de causalidade, para impor a sua responsabilização, em conjunto ao ofensor.


 

[2] Convenção entre instituições participantes do sistema financeiro nacional sobre a emissão, apresentação, processamento e liquidação interbancária dos boletos de pagamento, criada em atendimento ao disposto no Artigo 5º da Circular nº 3.598, de 2012, com as alterações dadas pelas Circulares nº 3.656, de 2 de abril de 2013, e nº 3.956, de 1º de agosto de 2019, todas do Banco Central do Brasil, que tem como objeto estabelecer a padronização do boleto de pagamento, os procedimentos operacionais, horários de transmissão de dados, direitos e obrigações e outros aspectos julgados necessários para o cumprimento do disposto na legislação e na regulação vigentes.

[3] Aqui optamos por deixar de lado o caixa eletrônico, caixas 24horas ou ATM, vez que possuem ligações diretas e sistemas de processamento coligados com as instituições financeiras.

[4] Aqui, opta-se pelo uso do termo “pessoa natural” em vez de “pessoa física”, para maior amplitude da definição.

[5] Ver artigos 186 e 187 do Código Civil.

[6] Súmula 479/STJ: As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.

[7] Art. 14/CDC: O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

[8] Banco emissor do boleto não responde por dano a cliente que não recebeu produto comprado pela internet. Disponível em:

<https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Banco-emissor-do-boleto-nao-responde-por-dano-a-cliente-que-nao-recebeu-produto-comprado-pela-internet.aspx>. Acesso em 17 out. 2022.

[9]  Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Diário da Justiça Eletrônico, Edição 3612, de 17/10/2022,  fls. 14.

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